Uma
água-marinha para Bárbara
Rubem Braga
Já trabalhei com joias. Não quero contar vantagem; minhas joias não eram
das mais preciosas, nem eu extraí do olho de um ídolo hindu a esmeralda
sagrada, nem mesmo fui assassinado no Araguaia por causa de um diamante azul.
Minha aventura foi bem mais modesta e, para começar, só lidei com pedras
semipreciosas.
Acontece que eu estava mal de dinheiro, como tem sucedido em outras
fases de minha vida — e na vida de outras pessoas também. Escrever em jornal,
coisa que sempre fiz mais ou menos, estava difícil, pois o Brasil vivia sob uma
de suas ditaduras (a de Vargas) e eu estava colocado pelo DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda) sob censura prévia; é uma colocação desagradável,
inclusive porque dá raiva, e a gente só tem vontade de escrever coisas
censuráveis. Acabei parando de escrever, ou só fazendo uns tópicos anônimos
para um jornal qualquer; além disto redigia anúncios para a agência de um amigo
meu — a Interamericana, do Armando D’Almeida, para ser exato.
Redigia mal; jamais consegui ser um publicitário razoável, embora tenha
perdido muitas noites tentando criar algo de fremente e original sobre as
virtudes da lâmina Gillette Azul e as volúpias do sofá-cama Drago.
Foi então que me encontrei com um velho amigo mineiro, o Otávio Xavier
Ferreira.
Otávio tinha me iniciado no jornalismo, pois era secretário da redação
do Diário da Tarde de Belo Horizonte, primeiro jornal diário em que trabalhei —
isto foi há 50 anos, se vocês fazem questão de saber. Depois de me jogar cá dentro
da profissão, ele, espertamente, saltou fora — e naquele tempo era dono de uma
lapidação e de duas joalherias.
Encontramo-nos no Rio; subi com ele a um apartamento do Hotel Itajubá,
cujo bar era o “quartel-general” dos vendedores de pedras. Mostrou-me topázios,
águas-marinhas, ametistas, muitas outras pedras; ensinou-me coisas, a avaliar o
preço pela cor, a distinguir lapidações, os “pontos” e outros defeitos;
preveniu- me contra os truques mais vulgares, feitos a fogo e fumo para alterar
a cor das pedras; deu-me um livro; deixou-me várias coleções em uma caixa e em
pacotes de papel branco que aprendi a fazer e desfazer; nomeou-me seu
representante no Rio, arrumou a mala, pagou-me três uísques no bar do hotel e
embarcou de volta para Minas.
Funcionei nessa coisa vários meses, talvez um ano — e, se não ganhei
muito, graças a Deus não dei prejuízo ao Otávio. Até hoje ainda me sucede ser
cumprimentado na rua por algum sujeito louro de cabelo meio crespo que só
depois de ir longe eu me lembro que é algum holandês a quem outrora vendi
pedras…
Mas foi muitos anos depois dessa medíocre aventura comercial clandestina
(não, nunca paguei impostos) que descobri sua utilidade. Eu vinha dos Estados
Unidos, trazia algum dinheiro e um pouco de saudade de uma americana de dois
metros de altura que o Carlos Niemeyer me arranjara lá — doce Bárbara de olhos
verdes, anjo do Greenwich Village. Fui a uma luxuosa loja da esquina de
Gonçalves Dias e Ouvidor comprar uma lembrança para ela — toda gente sabe que
americana adora água-marinha e não faz muita questão de qualidade.
Escolhi uma pedrinha clara, mas o vendedor me propôs outra: — Se é
presente, por que não leva esta?
Sopesei a pedra um instante, disse distraído: — Deve ter uns 22
quilates…
Fortaleza? Não, quero coisa mais barata…
O homem disse que aquela não estava cara, mostrou-me o preço. Para mim,
podia fazer uma redução. Eu virava a pedra; murmurei que ela tinha um ponto,
mas a lapidação era realmente muito boa; tinha muita vida, até parecia
Itaguaçu, mas era Fortaleza, não era?
– O senhor trabalha no ramo?
– Não, há muito tempo que não mexo com isso…
Pois levei a pedra boa pelo preço que estava marcado para a outra; uma
redução espontânea de mais de 40 por cento para o “colega”. Um colega que não
aprendeu a vender, mas de certo modo aprendeu a comprar. Escrevi uma carta
caprichosa em inglês barbaresco, liquidando o meu romance com Bárbara, e
mandei-lhe a pedra por um amigo, o Armando Nogueira, que embarcava para Nova
Iorque.
Ela me respondeu que jamais ousara acreditar na minha promessa de a
mandar vir para o Brasil, nem de vivermos juntos em Nova Iorque; que a pedra
era linda, e eu era uma flor; que chorava muito, mas compreendia. Que aquele
amor ficaria em sua vida como algo… bem, ainda tenho a carta guardada, mas a modéstia
me impede de publicá-la. Na ocasião em que a li senti um pouco de vaidade, um
certo aperto na garganta e uma confusa saudade sentimental e principalmente
física de minha Bárbara, minha grande Bárbara, my big big big Barbara. [Ilustração: Jeremy Mann]
Às vezes o que reluz é ouro https://bit.ly/3Ye45TD
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