30 abril 2025

Palavra de poeta

No fundo
Priscila Alba 

No fundo,
cada gesto performa uma espécie de palavra,
uma noite quente e estrelada,
o canto dos pássaros,
os carros passando na rua,
pessoas nos karaokês,
as mãos da amada no rosto,
o abraço na noite, o aconchego do colo,
o piscar – ou mesmo a falta – dos olhos…

No fundo,
cada mínimo gesto perfaz uma espécie de palavra
e esses gestos,
em suas misteriosas (mas intuíveis) ligações
formam uma linguagem com que a vida fala conosco,
uma linguagem que se vê,
ausculta,
e novamente,
já traduzida,
é devolvida em gesto.

Gestos sem sujeito ou predicado,
Gestos que os poros do corpo lêem.

Essas palavras silenciosas para qualquer um inexperiente no gesticular da Vida
Têm o poder de dizer o que a palavra, propriamente dita, é incapaz
e portanto,
cala.
Por essa espécie de linguagem subterrânea das coisas
a Vida fala.

Gestos doces e amargos,
Graves e agudos,
Sussurrados ou gritos.

Um piscar de olhos no lugar de um “eu te amo”
O brilho no olhar ao invés de “senti a sua falta”,
O abraço apertado como “quero você”.

Tudo sempre comunica algo.

A opacidade dos olhos e o desamor
O desvio do corpo e a distância das almas…

Como toda linguagem, os gestos também ligam e desligam pessoas,
mas diferente daquela, ainda quando desligam
formam um sentido.

Tácito, insuspeitado para qualquer órgão
mas inescapável à alma
cativa dessa semântica toda feita de movimentos vivos.

Assim é que o significado de um gesto jamais se poderia dicionarizar,
pois a cada momento, em cada corpo,
a gramática outra-se, altera-se,
é singularizada em frequência e ritmo.

Por isso a alma é a melhor leitora
porque só ela é capaz destas frequências,
das modulações rítmicas
(ou arrítmicas)
inscritas no mais profundo lugar do corpo
o escuro escuros, coração.

Mas um dia,
sem porquê nem para
os gestos cessam
e também essa linguagem passa a silenciar.

Diferentemente da outra,
quando a linguagem gestual cala
torna novamente a dizer,
e diz que não.

Então o negativo da Vida aparece
tão vivo quanto qualquer gesto outrora feito,
vivo no vazio pleno
na ausência de si mesmo.

E assim o nada se faz dizer,
por contrastes da memória
por devaneios da lembrança
um nada expressivamente gesto.

Talvez a antiga cosmogonia hesiódica também falasse disso,
pois que o mundo era caos e escuridão,
antecedentes arcaicos da ordem e da luz.

Porque os gestos exigem atenção
um continuado trabalho
mas também a vida cansa.

Um dia o pássaro da árvore lá fora não virá mais cantar,
um dia a rua será interditada,
um dia o frio virá,
uma hora o lápis que percorre esse papel
– também gesto –
Terminará.

Um dia seremos apenas os gestos dos outros
dos bichos que irão nos decompor
das lembranças que terão (ou não) de nós.

Um dia,
sequer seremos os gestos dos outros
e esse talvez seja o gesto mais significativo
puro Nada na liberdade de Ser

[Ilustração: João Câmara]

Desenvolvimento x estagnação econômica no Brasil

O tema é "Desenvolvimento versus Estagnação no Brasil: Economia Política e Macroeconomia do Desenvolvimento".

Os expositores o professor Universidade Federal do Paraná, Fabiano Dalto, o assessor do Departamento de Operações de Mercado Aberto (DEMAB)/Banco Central do Brasil e pesquisador da University of London,Juan Pablo Painceira e o economista do BNDES, Diogo Santos destacam as amarras estruturais da economia brasileira; o atual regime de metas de inflação; o papel do Banco Central e os efeitos dos juros altos sobre o investimento e o crescimento.

Mais: as alternativas de planejamento, financiamento e soberania econômica.

A coordenação é de Maria Pimentel e a moderação de Iago Montalvão.

Simpósio da Grabois debate desenvolvimento e desafios do Brasil no cenário global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/fundacao-grabois-debate.html

Humor de resistência

 

Enio

Postei no X

Estadão protesta em editorial contra "cem dias de bagunça" promovidos por Trump e teme crise da democracia liberal. Sente-se orfão em razão da decadência norte-americana. 

Exército de robôs da China na guerra comercial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/china-robotica-como-diferencial.html

Minha opinião

Minha Casa, Minha Vida para classe média reacende debate sobre reforma urbana no Brasil
Nova faixa de renda de até R$ 12 mil mensais amplia o alcance do programa habitacional e reposiciona a moradia no centro das disputas políticas e sociais
Luciano Siqueira/Portal Grabois
instagram.com/lucianosiqueira65


Minha Casa Minha Vida ampliado sinaliza a retomada da luta pela reforma urbana - O anúncio recente da ampliação do programa Minha Casa, Minha Vida — destaque do governo Lula no âmbito das políticas socialmente compensatórias — reaviva a questão habitacional como uma das pedras de toque da luta pela reforma urbana.

Segundo portaria do Ministério das Cidades, o programa é estendido até renda familiar de até R$ 12 mil por mês, com juros de 10,5% ao ano, 420 parcelas e limite de financiamento de até R$ 500 mil, de imóveis novos e usados (1), devendo alcançar inicialmente cerca de 120 mil famílias.

