Primeiro vem o medo de falar
Mia Couto falou do medo de encolerizar milícias de modelo norte-americano que se atribuem o direito de desautorizar o uso de certas palavras
José Eduardo Agualusa/O Globo
Numa recente entrevista a um jornal baiano, o Correio, o escritor Mia Couto queixou-se de ter medo de falar. O romancista moçambicano, que estará hoje, sábado, na Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), não se referia à situação política no seu país. Referia-se ao medo sentido por muitas pessoas de escreverem ou dizerem algo que possa encolerizar as milícias fundamentalistas, de modelo norte-americano, que hoje se atribuem o direito de desautorizar o uso de certas palavras, tidas como tendo o poder de atrasar a construção de toda uma nova ética global.
Na referida entrevista, Mia denuncia uma desastrada tentativa de censura, na Alemanha, relativamente a um dos seus romances: “Quando cheguei, o diretor da editora estava reunido com editores e tradutores, e havia uma discussão sobre um livro meu, que se passa no final do século XIX. Um general português estava insultando um moçambicano e o chama ‘preto’. O tradutor dizia que eu não podia fazer isso em alemão, porque seria politicamente incorreto. (…) Eles disseram, ‘bom, temos uma sugestão’, (…) e a solução era usar ‘excessivamente pigmentado’ para dizer preto”.
O escritor angolano João Melo enfrentou uma situação semelhante, há poucas semanas, quando os seus editores ingleses se recusaram a incluir um conto intitulado “O perigo amarelo”, numa coletânea do autor recentemente lançada naquele país: “And suddenly the flowers withered and other stories”. Aparentemente, o conto, ou talvez apenas o título do conto, aliás profundamente irônico, poderia ferir os sentimentos da comunidade de origem chinesa.
No meu caso, uma breve referência a um engenho nuclear miniaturizado que explode em Israel, por iniciativa de um grupo extremista judeu, no romance “Os vivos e os outros”, sobressaltou os editores britânicos. O livro foi publicado no Reino Unido, mas sem qualquer referência a Israel.
Existe hoje maior liberdade de expressão em muitos países africanos, ainda que com democracias imperfeitas, do que no mundo ocidental.
Inúmeros escritores, um pouco por todo o Ocidente, estão sendo censurados por utilizarem palavras como gordo, anão, cego, e tantas outras, consideradas ofensivas e degradantes. Isto, independentemente de essas palavras poderem servir para definir a personalidade dos próprios personagens que as utilizam. Um romance de época, por exemplo, perde todo o sentido, com os personagens pensando e falando como intelectuais (assustados) do século XXI.
Da mesma forma que construímos uma língua, somos também construídos por ela. Então, sim, devemos prestar mais atenção à linguagem que utilizamos no nosso dia a dia. Não acredito, contudo, que consigamos construir uma nova ética global promovendo o apagamento de palavras — e da memória que cada uma delas carrega —, e censurando romances, ensaios ou outros textos.
Como lembrou Mia Couto, citando Lenin, na entrevista ao Correio: “A melhor maneira de atacar uma ideia é defendê-la de forma ridícula”.
Primeiro, vem o medo de falar. Porém, se não falarmos, o que vem a seguir é ainda mais medo. Medo de falar, medo de pensar, medo de viver. O medo como doença crônica. É o que sentem todos os dias as pessoas que vivem em regimes totalitários. [Ilustração: Retrato de Mia Couto por Agualusa]
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