TUDO EM TODO LUGAR AO
MESMO TEMPO
Conciliação
com o absurdo da vida contemporânea
Danilo Lima/revista
Continente
Em uma realidade marcada pelo excesso de imagens, discussões e
possibilidades como a nossa, cada novo filme lançado tem grande chance de se
tornar apenas mais uma peça desse turbilhão de ruído pós-moderno, fadada ao
esquecimento precoce ou ao esvaziamento de significado. Diante desse contexto,
não haveria realizadores mais apropriados do que a dupla Daniel Kwan e Daniel
Scheinert – também conhecidos como Daniels – para filosofar sobre o absurdo que
é a vida contemporânea. Declaradamente maximalistas, os diretores constroem uma
obra que abraça o excesso e a mutabilidade do nosso tempo, sem restringir seus
gêneros, suas temáticas e, principalmente, sua criatividade.
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo acompanha Evelyn
(Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa nos Estados Unidos que batalha para
conciliar a administração de uma lavanderia à beira da falência com os
problemas familiares. Além dos preparativos para a festa de ano novo chinês,
ela ainda tem que lidar com um pai rigoroso (James Hong), o fim iminente do seu
casamento com Waymond (Ke Huy Quan) e a tensa aceitação da sua filha gay,
Joy (Stephanie Hsu). Durante um encontro com a auditora da Receita Federal
Deirdre (Jamie Lee Curtis), Evelyn recebe uma tecnologia que permite saltar
entre realidades e a missão de combater um ser maligno que pode causar a
destruição de todo o multiverso.
Apesar do roteiro
original, essa não é a primeira vez que os Daniels trabalham com a ideia de
linhas temporais alternativas. Em 2014, a dupla disponibilizou na internet o
tocante curta interativo Possibilia, que
permite ao espectador passear por diferentes perspectivas de um término
amoroso. Desde então, o conceito de multiverso só foi se tornando mais presente
e popular no cinema, tendo atingido seu maior sucesso financeiro com os blockbusters da
Marvel como Homem-Aranha: Sem volta para
casa e Doutor Estranho no multiverso
da loucura. Contudo, se nesses últimos casos a ideia é utilizada
principalmente como artifício de fan service que
já demonstra sinais de enfraquecimento, em Tudo em todo lugar ao mesmo
tempo o multiverso recebe o devido espaço para aprofundar
algumas de suas possibilidades visuais e narrativas.
Do mais cult,
como um universo metalinguístico e inspirado na estética do cineasta chinês
Wong Kar-Wai, ao mais esdrúxulo, caso de um mundo no qual os humanos têm dedos
de salsicha; o filme explora tudo sem receio do ridículo. Se alguns elementos
parecem desconjuntados e saídos de um brainstorm não
revisado, logo os diretores revelam sua intenção, mesmo quando essa é o completo nonsense.
Para conter tanta coisa em 2h19min, com um relativamente pequeno orçamento de
25 milhões de dólares e uma equipe reduzida de efeitos visuais, foi preciso não
só de muita inventividade e efeitos especiais práticos, mas também da liberdade
criativa dos realizadores possível quase somente em produções independentes.
Seguindo a tendência de
desconstruir gêneros, o longa é um amálgama de aventura de ação, comédia,
ficção científica e drama. Devido a um equipamento que permite acessar
habilidades de outros universos, abre-se uma gama de técnicas e estilos de luta
para compor as variadas sequências de ação. Sendo o primeiro filme da A24 no
gênero, a ação foge do ocidentalismo picotado das cenas e remete muito mais ao
cinema de Hong Kong, desde o uso criativo de objetos, como nos filmes de Jackie
Chan, até o humor escrachado dos besteiróis de Stephen Chow. Com uma curva de
aprendizado instigante e cenas muito bem-coreografadas, o deslumbramento visual
garantido funciona convenientemente também para baixar a guarda do espectador
para o verdadeiro ponto do filme.
Se no primeiro longa dos Daniels, o maravilhoso Um cadáver para sobreviver, os diretores utilizam do humor escatológico
para resolver as tensões existencialistas do autoconhecimento, dessa vez a
dupla vai mais fundo ao acrescentar a preocupação cosmológica, externa ao
indivíduo. Como dar algum propósito à nossa vida se todo o universo não tem
sentido? Para o Absurdismo, teoria filosófica com raízes no séc. XIX e maior
reconhecimento com os textos de Albert Camus, esse conflito possui apenas três
soluções: o suicídio, a crença religiosa, ou, a única apoiada por Camus, a
rebelião contra o absurdo da existência, dando significado às pequenas coisas
da nossa vida rotineira. Essa rebelião, ou conciliação com o absurdo, parece
ser a resposta dada pelo filme ao contrapor as perspectivas da heroína e da
antagonista em um embate não apenas físico, mas filosófico.
E
claro que tamanha questão só poderia ser discutida efetivamente através da
identificação do espectador com os dramas pessoais dos personagens, que vão de
conflitos familiares básicos até trauma transgeracional (tema contido também em
animações recentes como Encanto e, especificamente para o
público de imigrantes asiáticos, Red). Liderando o elenco,
Michelle Yeoh entrega uma de suas performances mais ricas e não
convencionais, com abertura para explorar sua sensibilidade, seu timing cômico e até suas próprias habilidades com dança e luta – algo
especialmente raro em Hollywood, que lança atrizes de meia-idade ao ostracismo
ou papéis secundários.
Elevado
por muitos já à posição de um clássico moderno, o filme naturalmente passará a
receber backlash pela alta expectativa. Se
no ato final, os diretores parecem ficar um pouco cheios de si com a própria
ideia ao ponto de repeti-la desnecessariamente, isso não é menos que o esperado
para alguém que conheça o pretensiosismo dos Daniels, visível até em curtas,
como Interesting ball (uma possível
semente do que viria a se concretizar agora). E aqui digo “pretensioso” não no
sentido pejorativo usado comumente por críticos para afirmar uma superioridade
intelectual. Os Daniels são pretensiosos (e que bom por isso!), do contrário
não haveria a ambição necessária para realizar obras como essa, que tentam
abarcar tantos elementos no mesmo caldeirão criativo e cheio de intenções.
Ainda
assim, Tudo em todo lugar ao mesmo
tempo é
digno do seu alongado título e revela que este é o mais honesto e sintético
possível. É um filme que combina perfeitamente com um tempo em que temos acesso
instantâneo a infinitas realidades dentro do nosso bolso. Ele não busca
resignar o público com relances de tudo que poderíamos ter sido, mas mostrar
como é possível deixar de lado a ansiedade causada pelo caos contemporâneo e
fazer escolhas que tornem a nossa “linha temporal” mais significativa para nós
e aqueles ao nosso redor. É grandioso e intimista, escrachado e filosófico,
bobo e emocional; tudo ao mesmo tempo.
DANILO LIMA é jornalista em
formação pela UFPE.
A
literatura latino-americana apoiada em contribuições éticas e estéticas dos
africanos e afrodescendentes bit.ly/3y45vUY
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