Hoje, aproximadamente 87,4% da população residem em áreas urbanas, enquanto 12,6% vivem em áreas rurais, segundo o Censo de 2022. Ou seja, cerca de 177,5 milhões de pessoas nas cidades e 25,6 milhões no campo. 

Conforme a pesquisa Déficit Habitacional do Brasil, da Fundação João Pinheiro, referentes a 2022, do total dos domicílios acomodados urbanos no Brasil (excluídos os domicílios rurais, improvisados, rústicos e cômodos), 26.510.673 (41,2%) apresentam pelo menos algum tipo de inadequação. (2)

Historicamente, o modelo de ocupação do território no país é condicionado pela exclusão social, variável que segue se aprofundando.

O pensamento urbanístico  crítico contemporâneo considera que a articulação entre rentismo e neoextrativismo reforça a situação de dependência do Brasil, abrindo caminho para dinâmicas urbanas diversificadas, vinculadas a processos como a reprimarização, a financeirização e a desindustrialização do país. (3)

Além disso, a crescente financeirização do espaço urbano e seu impacto sobre os direitos à terra e à moradia da população mais pobre, analisada consistentemente, dentre outros autores, pela urbanista Raquel Rolnik (4) tem sido, na prática, em certa medida, fator de distorção dos propósitos essenciais do programa Minha Casa, Minha Vida.

Para além das oscilações conjunturais – negativamente nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro -, cabe reconhecer que a política habitacional tem se apresentado pouco eficaz na redução do déficit habitacional, considerando tanto a crescente carência de moradias como o agravamento da precariedade das alternativas informais e espontâneas, parcela expressiva localizada em áreas de risco devido os fenômenos climáticos.

De outra parte, é possível se falar em expansão da fronteira de urbanização para além dos polos preexistentes, na esteira do alargamento da fronteira agrícola sob impulso do agronegócio exportador. (5)

Nas grandes cidades e regiões metropolitanas, territórios considerados nobres e economicamente mais dinâmicos são crescentemente ocupados pelo capital imobiliário.

Fatores que inscrevem na agenda política a necessidade de uma reforma urbana, em dimensão estrutural, “que garanta direitos e serviços ao povo, como moradia digna e infraestrutura, saneamento ambiental, transporte público com ênfase no transporte coletivo, mobilidade urbana, segurança pública, cultura, esporte e lazer... regularização fundiária e combate à especulação... planejamento urbano democrático”. (6)

Trajetória oscilante

No bojo do ascenso do movimento popular e democrático nas duas primeiras décadas deste século, a bandeira da reforma urbana pontificou, mas agora – sob condições políticas complexas e correlação de forças sob muitos aspectos adversa, é mantida como que a meio-pau. Nem comparece com destaque no discurso do governo Lula 3, nem é devidamente agitada pelo movimento social.

À semelhança das demais reformas estruturais necessárias, a luta pela Reforma Urbana percorre caminho prolongado e sinuoso. Do ponto de partida no Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, ocorrido em 1963, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, onde se formulou as bases de um Projeto de Lei, aos dias que correm, sucedem-se avanços e refluxos.

Reflui sob o regime militar e recrudesce nos anos setenta, com a disseminação do movimento de associações de bairros por moradia, regularização de loteamentos clandestinos, pelo acesso aos serviços de educação e saúde e pela implantação de infraestrutura nas áreas de ocupação; ganha conteúdo nos anos oitenta, durante a Assembleia Nacional Constituinte, avança com a criação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana e obtém importante conquista parcial com a aprovação, em 1979, da Lei 6766, que regula o parcelamento do solo e criminaliza o loteador irregular e com a introdução do capítulo temático específico na Constituição de 1988 (artigos 182 e 183) e, onze anos após, com a promulgação da Lei Nº 257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade.

Durante essa trajetória, avança conceitualmente abarcando o planejamento territorial e da moradia, os mecanismos de financiamento do Estado, a expansão das zonas de ocupação ilegal, a expulsão branca da população de menor renda para as cidades periféricas, a fragmentação sócio-territorial, a ineficiência das políticas públicas vigentes, o conceito de “direitos urbanos”, a função social da propriedade e a introdução de instrumentos de participação na gestão pública.

No primeiro governo Lula alcança nível mais elevado, com a criação do Ministério das Cidades, que esboçou um Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano focado na habitação de interesse social, saneamento e regularização fundiária. 

Já no segundo governo Lula, o Ministério das Cidades tem gestão conservadora entrelaçada com a promoção de projetos locais de habitação encetados por organizações populares, mediante financiamento público federal, que absorveram parcelas significativas de lideranças populares em mecanismos de gestão.

Nova Conferência Nacional

A necessária retomada da luta pela reforma urbana pode e deve ser objeto da 6ª. Conferência Nacional das Cidades, prevista para agosto deste ano, com o propósito dediscutir o futuro das nossas cidades... construir a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU)... para cidades inclusivas, democráticas, sustentáveis e com justiça social.” (7)

As circunstâncias de agora diferem sob muitos aspectos do ciclo de luta pela reforma urbana anterior. Tanto em razão da real correlação de forças no plano político, como pelo perfil do contingente populacional que ocupa o território das cidades.

