06 março 2023

Ler o jogo antes

Nenhum técnico despreparado se tornará, regularmente, um vitorioso

Os atletas que se dão melhor são geralmente os que pensam o jogo antes, durante e depois das partidas
Tostão/Folha de S. Paulo

 

Como diz a música de um belo fado, não é o tempo que passa, nós é que passamos. Um dos motivos da angústia existencial de muitas mulheres e homens é a consciência da finitude da vida. Como somos narcisistas, uns mais que outros, achamos que somos mais importantes do que a realidade. Criamos a ilusão que temos uma grande missão na vida, mesmo que seja algo simples, banal. Desejamos nos tornar heróis e eternos. Freud escreveu que o ser humano só terá uma vida mais prazerosa quando perder a ilusão da eternidade. Com isso desfrutaria mais o cotidiano.

O tempo passa. Atletas de futebol encerram a carreira muito cedo, muitas vezes despreparados para outras atividades. Parei de jogar com 26 anos por causa de um descolamento da retina. Vivi outras vidas, de médico, de professor de medicina, de comentarista e colunista de futebol. Gostei de todas, cada uma no seu tempo.

Muitos atletas tentam exercer outras atividades relacionadas ao futebol, como a de treinador. Não é fácil. O sucesso depende de inúmeros fatores independentes do preparo do técnico. Os atletas que se dão melhor são geralmente os que pensam o jogo antes, durante e depois das partidas. Jogam como se estivessem vendo o jogo de cima.

O conhecimento precisa ser compartilhado em todas as profissões. Guardiola bebeu na fonte de Cruyff, um dos maiores jogadores e técnicos da história, que aprendeu com o lendário Rinus Michels, treinador da inesquecível seleção holandesa da Copa de 74. O jovem técnico Xavi foi discípulo de Guardiola no Barcelona. Muitos outros grandes craques se tornaram excepcionais treinadores. O alemão Beckenbauer, o brasileiro Zagalo e o francês Deschamps foram campeões do mundo como atletas e treinadores.

Zico, que completou 70 anos na sexta-feira, foi treinador no Japão e na Turquia. Não quis ser treinador no Brasil, ainda mais no Flamengo, para não confundirem o ídolo com o profissional. Zico foi um supercraque, essencialmente técnico. Executava com precisão os fundamentos da posição. Nunca gostou da firula, de efeitos especiais.

Alguns jogadores, craques ou não, surpreendentemente não tiveram sucesso como treinadores, ou alternaram bons e maus momentos, às vezes inexplicáveis. Falcão, um dos maiores jogadores da história, hoje diretor dos Santos, não teve uma carreira vitoriosa de treinador, apesar de muito bem preparado, de ter sido um ótimo comentarista e de dar sempre boas entrevistas e explicações técnicas sobre futebol.

Assim como há enormes e absurdos preconceitos contra os técnicos negros, como se eles não tivessem conhecimento e preparo acadêmico para comandar um grupo de atletas, existem muitos preconceitos contra os técnicos que trabalham de terno e gravata, que não gritam nem ficam histéricos durante as partidas, como se este comportamento não fosse adequado em um esporte tão popular.

Na Europa costuma ser diferente. O italiano Ancelotti, cotado para ser treinador da seleção brasileira, trabalha de terno e gravata, é tranquilo durante as partidas e educado nas entrevistas.

Nem todo treinador com grande conhecimento teórico, científico se torna um ótimo e/ou vitorioso técnico, pois existem inúmeros outros fatores não controlados. Porém, nenhum técnico despreparado, com pouca cultura acadêmica, se tornará, regularmente, um excelente e/ou vitorioso treinador. Viverá de brilharecos circunstanciais.

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