10 abril 2024

Comunicação digital dispersiva

Byung-Chul Han e a “crise da narração”

Pensador sul-coereano provoca: smartphones são o oposto da conectividade – permitem apenas uma troca acelerada de informações. A alteridade é eliminada. Precisamos resgatar as narrativas que criam coesão social e comunidades – e não seres de consumo
Luís Guilherme Vieira Allegro, na Revista Rosa/OutrasPalavras


Um dos grandes esforços da filosofia de Byung-Chul Han é esmiuçar as engrenagens que constituem a existência humana sob o capitalismo neoliberal. Em A crise da narração, o aspecto da vida contemporânea examinado diz respeito ao seguinte diagnóstico: o excesso de referências, em vários tipos de discurso, à noção de “narrativa”, assim como a moda do “storytelling”, são exatamente o sintoma de uma crise narrativa. A época que tanto fala em narrativas é, na verdade, uma época pós-narrativa.

Han parte de uma constatação que é de ordem fundamentalmente antropológica, mas que é explicitada apenas ao fim de seu ensaio: o ser humano é um “animal narrans”, para quem “viver é narrar” (p. 132). Mas o que se entende por “narração”?

A narração transforma o ser-no-mundo em um estar-em-casa, ancorando-nos solidamente no ser, com isso dando à vida “significação, apoio e orientação”: trata-se de uma “técnica simbólica de abrigo” (p.11), uma “forma de desfecho” que “constrói uma ordem fechada que cria significado e identidade” (p.12). Narrações criam comunidades e conectam pessoas “na medida em que fomentam a capacidade de empatia” (p. 13); elas produzem um contínuo temporal e “transformam o acaso em necessidade” (p. 14).

Por meio de uma argumentação que opera no interior de antinomias bem estabelecidas, Han — tendo, ao longo de todo o ensaio, Benjamim como seu interlocutor privilegiado e já de saída retomando suas famosas reflexões sobre o narrador — mostrará como, já desde a modernidade, a narração entra em uma crise que atinge seu paroxismo na modernidade tardia, encarnada no regime neoliberal contemporâneo.

Possuímos hoje uma “consciência narrativa” que só se torna possível justamente em uma época pós-narrativa: é assim que, quando se percebe o caráter de construção presente em uma narrativa, ela perde “sua gravitação, seu mistério, sua magia”, “seu momento interno de verdade”, e passa a ser entendida como “contingente, substituível e mutável”, deixando, assim, de ser “vinculante e unificadora” (p. 10). Além disso, a dissolução de fronteiras, típica da modernidade tardia, manifesta-se também no âmbito da narração por meio de aberturas que implodem o elemento de conclusão e de encerramento que lhe são próprios, a que nos referimos acima.

Se nos tempos pré-modernos a própria vida “estava ancorada em narrações” (p. 62), se na modernidade a pura facticidade da vida desnuda, que deixa então de ser narrável, podia ser contrabalanceada pela narração (é essa a conclusão a que, lembra-nos Han, chega o protagonista de A náusea), na modernidade tardia essa vida “sem rima nem razão” carece de “qualquer fantasia narrativa” (p. 66). Hoje, “as informações não se deixam vincular em uma narração. Com isso, as coisas se desfazem. O contexto significativo cede seu lugar à justaposição e à sucessão sem sentido dos acontecimentos” (p. 66). O que então passa a ser utilizado para o encobrimento do vazio de sentido da vida é, em vez do narrar, o postar, como examinaremos mais adiante.

Vemos assim como o grande antípoda da narração é a informação. Sempre acompanhando Benjamin, Han mostra como “ser e informação são mutuamente excludentes”, daí a “carência de ser” (p. 14) da sociedade da informação. Se a narração oferece um sentido — inclusive na acepção de “direção” —, em uma sociedade dominada pela informação encontramo-nos bem informados, mas desorientados. A informação, portanto, intensifica a experiência da contingência. Aditiva e cumulativa, ela se reduz à curiosidade e ao interesse pelo que está próximo, tornando tudo disponível e, com isso, dispensando o olhar longo, lento e contemplativo que só pode operar nas distâncias. Mas isso não significa dizer que a ausência de afastamento p rópria da informação crie proximidade, pois, se não há distância, não pode haver proximidade, na medida em que distância e proximidade se condicionam mutuamente.