O novo padrão de organização dos trabalhadores no processo de produção de bens e serviços, fortemente dispersivo, tem reflexo na vida da população urbana.

A tomada de consciência de direitos e o impulso mobilizador e organizativo sofrem a interferência de novos padrões de ocupação e a emergência de fatores de dispersão, como o papel crescente das igrejas evangélicas de orientação predominantemente pentecostal, em geral redutoras da luta coletiva.

Tanto quanto enfraquecem a luta sindical, igualmente contribuem para a fragmentação dos movimentos sociais comunitários, seja pelo trabalho remoto, seja pela terceirização e pela subcontratação, seja ainda pela ascensão de um “empreendedorismo” distorcido que arrefece a convergência e os laços de solidariedade.

Um ambiente social que reclama novas formas de abordagem da bandeira da reforma urbana e de organização social e comunitária, tendo em conta os territórios comuns a produtores de bens e serviços, trabalhadores informais, pequenos comerciantes, juventude estudantil, etc.

Em suma, valorizando a experiência acumulada, adotar novas formas de comunicação, de organização e de luta pelo ideário da reforma urbana.

Referências 

(1)  Diário Oficial da União, 5/04/2025
(2)  Fundação João Pinheiro, maio de 2024: 26 milhões de domicílios urbanos brasileiros apresentam algum tipo de inadequação.
(3)  Humberto Miranda, Evaldo Gomes Júnior: Urbanização reflexa: a emergência de arranjos urbanos intermediários no Brasil pós-1990. EURE (Santiago) vol.43 no.130 Conjunto Santiago. 2017
(4)  Raquel Rolnik: Guerra dos lugares. Boitempo editorial.
(5)  Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz: A ordem urbano-regional na dependência rentista-neoextrativista: o caso do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR)
(6)  Partido Comunista do Brasil-PCdoB: Programa Socialista para o Brasil, São Paulo, 2009
(7)  Ministério das Cidades, Convocação da 10ª. Conferência Nacional das Cidades. 

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Simpósio da Grabois debate desenvolvimento e desafios do Brasil no cenário global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/fundacao-grabois-debate.html

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Suprema Corte a mais conservadora em 90 anos + maioria na Câmara e no Senado: cenário perfeito para a confusão tarifária de Trump. E para fazer sangrar a superpotência decadente.

O Tarifaço Trump 2.0 e o impasse da reindustrialização dos EUA https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/eua-tarifaco-e-conflitos.html 

Abraham B. Sicsú opina

Trump e seus reais objetivos?
Abraham B. Sicsú 

Não é fácil compreender. O que realmente significa “ MAGA- Fazer a América Grande Novamente”? Muitas são as interpretações possíveis, qual a verdadeira?

Não se pode negar, está fazendo tudo que havia prometido. Evidentemente, como um bom bufão, com alarido e muitas idas e vindas. Sem jamais reconhecer os recuos, sem jamais dizer que voltou atrás. E, também, deixar explícitas suas reais intenções.

Trouxe a incerteza, criou desconfiança, desestruturou os mercados mundiais, gerou inimigos e a imagem de “senhor do Mundo”. Tudo pode, será?

Na economia americana, começa a desestruturar os estados do centro, aqueles que dependem fortemente da agricultura. Encareceu a mão de obra com sua cruzada contra os imigrantes, fechou mercados com sua tentativa de punir aqueles  que sempre foram parceiros.

Concretamente, criou condições para que a inflação possa se agigantar, os preços dos importados subiram, mesmo com os recuos que teve de fazer, os grandes grupos americanos que tinham globalizado sua produção se vêm em apuros, as margens de lucro são reduzidas, algumas drasticamente.

Nem sempre o explícito é o real, muitas vezes o implícito é o que se procura. Entendê-lo faz parte da busca das principais razões que alicerçam políticas públicas. E essas não são facilmente compreendidas.

O discurso oficial é de que os Estados Unidos estão sendo prejudicados no comércio internacional. Países criaram barreiras aos produtos americanos e subsidiam seus produtos, gerando condições adversas para a economia do país líder, o que se procura é estancar. Isso faria com que as empresas que não seriam taxadas por produzir na América do Norte, desejariam voltar a se instalar lá, gerar emprego e renda naquela economia.

Não se pode negar que alguns resultados já foram alcançados. As empresas de chips que estavam em Taiwan, por exemplo, já anunciaram seu retorno para o País e o setor farmacêutico tem tido negociações intensas para se reposicionar, em parte, para lá.

É bom analisar mais de perto estes segmentos. Notar que são setores muito automatizados e robotizados, em que o custo de mão de obra no chão de fábrica é marginal, em que o custo maior é o de desenvolvimento dos produtos e nos quais a mão de obra mais qualificada e melhor remunerada se apresenta. Têm escalas de produção muito grandes e se destinam a mercados sempre crescentes com demanda consolidada e em expansão.

Poucos são os setores que apresentam essas características. Na grande maioria das cadeias produtivas mundiais, observa-se que a organização segmentada em diferentes regiões do planeta, se alicerça na busca de custos unitários de produção menores, inclusive próximas a fontes de matérias primas estratégicas e mão de obra mais barata. E,muito se investiu numa logística ágil e eficiente que as interconecta.

