08 maio 2023

Uma crônica de Urariano Mota

Dia Mundial da Língua Portuguesa e Marx

O romance é um ótimo exemplo daquilo que Marx, ao descrever o funcionamento dialético do pensamento, chamou de ‘concreto pensado’
Urariano Mota*

 

Recupero um texto para o 5 de maio.

Hoje, ocorrem o dia mundial da língua portuguesa e o dia do nascimento de Karl Marx. Então fico neste difícil impasse: entre os dois fundamentais, o que fazer?

– Um não se opõe ao outro – poderia me falar um companheiro comunista.

Ao que reponho:

– Mas se não se opõem, onde encontrar a madura competência para falar ao mesmo tempo sobre os dois?

–  A prática é o critério da verdade: escrevas e verás! – comanda o camarada.

Então aqui estou, perdido feito cego em tiroteio. Para onde vou no meio de tantos tiros? Se praticante sou da língua portuguesa, bem ou mal, bom ou mau, de Marx posso dizer que sou um fã sem reservas ou quaisquer ressalvas. Mas confesso que sou um admirador que não estudou a fundo os textos clássicos do filósofo que mudou o mundo. Ora os clássicos de Marx! Vamos ser francos e verdadeiros: só a leitura do Manifesto vale? Só a sua interpretação por Lukács e Gramsci são suficientes? Só a leitura de alguns textos de Lenin satisfaz? E assim continuo, perdido no tiroteio.

Então comecemos pelo mais “fácil”, que vem a ser o Dia Mundial da Língua Portuguesa.  Por aí vocês já veem a selva sombria onde me meti. Mas vamos.

Para nos salvar do abismo, ainda bem que o português é flexível. Essa é uma língua que possui muitas moradas, e nela cabem todas as variações, porque são legítimas falas das várias gentes do mundo. Do Brasil a São Tomé e Príncipe, passando por Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Timor-Leste, Macau, Cabo Verde e Portugal, temos falas da língua. Uma unidade no mundo diverso poderia ser dito, se nos deixássemos levar pelo gosto encantatório da frase. Mas não nos enganemos. Essa unidade se fez e se conquistou a sangue. A ferro e fogo sobre os povos colonizados, como de resto tem sido a expansão de línguas e culturas em todo o mundo.

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José Saramago observou certa vez com propriedade: “Há línguas portuguesas e não uma só Língua Portuguesa. Essas línguas são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes”. No caso brasileiro, as contribuições africana e indígena sob as condições mais cruéis se fizeram não só no léxico, mas na fala e no ritmo da fala. Hoje, se a gente olhar bem, a fala brasileira do português é um outro português. Aquilo que Noel Rosa expressou com tanto gênio no samba Não Tem Tradução: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro, já passou de português”.

Mas serei mais seguro se trouxer o português para o terreno onde sou menos ignorante. E caminho ligeiro para a literatura. Nela, a língua encontra a sua mais fecunda realização. Nela, os brasileiros, africanos, asiáticos e portugueses somos ao mesmo tempo distintos e unos. Distintos não só a partir dos temas, da paisagem, das gentes narradas. Distintos no modo novo de ver a realidade humana em novas culturas e feições.

Lembro que Machado de Assis já nos esclareceu no ensaio Instinto de Nacionalidade, em 1873:

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há de negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro”

E com Machado de Assis, atinjo a maior dificuldade que é unir, misturar Marx  ao dia mundial da língua portuguesa em um só texto. Quero dizer, eu, que sei pouco de Marx, posso muito bem homenagear o amigo e escritor comunista José Carlos Ruy. Ele sabia unir como poucos os clássicos da literatura aos clássicos marxistas. O grande Ruy escreveu textos luminosos sobre a realidade histórica e política do Brasil em mais de um livro. E, de maneira genial, deixou o Dicionário Machado de Assis, a caminho e ser publicado na Editora Anita Garibaldi, que tem o original pronto para lançá-lo ao mundo.

Em dúvida, olhem uma bela página do inédito Dicionário Machado de Assis:

“Machado de Assis foi um realista dialético e uma excelente afirmação dessa ideia está no romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ (1881), cujo narrador já não se encontra entre os vivos: o falecido Brás Cubas.

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O romance é um ótimo exemplo daquilo que Marx, ao descrever o funcionamento dialético do pensamento, chamou de ‘concreto pensado’ – o ideal como o concreto traduzido e transposto para o pensamento, o cérebro, refletindo o mundo objetivo não como um espelho ou uma fotografia – como supunha o materialismo antigo, criticado por Marx e Engels – mas na forma de um registro condicionado pelas crenças, ideias e concepções já existentes mentalmente. A imagem mental corresponde ao mundo objetivo, essa imagem mental é marcada pelas concepções, preconceitos, crenças, a ideologia que o sujeito já tem na mente.

Na ‘Introdução à Critica da Economia Política’ (no ítem ‘O Método da Economia Política’) Marx apresentou sua definição metodológica mais direta; ali, descreveu como as categorias caminham entre o abstrato e o concreto, produzindo representações mentais ricas de múltiplas determinações e relações. Vale lembrar extensamente o que ele escreveu: ‘o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto pensado’”.

E assim concluo a homenagem ao Dia Mundial da Língua Portuguesa e a Karl Marx, com a citação do Dicionário Machado de Assis, que considero já um clássico de José Carlos Ruy. Editora Anita Garibaldi, aguardamos.

*Jornalista, escritor

Tropeço na memória, ou na falta dela https://bit.ly/43zHiUU

Um comentário:

Urariano Mota disse...

Muito obrigado, Luciano Siqueira!