A lógica da informação convida a uma hiperatividade de ordem comunicacional que impede que o tédio — “o pássaro de sonhos que choca os ovos da experiência” (p. 25), segundo Benjamin — possa aparecer. Com essa sobrecarga de nossos órgãos de percepção, não podemos atingir a “profunda distensão psíquica” que apenas o ócio nos oferece e que é a condição necessária para que a narração possa emergir.

À informação contrapõe-se a figura narrativa da “notícia” (aqui, claro, não no sentido midiático do termo) ­– essa, sim, inserida em uma história e com uma estrutura espaço-temporal marcada pela distância, à qual estamos entregues “como a um poder do destino” (p. 18). A notícia tem uma amplitude temporal e narrativa que a relaciona ao porvir. Nesse sentido, o narrador se contrapõe ao repórter. Enquanto o último se move no âmbito da explicação e da explicitação, que torna tudo disponível, o primeiro retém explicações de modo a aumentar a tensão narrativa e o mistério. Pois “narrar é um jogo de luz e sombra, do visível e do invisível, da proximidade e distância” (p. 86). Já a informação tem como marca fu ndamental a transparência. Han fala, nesse ponto, do “inferno da transparência” — uma nova figura do inferno em sua obra, que nos remete ao “inferno do igual”, conceito utilizado em obras anteriores para se referir à pseudodiversidade — à diversidade sem alteridade — promovida pelos regimes neoliberais. 

Ao ser transparente, a informação se torna desprovida de aura. O desencantamento do mundo em que hoje vivemos se situa para além do desencantamento weberiano, ligado à racionalização do mundo operada pela ciência: trata-se do desencantamento digital, em que crianças “caçam informações como ovos de Páscoa digitais” (p. 80). Assistimos a uma “desauritização” da vida marcada pela “pura facticidade do mero ser-disponível-aí” que impossibilita a narração: “facticidade e narratividade são mutuamente excludentes”. Em um mundo desencantado, as relações são reduzidas à causalidade, sempre “mecânica e externa”; afastamo-nos da “profunda simpatia que conecta seres humanos e coisas” e de um mundo “no qual as coisas se relacionam entre si fora do co ntexto causal e trocam confidências” (p. 78). Trata-se, agora, de um mundo de objetos que deixam de ser um “Tu”, tornando-se um “Isso silente”: “não há mais nenhuma troca de olhares com o mundo” (p. 83, grifo do autor). Um mundo, em suma, dissolvido em dados e informações.

E é exatamente a digitalização que marca um limite importante das reflexões benjaminianas, que Han sempre acompanha de perto. Benjamin pôde testemunhar apenas o advento da imprensa. Ocorre que, com a digitalização, “a informação alcança um status completamente diferente: a própria realidade passa a ser moldada por informações e dados” (p. 27, grifo do autor), o que conduz a uma “atrofia da experiência da presença imediata” (p. 27). Em nossa época, a informação se desenvolve como “nova forma de ser” e, em aliança com o neoliberalismo, cria uma forma de dominação que não é repressiva, que não opera com mandamentos e proibições, mas que é sedutora e smart e que, em vez de tentar nos calar, exige que “comuniquemo s nossas opiniões, nossas necessidades e preferências, que narremos nossa vida, que postemos, compartilhemos e curtamos” (p. 28). Trata-se aqui, portanto, de uma liberdade que “não é suprimida, mas explorada” (p. 28).

Nesse cenário, o smartphone surge como “panóptico digital” que, governado pela lógica da coleta de dados a serviço do monitoramento, controle e exploração econômica do “Phono Sapiens”, cria um paradoxo em que “a crescente conectividade nos isola”: “estar conectado não significa estar vinculado” (p. 119). Até porque somente narrações possuem poder de vinculação, e o que o smartphone permite é apenas a troca acelerada de informações. Os stories do Instagram são mais uma figura da pseudonarração: “meras representações de si mesmo” desprovidas de “duração narrativa”, eles não passam de “autopromoções pornográficas ou anúncios”. Han retoma aqui suas reflex&otil de;es sobre a dualidade erotismo/pornografia, presente em obras como A agonia do Eros: a informação, na medida em que não envolve o velamento com sua eloquência de natureza narrativa, é obscena e pornográfica, no sentido de ir direto ao ponto e tornar tudo disponível sobre uma superfície gélida.