Sendo assim, a eficácia das políticas de tarifas tem fortes limites e não se apresenta como mecanismo capaz de modificar firmemente a estrutura das cadeias produtivas globais. As idas e vindas nas tarifas assim o demonstram e  as pressões dos grandes grupos econômicos, das grandes multinacionais inclusive, tem levado a mudar fortemente as sanções impostas.

A economia americana está em polvorosa. O agronegócio prejudicado, os grupos industriais, em grande parte, sendo desarticulados, o setor de serviços para o mercado internacional onde correm bilhões de dólares, fortemente questionado e substituído por outros grandes players.

Nem mesmo o objetivo mais explícito, a guerra com a China, parece trazer, de imediato, bons resultados. A China não cede e tem aumentado muito as negociações com o resto do mundo, principalmente com os periféricos como os asiáticos e latino-americanos, além de entrar com grande peso na União Européia.

Evidentemente, o senhor Trump não é nenhum ingênuo e provavelmente tenha previsto muitos desses efeitos. Talvez não na proporção que as reações externas e internas tomaram, mas, sem dúvida, sabia que essas posições contrárias adviriam.

Sendo assim, qual será o motivo real das atitudes tomadas, provavelmente implícito.

Leio um interessante artigo de um professor da Universidade do Missouri. Ele aponta que tudo isso poderia e foi previsto. E acena para uma hipótese alternativa.

Para ele, a principal razão do tarifaço não é o aumento do emprego e reposicionamento das empresas no mercado americano que, reconhece, é limitado.

A principal razão do “Sr. Trump” está ligada á política econômica interna que pretende implantar. Seu objetivo maior, que atende aos interesses do grande capital, seria a redução drástica dos impostos internos. Ou seja, a redução ao máximo de qualquer taxação da produção americana e conseqüente aumento das margens de lucro. E isso faria com que as reações observadas do empresariado, até o momento, sejam bastante tênues. Haveria a expectativa de que esse caminho seja percorrido em breve espaço de tempo.

Só que para fazer isso, precisa-se capitalizar o Estado, o aparato gestor do governo americano. E isto leva a que o tarifaço seja o meio que ele engendrou. Com o tarifaço as receitas governamentais necessariamente aumentarão e poder-se-á ter uma folga que permita o passo adiante, a redução drástica dos impostos internos. Assim teria sido pensado.

Parece um caminho plausível. Tem uma lógica objetiva. Romper acordos internacionais, criar incertezas nos mercados, gerar inflação desproporcional, pode ser um caminho que solidifique o acordo cm o grande capital, inclusive com as Bigtechs através da redução abrupta e drástica dos impostos cobrados.

Isso associado com a busca de uma hegemonia que vem perdendo na área do conhecimento, principalmente, o conhecimento nas áreas mais avançadas pelas empresas americanas, parece ser a aposta de mais longo prazo.

Um caminho tortuoso que ameaça a lógica de estruturação dos mercados, que traz o protecionismo como bandeira para atender as demandas dos influentes capitais internos, ressalte-se, não da população como um todo, mas dos capitais e do mercado financeiro na sua busca alucinante de lucros astronômicos, pode ser a real razão das medidas até aqui tomadas.

Volta-se à velha máxima de que os fins justificam os meios, meios que geram desconforto e sofrimento pela desestabilização do comércio internacional e de suas cadeias produtivas.

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Leia também: Complexidade e ameaças da guerra comercial global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/paz-mundial-ameacada.html

Postei no X

Não é apenas a extrema direita que distorce os fatos para fazer oposição ao governo Lula. A grande mídia dominante faz isso diariamente, com falsa aparência de seriedade. 

Na política, morre pela boca quem quer https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_65.html 

Palavra de poeta

Canção dos rebeldes cansados
Bertolt Brecht 

Quem sempre poupou o sapato
Jamais o viu ficar com furo.
Quem nunca esteve triste ou farto
Também jamais dançou, no duro.

Se o seu sapato se desfaz
De gasto e assim como você
Foi só pra se chutar, é mais
Feliz que você, pode crer.

Pondo o pé na cova é que nós
Bailamos com mais galhardia.
Do último furo Deus sopra
A mais bonita melodia.


[Ilustração: Alexej von Jawlensky]


Cida Pedrosa: Palavra é bicho solto e combate as estruturas de opressão https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/cida-pedrosa-opina.html 

Postei no Threads

Federação formada pelo União Brasil+PP hoje tem quatro ministros filiados, mas promove ato público com discurso oposicionista. Realmente, o Brasil não é para principiantes! 

Lula em queda? Comunicação não é tudo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_3.html 

Cláudio Carraly opina

Mais uma crise da democracia liberal burguesa: análise estrutural, perspectivas e o futuro
Cláudio Carraly* 

A democracia liberal burguesa atravessa uma das fases mais profundas de crise estrutural em sua história contemporânea, sua legitimidade, outrora ancorada na promessa de liberdades civis, sufrágio universal e Estado de Direito, hoje se vê minada por contradições internas agudas, transformações econômicas desestabilizadoras e a emergência de alternativas, tanto as regressivas e autoritárias quanto as progressistas e emancipatórias. A análise desta crise exige um olhar abrangente, que não apenas descreva fenômenos visíveis como a ascensão de populismos de extrema-direita (que historicamente surge como um “coringa” do capitalismo em épocas de profunda crise interna), bem como a corrosão profunda de instituições multilaterais. Precisamos voltar a analisar o caráter de classe intrínseco à democracia liberal, suas limitações históricas e seu papel funcional na reprodução das desigualdades sociais.

