"Hoje, não amanhã"
Nos cinquenta anos do golpe, somos chamadas a construir a memória como uma ponte intergeracional que permite aos povos “não esquecer” as atrocidades ocorridas na história recente de nosso país
Sonia Brito Rodríguez, Andrea Comelin Fornés, Lorena Basualto Porra e Katia García Benítez/Le Monde Diplomatique
Com o golpe de Estado civil-militar de 11 de setembro de 1973, começa a ser escrita uma história sombria no Chile, a qual perdurou por dezessete anos. Hoje, meio século após esse evento, é essencial prestar homenagem às mulheres que com seus corpos e convicções tiveram que defender a própria vida e a de seus parceiros, filhos, netos e netas, sem renunciar aos seus ideais, enfrentando a repressão política, a violência física, psicológica e sexual, a tortura, o exílio e até o desaparecimento e a morte.
Elas, sem hesitar, se aglomeraram nos centros de detenção e enfrentaram os militares para encontrar seus familiares, presos furtivamente e de maneira violenta. Aqueles que se opunham ao regime foram encarcerados sem nenhum respeito pelos direitos civis e políticos que toda pessoa possui no que diz respeito a não ser “submetido a torturas ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (ONU, 1948, art. 5) e a que “toda pessoa tem o direito, em plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial” (ONU, 1948, art. 10), entre outros. Esses direitos contrastam com o procedimento utilizado pelo regime, que prendeu pessoas sem julgamento em tribunais, levadas a centros de detenção onde foram torturadas e, algumas delas, fuziladas. Durante a ditadura, os direitos humanos foram violados por meio da coerção da livre circulação , detenções arbitrárias, prisão, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, execuções coletivas, negação do direito de apelar das sentenças dos tribunais marciais, homicídios, exílio, perseguições, sequestros, intimidação, tentativas de homicídio, ameaças de morte, buscas e apreensões, exonerações e vigilâncias, além de danos ao livre pensamento e à liberdade de expressão (BCN, 2023, p.1).
Dessa forma, nas primeiras semanas do golpe civil-militar, foram vividos momentos de terror, inaugurando o longo período da ditadura. Neste, as violações dos direitos humanos se tornaram sistemáticas por meio de instituições estatais já existentes (Forças Armadas, Carabineros de Chile, Polícia de Investigações), enquanto outras foram criadas especificamente para esse fim, como foi o caso da Direção de Inteligência Nacional (DINA, 1974-1977), do Comando Conjunto (1975-1977) e da Central Nacional de Informações (CNI, 1977-1990, sucessora da DINA) (BCN, 2023, p.1).
Sem dúvida, esses eventos de violação de direitos tornam-se altamente significativos para um país que busca compreender o que aconteceu e que deixou uma ferida profunda em tantas famílias por gerações. No caso dos desaparecimentos, até agora não há informações sobre o paradeiro dos entes queridos. A dureza e o horror da ditadura foram analisados sob as dimensões histórica, política e de violação dos direitos humanos. No entanto, ainda existem espaços pouco explorados que precisam ser revelados, por justiça e memória, pois nessas análises a perspectiva de gênero não foi abordada em sua magnitude, nem focada na medida da importância de examinar sob tal prisma esse episódio sombrio de nossa história. A exclusão desse elemento decorre de múltiplos fatores, incluindo a falta de visibilidade adeq uada para as críticas feministas aos direitos humanos, onde questiona-se o caráter androcêntrico sem considerar as particularidades ou a diversidade do humano. Ao longo de décadas, a história foi concebida como uma narrativa alheia às peculiaridades, na qual o que aconteceu é igual para homens e mulheres, considerando a visão patriarcal como eixo hegemônico transversal dos eventos. Ao mesmo tempo, a análise social é refletida a partir dos grupos de poder, com as Forças Armadas e da Ordem agindo em aliança com a Doutrina de Segurança Nacional promovida pelos Estados Unidos em oposição aos grupos politicamente associados à esquerda. Por esse motivo, cinquenta anos após o golpe, propomos levantar o véu e contribuir com a análise desse evento a partir da perspectiva de gênero, permitindo desdobrar novos olhares e compreensões para esse período. Daí a importância de olhar com os olhos de mulher para a ditadura civil-militar chilena.
Fé & militância política se cruzam? https://tinyurl.com/y4j4hza5
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