Falamos acima dos stories do Instagram, mas a grande figura de pseudonarração evocada por Han ao longo do ensaio é o storytelling, a técnica de comunicação utilizada sobretudo pelo marketing para “transformar as coisas desprovidas de valor em bens valiosos” (p. 127) e criar narrativas que prometem vivências especiais para o consumidor. Consumimos mais narrativas do que coisas — inclusive narrativas morais, como as referentes ao fair trade, cuja única função é aumentar a autoestima do consumidor. Essa instrumentalização e comercialização de narrativas (“storytelling é storyselling”) mostram como o capitalismo atual se apropria da vida em nível pré-reflexivo, pois histórias são usadas para provocar emoções, levando-nos a operar em um campo que escapa de nosso controle consciente e de nossa crítica. Aliás, dados e informações também não são filtrados pela reflexão, não são interpretados ao adentrar nosso campo de visão. Tudo isso gera “uma psicopolítica […] que estaria em condições de se apoderar do nosso comportamento no nível pré-consciente” (p. 54).

A tela plana do smartphone também tem como consequência o advento de uma alteridade que deixa de ser percebida como “contraparte em forma de rosto”, como um outro em que transparece um olhar, resultando assim em um outro consumível e desprovido de alteridade. Mas “o rosto exige distância. Ele é um Tu, e não um Isso disponível” (p. 96). Esse desaparecimento do outro se alia à “crescente narcisização da percepção” (p. 98), em que a alteridade é eliminada “em favor da imagem imaginária do espelho”, fazendo do smartphone “um espelho digital que provoca uma reedição pós-infantil do estado do espelho” (p. 98). O diálogo aqui, como se vê, é com Lacan: “o digital submete a tríade lacaniana no Real, Simbólico e Imaginário a uma reconstrução radical. Ele desconstrói o Real, em favor do Imaginário, faz desaparecer o Simbólico que incorporava os valores e as normas da comunidade. Em última análise, isso resulta na erosão da comunidade” (p. 98). E, quando falamos em narração, é também e sobretudo de comunidade que se trata.

Narrativas criam coesão social e produzem comunidades. Han retoma as reflexões de Peter Nadas (p. 121), que descreve a comunidade narrativa como uma “comunidade sem comunicação”, em que a vida “não é feita de vivências pessoais, […] mas de silêncios profundos” — um silêncio que apenas a cumplicidade que advém de uma genuína abertura ao outro pode oferecer (e aqui poderíamos nos lembrar das belas passagens, em obras como Favor fechar os olhos e A expulsão do outro, em que Han reabilita Hegel para descrever a dinâmica dessa abertura, ligada ao que ele chama “existência afável” em obras anteriores). Na tagarela e barulhenta sociedade da informação contemporânea, formada por consumidores solitários, a “contemplação ritual que ratifica o conte& uacute;do coletivo da consciência” dá lugar a uma comunicação excessiva, regida por narrativas neoliberais (como a do desempenho) que impossibilitam a criação de um “Nós” e que desarticulam a solidariedade: “quando todos reverenciam religiosamente a si mesmos e são sacerdotes de si mesmos, quando todos se produzem, se performam, nenhuma comunidade estável pode ser formada”. É assim que uma “comunidade sem comunicação” dá lugar a uma “comunicação sem comunidade”. Sem narrativa comunitária, a própria política se torna inviável, pois a política versa sobre a ação comum. E mais: ao se ver reduzida à solução de problemas e à administração, a política prescinde de seu caráter narrativo capaz de abrir o futuro, oferecer sentido e o rientação e desenhar mundos possíveis, pois “toda ação que transforma o mundo pressupõe uma narração” (p. 132). Embora a modernidade tenha dado início ao ocaso da narração, ela também soube produzir narrativas plenas de aura, que acenavam com um porvir a partir da crença no valor da ruptura com a tradição e prometiam uma forma de vida diferente. Isso se perde na “exausta modernidade tardia”, que deixou de lado “toda a sua coragem narrativa, toda a coragem para uma narrativa transformadora do mundo”: trata-se agora de um “continuar assim, sem alternativas” (p. 40).