Desde uma perspectiva histórico-materialista, a democracia liberal burguesa é compreendida como uma forma específica e historicamente determinada de dominação de classe. Lênin, em sua análise sobre o Estado e a Revolução, foi incisivo ao apontar que a democracia sob a égide do capitalismo opera de maneira fundamentalmente distinta para as diferentes classes sociais, funcionando como uma liberdade mais plena para a burguesia e, simultaneamente, como um sistema de restrições veladas para o restante da sociedade. As conquistas formais, como o voto universal, a liberdade de imprensa e as garantias jurídicas, embora importantes, n& atilde;o alteram a estrutura basilar de poder assentada na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do trabalho, a riqueza continua concentrada nas mãos de poucos, os avanços emancipatórios são raros e demorados.

Georg Lukács, em História e Consciência de Classe, aprofunda essa crítica ao analisar como a sociedade capitalista estrutura todas as relações sociais em torno da forma-mercadoria, gerando um processo de alienação e reificação que afeta não apenas o trabalhador em sua atividade produtiva, mas também o cidadão em sua participação política. A democracia liberal, nesse contexto, torna-se permeada por esse nivelamento forçado, as relações humanas e políticas são coisificadas, e o indivíduo sente-se impotente diante do tamanho aparentemente inexpugnável das estruturas sociais, como o mercado e o próprio Estado, que parecem operar com uma lógica autônoma e incontrolável, expressões concretas dessa dinâmica incluem o financiamento bilionário de campanhas, o poder desmedido do lobby corpo rativo e a influência do grande capital no controle dos conglomerados de mídia, sempre com vistas à manutenção da narrativa dos acontecimentos e alienação dos fundamentos reais da crise perante a opinião pública.

Esta análise ajuda a compreender por que o aprofundamento da desigualdade econômica, exacerbado pelas políticas neoliberais implementadas a partir dos anos 1980, corrói inevitavelmente a substância da igualdade política formal, tanto decantada no que os comunistas chamavam de democracias burguesas. A neutralidade do Estado liberal é crescentemente percebida como uma fachada que mascara sua cumplicidade com os processos de acumulação profunda de riquezas pela elite, enquanto os instrumentos democráticos formais que subsistem internamente nelas, demonstram-se frequentemente incapazes de reverter ou mesmo refrear essa concentração extrem a e contínua de dinheiro e poder.
 
A fragilização das instituições democráticas liberais e a crise de representatividade abriram espaço para a emergência e consolidação de lideranças autoritárias e movimentos populistas de direita em escala global. Fenômenos como o retorno de Donald Trump nos EUA, o fortalecimento de figuras como Viktor Orbán na Hungria, Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros, ilustram essa tendência preocupante, embora as causas sejam multifatoriais, envolvendo desde elementos culturais, identitários e comunicacionais, até a falta de uma pauta mínima unificadora da esquerda mundial, uma análise estrutural n&ati lde;o pode ignorar o terreno fértil criado pela crise socioeconômica, nascida no âmago do próprio sistema capitalista.

Diante da possibilidade do crescimento e triunfo global de movimentos socialistas, a superestrutura capitalista lança sem pudor sua derradeira cartada, que é o apelo ao nacionalismo exacerbado, ao discurso anti-establishment (ainda que defendam interesses das elites políticas, religiosas e econômicas), ao culto da força e à deslegitimação sistemática dos mecanismos de controle democrático, como o judiciário independente, a imprensa livre e as organizações da sociedade civil. Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, oferece ferramentas conceituais precisas para interpretar esse cenário, o conceito de "cr ise orgânica" descreve momentos em que as classes dominantes perdem o consenso e não conseguem mais manter sua hegemonia através da direção político-cultural, recorrendo crescentemente à coerção e ao "domínio puro".
 
Gramsci também identifica o "cesarismo" como uma solução política que pode emergir em tais crises de autoridade e hegemonia, onde uma figura carismática, amparada pelo ou através do aparato repressivo estatal, intervém para arbitrar os conflitos sociais agudos, geralmente restaurando a ordem em favor dos mesmos grupos dominantes, ainda que sob uma nova roupagem política, mudando para nada mudar. Esses líderes frequentemente canalizam ressentimentos e frustrações legítimas de setores da população precarizados ou marginalizados pelas transformações econômicas, direcionando-os, contudo, contr a bodes expiatórios, normalmente a “minoria da vez”, imigrantes, elites culturais, estado laico, assim por diante, e não contra as raízes estruturais causadoras da desigualdade.
 
A arquitetura de governança global construída após a Segunda Guerra Mundial, com instituições como a ONU, o FMI, o Banco Mundial e, posteriormente, a OMC, foi um pilar da ordem liberal internacional liderada pelo Ocidente, com o objetivo declarado de promover a paz, a cooperação e a estabilidade econômica. No entanto, particularmente após a crise financeira de 2008 e com as mudanças no equilíbrio de poder global, essas instituições enfrentam um total descrédito, Noam Chomsky, em obras como “Quem Manda no Mundo?”, argumenta consistentemente que essas instituições foram, desde sua origem, moldada s para servir aos interesses geopolíticos e econômicos das potências hegemônicas, notadamente os EUA.
 
