14 agosto 2024

Enio Lins opina

Delfim Netto e a lembrança de um tempo em que a direita pensava
Enio Lins 

Nesses tristes tempos em que a extrema-direita se funde com o banditismo mais chulo e que o militarismo se confunde com milicianismo, é importante lembrar que a destra, no Brasil, já ostentou personagens inteligentes, cultos. Brilhantes alguns. Delfim Netto, morto na segunda-feira, 12, aos 96 anos, é um desses seres que a estupidez bolsonarista gostaria de varrer do mapa da terra plana como um péssimo exemplo – quiçá até um “melancia” no linguajar dessa gente.


DELFIM NA DITADURA

Civil, Antônio Delfim Netto foi o principal expoente do planejamento econômico na ditadura militar, brilhando numa constelação com vários astros de luz própria, como Roberto Campos (1917/2001) e Mário Henrique Simonsen (1935/1997) – só para citar mais dois. Bob Fields, reacionário até a medula, foi um grande estrategista do liberalismo, e participou da Conferência de Bretton-Woods, em 1944, onde e quando foram inventados o FMI e o Banco Mundial. Simonsen dizia “ter ficado rico por acaso”, tinha mente privilegiada, e o coração dividido entre a ópera, xadrez, boa comida, bom uísque e muitos cigarros; foi um dos primeiros conservadores a alertar para a gravidade social da favelização que grassava no Rio de Janeiro e se reproduzia pelos principais centros urbanos. Repetindo, naquele universo da direita pensante, Delfim foi o maior entre os “tecnocratas”: economista, professor, ministro da Fazenda, do Planejamento, da Agricultura, e diplomata (embaixador na França).

DELFIM NA DEMOCRACIA

Delfim foi eleito deputado federal por São Paulo em 1986, e reeleito em mais quatro oportunidades, completando 20 anos de presença no Congresso Nacional, onde se pautou pelo diálogo sem discriminação ideológica, procurando contribuir com todos os presidentes da República durante esse tempo (Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula) – do petista, inclusive, veio um dos depoimentos mais expressivos: “Durante 30 anos eu fiz críticas ao Delfim Netto. Na minha campanha em 2006, pedi desculpas publicamente porque ele foi um dos maiores defensores do que fizemos em políticas de desenvolvimento e inclusão social que implementei nos meus dois primeiros mandatos. Delfim participou muito da elaboração das políticas econômicas daquele período. Quando o adversário político é inteligente, nos faz trabalhar para sermos mais inteligentes e competentes”. Chico Alencar, deputado federal do Psol, tido de extrema-esquerda, postou: “Eu o conheci na Constituinte, quando fui defender teses de moradia popular, a convite de Vladimir Palmeira. Como deputado, vi um homem inteligente, educado e sarcástico. Indagado sobre a ditadura, a quem tanto serviu, não se alongava: 'foram as circunstâncias...'. Na democracia, sucessivamente eleito, mostrou-se uma direita com ideias, de diálogo. Diferente da que predomina hoje”.

MODESTO TESTEMUNHO

Por duas vezes troquei umas palavras com Delfim Netto. A primeira, num restaurante em São Paulo, apresentado pelo jornalista Mário Sérgio Conti; conversamos rapidamente sobre culinária, especificamente ostras (uma das preferências dele e minha). A segunda, reapresentado por Luiz Otávio Gomes, em Brasília, num congresso da CACB (Confederação das Associações Comerciais do Brasil), e o papo foi genérico, político, para “fazer sala” antes dele proferir a palestra para a qual ele tinha sido convidado. Dessas duas ocasiões-relâmpago me ficou confirmado o lido sobre o personagem: um homem culto, tranquilo – e muito atencioso com gente desconhecida.

Para Delfim Netto, meu tributo e meu reconhecimento.

[Ilustração: Chico Caruso]

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