Como não poderia deixar de ser, a crise também atravessa o campo artístico. Aqui, a interlocução com Benjamin se dá a partir dos escritos do filósofo alemão sobre Baudelaire. Baudelaire soube incluir em seu próprio fazer artístico a experiência moderna do “choque”, ou seja, o fato de que a consciência do homem moderno está constantemente em estado de alerta, à espreita diante de estímulos excessivos, que então tenta atenuar, o que produz a “vivência” (definida, portanto, como choque atenuado) e se diferencia da “experiência” (em que um olhar contemplativo poderia se demorar). Ora, ocorre que, em tempos de tela digital — por meio da qual passamos a perceber a realidade — as impressões oriundas da realidade, de tão reduzidas, sequer contêm esse elemento de “choque”: “o choque d& aacute; lugar ao like” (p. 95). Segundo Han, “na era da Netflix, ninguém falará da experiência de choque em relação ao filme. Em tempos de binge-watching, o espectador é engordado como gado consumidor” (p. 98). É nesse cenário que Han, como em obras anteriores, evoca sua bête noire, o artista Jeff Koons, cujas obras se situam em posição “diametralmente oposta ao choque”, refletindo o mundo do consumo, exigindo “apenas um simples ‘uau’ do espectador” e visando simplesmente agradar (“ele poderia ter dito: o lema da minha arte é o like” — p. 100).

Outra consequência da época em que a informação formata e determina nosso modo de ser é que tendemos a nos tornar desprovidos de destino e de uma autêntica historicidade. Se já na modernidade podemos falar em uma atrofia temporal que conduz a uma desintegração do tempo e a uma fragmentação da vida, a digitalização, momento em que “a realidade se desintegra em informações com uma margem estreita de atualidade” (p. 48), apenas intensifica esse processo. A temporalidade passa a ser regida por uma simples sequência do presente. Para esmiuçar esse processo, Han nos remete ao Heidegger de Ser e tempo – obra que, segundo o autor, “ao contrário do que afirma Heidegger, não é uma análise atemporal da existência humana, mas um reflexo da crise temporal da modernid ade” (p. 46). Vemos como, em um momento em que o ser humano perde a ancoragem narrativa no ser e é forçado a viver de um instante para o outro, restaria apenas ao eu o esforço — a “força muscular” — “para contrair o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte, transformando-o em uma unidade viva que permeia e engloba todos os eventos e acontecimentos” (p. 46). Só por meio do eu o ser-aí não se desintegrará em “uma soma das realidades momentâneas de vivências que vêm e desaparecem uma após a outra” (p. 48) e será ancorado “na simplicidade de seu destino” (p. 48). Também caberá ao eu criar as próprias condições para que haja uma historicidade autêntica e uma estruturação temporal da existência. São exatamente essas fun&ccedi l;ões do eu, que permitem ao ser-aí assegurar-se de si mesmo, que se tornam ameaçadas em uma época em que nos rendemos às realidades momentâneas e experimentamos a “sensação de impermanência que cria uma sutil compulsão para se comunicar mais”. Aliás, a própria felicidade tem, como condição necessária de sua existência, uma estrutura narrativa, pois ela “não é um acontecimento pontual”, possuindo “uma longa causa que se estende até o passado” (p. 43). Mas “quando tudo nos lança em um frenesi de atualidade, quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (p. 44).

Isso remete à temática da memória. Enquanto a memória e a recordação se movem no âmbito de uma interioridade que é de ordem narrativa, na medida em que criam relações, vinculam acontecimentos e apresentam uma seletividade, fazendo escolhas e recortes, “a época pós-narrativa é uma época sem interioridade. A informação vira tudo do avesso. Em vez da interioridade de um narrador, temos a vigilância de um caçador de informações” (p. 71). A contrapartida da recordação é a figura do banco de dados, em que o armazenamento é cumulativo e exaustivo, e também a fotografia, que “retrata o dado sem internalizá-lo”, assim se situando no campo da “facticidade cronológica” (p. 81) (aliás, as selfies, diz o autor, são usadas menos para a recordação do que para a comunicação — e devem ser entendidas não tanto como um caso de narcisismo, mas a partir da necessidade de produção contínua de si diante do vazio interior). A grande referência de Han aqui é a mémoire involontaire de Proust (mas também reflexões de Paul Virilio e Susan Sontag), que permite que a contingência do tempo seja superada e que tenhamos uma experiência da ordem do verdadeiro, pois, nessa memória, “dois momentos separados de tempo se vinculam e se condensam em um aromático cristal de tempo” (p. 72), de maneira tal que “o rosto rememorado da avó é experienciado como sua imagem verdadeira. A verdade é tomada por verdadeira somente depois. Ela tem seu lugar na recordação enquanto narração” (p. 72). Na época da informação, a memória degenera e se torna mero amontado de caráter aditivo, desprovido de história.