A aplicação seletiva das normas internacionais, o abandono de acordos quando estes têm seus interesses contrariados, o uso unilateral de sanções econômicas e intervenções militares à margem do direito internacional, são evidências dessa dinâmica, confirmando que, a grosso modo, essas instituições que poderiam ser importantes para um processo multilateral decisório, são ao final apenas instrumento ideológico de manipulação internacional de interesses das elites nacionais. A desconfiança em relação ao multilateralismo no atual mundo das democracias liberais reflete n&at ilde;o apenas a percepção de sua instrumentalização pelas grandes potências, mas também, para muitas nações do chamado Sul Global, a sensação de que essas estruturas perpetuam relações neocoloniais e assimétricas. A crise do multilateralismo, portanto, não é apenas um sintoma da decadência da hegemonia ocidental, mas também um fator que aprofunda a instabilidade e a fragmentação da ordem internacional, dificultando respostas coordenadas a desafios globais urgentes como pandemias e mudanças climáticas.
 
Diante desse cenário complexo, emergem movimentos sociais, propostas políticas e reflexões teóricas que buscam caminhos para superar os limites da democracia liberal burguesa, iniciativas como o DiEM25 (Movimento Democracia na Europa 2025), co-fundado por Yanis Varoufakis, tentam articular uma resposta transnacional à crise, propondo a democratização radical das instituições europeias, a implementação de políticas de redistribuição de renda e uma transição ecológica e socialmente justa. Ainda está distante da necessidade da transformação disruptiva necessária para o mund o, mas sem dúvida é um avanço. No campo teórico-político, diversas correntes da esquerda contemporânea retomam e atualizam a ideia de uma "radicalidade democrática” ou "democracia popular", que transcenda a esfera meramente representativa e se estenda ao controle social e democrático da economia e das principais decisões que afetam a vida coletiva. Essa perspectiva dialoga com as propostas históricas de autogoverno dos trabalhadores, como os conselhos operários defendidos por Rosa Luxemburgo como expressão de uma “democracia proletária direta e participativa”.
 
Mesmo pensadores situados fora da tradição marxista mais ortodoxa, como Norberto Bobbio, contribuíram para o diagnóstico da crise. Em O Futuro da Democracia, ele alertava para as promessas não cumpridas da democracia, apontando o fosso crescente entre os ideais democráticos de participação e igualdade e a realidade da apatia política, do poder de grupos ocultos e da persistência e crescimento das desigualdades. Para Bobbio, a vitalidade da democracia dependeria não apenas da manutenção das regras formais do jogo, mas da expansão dos direitos sociais e da capacidade de democratizar esferas para além do Estado, com o as empresas e a administração pública, portanto, é como construir formas de organização política e social que avancem para uma participação popular substantiva e efetiva e com resultados reais na vida das pessoas.
 
A história do capitalismo demonstra que os períodos de crise estrutural profunda foram frequentemente seguidos por ondas de reação autoritária, nacionalismos, extremismo e conflitos interimperialistas. A análise de Lenin sobre o imperialismo, fase superior do capitalismo, já apontava a tendência inerente ao capital monopolista de buscar a expansão, a dominação de mercados e o controle de territórios, gerando rivalidades que culminaram nas grandes guerras do século XX.

Essa linha de análise histórica encontra ecos em críticas mais radicais à socialdemocracia e às vias puramente reformistas. Autores como Harpal Brar, por exemplo, argumentam que, em momentos críticos de confronto de classes, setores da socialdemocracia, ao priorizarem a estabilidade do sistema capitalista e abdicarem de uma transformação revolucionária do status quo, podem acabar, na prática, por facilitar ou legitimar medidas autoritárias que visam conter a mobilização popular e preservar a ordem burguesa.
 
Essas formas de leitura são logicamente controversas, mas levantam questões importantes sobre os limites do reformismo dentro do modo de produção capitalista, principalmente em contextos de crise aguda. Essas análises históricas sugerem que a defesa acrítica da democracia liberal existente, sem um questionamento de suas bases econômicas e de classe, pode paradoxalmente pavimentar o caminho para sua própria negação, seja através do fortalecimento de aparatos repressivos estatais, seja pela ascensão de regimes abertamente ditatoriais em nome de preservar o mal já conhecido. E sob o signo do medo ao novo, acaba exortando o fantasma do porvir, abraçando sem pudores ou escrúpulos as soluções que garantem no final a sobrevivência do capital, mesmo que esta seja uma solução final pelo fascismo.

A crise atual da democracia liberal burguesa não aponta para um destino histórico inevitável, mas abre um campo de disputas e possibilidades, como Gramsci nos ensinou, a história é feita de lutas pela hegemonia, e não de fatalismos econômicos. A questão crucial não é apenas se a forma atual da democracia liberal persistirá, mas quais novas configurações de poder, dominação ou, alternativamente, de emancipação surgirão das suas ruínas ou da sua transformação. De um lado, o risco da consolidação de novos autoritarismos é real, potencializado por tecnolo gias digitais e algoritmos comandados por uma nova elite que potencializa (impulsiona artificialmente) o pensamento extremista de direita e logicamente inviabiliza as tentativas de mobilização do campo oposto, e esse controle e manipulação da informação em massa não está presente em um país apenas, mas em escala global, como nunca experimentamos na história da humanidade.

Estes mecanismos de controle podem assumir formas diversas, desde regimes abertamente ditatoriais até democracias iliberais dóceis, que mantêm uma fachada de normalidade democrática enquanto corroem direitos e liberdades fundamentais do seu povo como se fossem decisões soberanas de seus executivos, parlamentos e judiciário. De outro lado, contudo, persistem e se renovam as lutas por alternativas emancipatórias, ancoradas em práticas de democracia direta e participativa, na busca por uma nova sociedade, se for disruptiva, que seja, mas buscando uma justiça social, econômica radical, humanista e internacionalista.
 
A análise informada por pensadores como Lukács, Gramsci, Chomsky e Bobbio, entre outros, converge ao indicar que uma superação progressista da crise dificilmente ocorrerá dentro dos marcos conceituais e das estruturas de poder do capitalismo liberal, neoliberal, ou quaisquer de seus novos engendros para se reinventar. Exigirá, provavelmente, um rompimento com a lógica da mercantilização de todas as esferas da vida, a democratização profunda das estruturas econômicas e políticas, e a reconstrução da cooperação internacional sobre bases mais justas e igualitárias, rompendo sem olhar para tr&aac ute;s, se não com tudo, mas com muito do que aí está, essa roupa nunca nos serviu e não há de ser agora que servirá. O dilema histórico formulado por Rosa Luxemburgo ecoa com força nos dias atuais: "Socialismo ou Barbárie!".

Cláudio Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

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Arte é vida

 

João Câmara

Agricultura urbana

Aliados na construção de políticas de segurança alimentar e nutricional locais
Com 84,78% da população brasileira vivendo nas cidades, faz-se necessário produzir políticas de segurança alimentar e nutricional pensadas nesse contexto. Desde a escala municipal, o planejamento urbano tem muito a contribuir para o aprimoramento de tais políticas. No entanto, alguns desafios permanecem 
Nathalie Vieira Lucion/Le Monde Diplomatique
 

Até meados dos anos 1990, o planejamento urbano não considerava em seu rol de problemas as questões alimentares. A alimentação era considerada um tema essencialmente rural, associado à produção de alimentos¹, sendo a cidade somente o palco do consumo. Tal paradigma, felizmente está mudando. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) compreende que o aumento da população em áreas urbanas impacta ainda mais os sistemas agroalimentares: quanto maior o número de pessoas nas cidades, maior é a exploração dos recursos naturais². Também é nas cidades que ficam mais evidentes as problemáticas da fome, da baixa oferta e do difícil acesso a alimentos saudáveis, especialmente para as populações periféricas. Em um contexto de incertezas climáticas, a produção e o consumo de alimentos também se tornam pontos preocupantes. 

Tais questões já ocupam espaço nas agendas internacionais de políticas públicas. A superação da fome, a produção de alimentos com menor impacto ambiental e a promoção de cidades sustentáveis, são temáticas já presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Além disso, em média de 300 cidades no mundo já assinaram o Pacto de Milão sobre a Política de Alimentação Urbana, se comprometendo com a construção, execução e aprimoramento de políticas locais alimentares. Em nível nacional, a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades considera a emergência de se produzir políticas neste âmbito, onde vivem 84,78% dos brasileiros³. Lançada em 2023, a Estratégia envolve 60 municípios urbanizados engajados em ampliar a produção, o acesso, a disponibilidade e o consumo de alimentos adequados e saudáveis, sendo seu enfoque as áreas urbanas periféricas e as populações em situação de vulnerabilidade e risco social⁴.   

A inserção das temáticas alimentares na cidade, exige repensar as políticas e o planejamento urbano. E, principalmente, repensá-las desde uma perspectiva mais integrada, a fim de produzir políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, que incitem mudanças significativas nos sistemas agroalimentares. Isso envolve fortalecer a intersetorialidade, entendida como o diálogo e a colaboração entre diferentes setores da administração pública, a fim de produzir em conjunto soluções para questões comuns⁵.  

Assim como a participação social, a intersetorialidade é um dos pilares das políticas de segurança alimentar e nutricional⁶, isso porque possibilita analisar a mesma problemática de diferentes perspectivas – como da assistência social, saúde, educação, segurança pública e outros setores⁷. Food in all policies é um termo em inglês que exprime justamente as possibilidades de aderência da alimentação em políticas variadas⁸. No setor da saúde, a promoção de uma alimentação adequada pode fornecer subsídios para melhoria das dietas, prevenindo doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e obesidade. No setor do desenvolvimento econômico, a alimentação pode ser considerada uma alavanca para a criação de empregos e, no setor educacional, a alimentação adequada possibilita maior foco para aprendizagem. As áreas de meio ambiente podem contribuir com estratégias de produção e consumo de alimentos mais sustentáveis, ao passo que o setor da cultura pode trabalhar com a ideia de que a comida é uma forma de expressão, gerando coesão social. Do ponto de vista da segurança nacional, é imprescindível considerar a alimentação, especialmente em períodos de crises, quando é preciso promover estoques de alimentos.  

Nessa linha, a elaboração, a execução e a avaliação de políticas de segurança alimentar e nutricional de forma intersetorial tendem a ser mais efetivas, já que alinha os objetivos e organiza as ações empenhadas pela administração pública. Em contextos urbanos, permeados por uma diversidade de questões envolvendo a alimentação, o setor do planejamento urbano tem a capacidade de “conectar os pontos”, fornecendo subsídios para a governança local executar políticas públicas inovadoras.  