O tempo narrativamente carregado e o senso intensificado de ser presente, por exemplo, nas festividades religiosas (“no tempo como narração, não há apenas segunda, terça, quarta… mas Páscoa, Pentecostes, Natal, como estações narrativas” — p. 63), dão lugar à lógica do espetáculo comercializado e ao lazer destinado ao consumo.

Além do tempo, também nossa atenção passa a ser fragmentada, o que impede a formação de uma escuta que se demore de modo contemplativo no que é narrado. De fato, qualquer narração pressupõe uma “comunidade de ouvintes atentos”, pois “narrar e escutar histórias se condicionam mutuamente” (p. 25). Hoje, estamos “perdendo a paciência para estar à escuta e a paciência para narrar.” A escuta, na verdade, “se concentra principalmente não no conteúdo que está sendo partilhado, mas na pessoa, no quem do outro”; ela “não é um estado passivo, mas um fazer ativo” que “inspira o outro a narrar e abre um espaço de ressonância no qual quem narra se sente visado, sente que lhe escutam, e até mesmo se sente amado” (p. 117). Os médicos de hoje já nã ;o dispõem de tempo para uma escuta genuína da história do paciente. É que também no campo da saúde a crise da narração dá as caras.

Sempre de braço dado com Benjamin, Han se pergunta até que ponto não poderíamos pensar em “toda doença” como um “bloqueio interno que pode ser removido por meio do ritmo da narração” (p. 112). A psicanálise, as narrativas religiosas que oferecem conforto e esperança, a mãe que narra histórias para a criança doente e mesmo as teorias da conspiração são exemplos do poder terapêutico da narração; as narrativas de crise servem exatamente para a superação de crises e “as preocupações são despojadas de sua facticidade opressiva ao serem colocadas em uma aparência narrativa” (p. 115). Hoje, apenas a psicoterapia e a psicanálise “mostram reminiscências do poder curativo da narração”.

A presença massiva da lógica dos dados, correlata à crise da narração, também se faz notar no âmbito da teoria. Em uma época que parece acreditar que os números falam por si (quando na verdade eles nada narram), os dados diretos substituem a teoria: como diz o editor-chefe da revista Wired, citado por Han, “quem sabe por que as pessoas fazem aquilo que fazem? A questão é que fazem, e podemos rastrear e medir isso com uma facilidade sem precedentes” (p. 102). Nesse modo de conhecimento orientado pelos dados, nada é de fato explicado, pois não se trata de estabelecer nexos causais ou conceituais; apenas são apontadas correlações entre as coisas, “e correlações são a forma mais primitiva de conhecimento” (p. 102). Assim, “o porquê é completamente substituído pelo isso-é-assim incompreensível”; afastamo-nos da “forma mais elevada de conhecimento, qual seja, a compreensão”. Se a inteligência calcula e computa, apenas o espírito narra. E a inteligência artificial “não pode pensar porque não pode se apaixonar, porque não é capaz de uma narração apaixonada” (p. 109).

Também uma filosofia “que reivindica ser uma ciência exata” é uma filosofia em declínio, o mesmo valendo para a filosofia acadêmica, que “se esgota na administração da história da filosofia” (p. 109, grifo do autor) — isso porque a filosofia possui um “caráter narrativo originário”. Dos diálogos de Platão, com seu recurso ao mito, ao cogito cartesiano, passando pela teoria moral de Kant e pela transvaloração de todos os valores de Nietzsche, o que vemos é uma “narrativa enquanto risco e celebração, até mesmo enquanto aventura” (p. 108), que abre uma nova visão de mundo. A filosofia “emudece”, “priva-se de sua própria linguagem”, quando perdemos coragem para a narração inerente ao fazer filosófico digno desse nome e faze mos dela não um risco, mas uma burocracia. É que o próprio pensamento é, “em última análise, ele próprio uma narrativa, que procede em etapas narrativas” (p. 110).

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