Curitiba é um caso emblemático na inserção das temáticas alimentares no planejamento urbano⁹. Durante a década de 1980, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) produziu instrumentos de planejamento que levavam em consideração os problemas no acesso à alimentação nutricionalmente adequada às populações periféricas. Também foi o setor de planejamento urbano que apontou a necessidade de ampliar o acesso aos mercados pelos agricultores da Região Metropolitana, melhorando o sistema de abastecimento na cidade.  

A preocupação em evidenciar estas questões no planejamento urbano permanece nas atividades realizadas pelo Instituto, o qual também compõe, desde 2018, a Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar de Curitiba. O IPPUC e os outros dez órgãos da administração pública (das áreas de segurança alimentar e nutricional, saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e lazer e outras), são responsáveis por colaborar no planejamento, execução e avaliação de políticas municipais de segurança alimentar e nutricional no município. Para além do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, produzido intersetorialmente em Curitiba, o IPPUC produziu recentemente outros planos que abordavam as temáticas de segurança alimentar e nutricional, sinalizando as possibilidades em incorporar a segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano.  

No Plano Setorial de Desenvolvimento Econômico (o qual compõe o Plano Diretor atual, com vigência de 2015 a 2025), a questão alimentar está presente em diagnósticos, discussões e proposições de ações, mencionando a agricultura familiar e a produção de alimentos para a capital; o perfil nutricional da população; hábitos alimentares da população; fatores e impactos das doenças crônicas não transmissíveis; e insegurança alimentar e nutricional. Outro plano de destaque produzido em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA), é o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, o qual aponta em diversos momentos os potenciais riscos à segurança alimentar e segurança hídrica, decorrentes das mudanças climáticas. Em outros planos, voltados às diferentes regionais do município (caracterizados como agrupamentos de bairros com similaridades socioeconômicas e culturais, principalmente), foram arquitetados diversos projetos urbanísticos que aliam o acesso aos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional com terminais de ônibus e espaços de lazer. Tais proposições estão associadas com demandas da própria população – em diversos planos regionais, são solicitadas a implantação de hortas comunitárias e são sugeridas melhorias em equipamentos. Além destes planos, o IPPUC, em parceria com a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), publicou um documento intitulado “Os caminhos da comida: o papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar”. O objetivo da publicação é apresentar dados sobre o sistema alimentar de Curitiba, Região Metropolitana e Litoral paranaense, fornecendo subsídios para o planejamento urbano e regional nestes municípios¹⁰. Esta publicação reforça o compromisso do planejamento urbano em Curitiba com as pautas alimentares, tratando no documento temas como: produção de alimentos; distribuição; comercialização; acesso; circuitos curtos; desertos, pântanos e miragens alimentares; consumo alimentar e desperdício de alimentos.   

Ao contrário de Curitiba e outros municípios que foram capazes de aliar a alimentação e o planejamento urbano – como Belo Horizonte (MG), município que estruturou políticas de segurança alimentar e nutricional pautadas na agricultura urbana¹¹ – há ainda aqueles que apresentam dificuldades em realizar tal tarefa. Em determinados casos, as políticas de segurança alimentar e nutricional são tratadas de forma fragmentada, concentrada em poucos setores da administração pública, tendo baixo impacto sobre a construção de políticas e planejamento urbano.  

Existem municípios com baixas capacidades estatais – entendidas como a aptidão do poder público em alcançar seus fins, expressas através da implementação de políticas públicas¹² ¹³. Tais capacidades podem ser medidas do ponto de vista fiscal (arrecadação de impostos, por exemplo), burocrático (presença de servidores especializados para realizar determinadas tarefas) ¹⁴ e pelas relações governamentais com a sociedade civil¹⁵. No caso de Curitiba, há presença de um fundo próprio para a execução de políticas de segurança alimentar e nutricional (resultado de uma alta arrecadação), bem como um corpo de servidores tecnicamente aptos para engajá-las – agrupados em uma secretaria específica para este fim, a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. O Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional também é atuante, coordenando conferências, coletando demandas e organizando debates com a população e atores políticos-governamentais.  

É preciso pontuar também que a presença ou ausência das temáticas alimentares no planejamento urbano é uma opção política. Isso desmitifica a ideia de que os planos são ferramentas neutras¹⁶. Tais documentos, que orientam a execução da política pública, selecionam os problemas a serem abordados e suas possibilidades de solução. Eles também consideram os contextos e limitações da ação pública, como já pontuados no parágrafo acima. 

A importância dada ao tema na agenda política municipal é outro fator que explica a incidência da segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano. Há municípios que mal cumprem com os deveres firmados ao assinarem o termo de adesão ao SISAN – não possuindo Conselhos, Câmaras Intersetoriais de Segurança Alimentar e Nutricional e não elaborando suas políticas e planos locais de segurança alimentar e nutricional. Estes, muitas vezes, negligenciam as problemáticas associadas com a produção, distribuição e acesso à alimentação por não possuírem canais de diálogo diretos com a sociedade civil ou por não conseguirem manter um fluxo de trabalho intersetorial contínuo.  

Apesar de importante e necessária, a inclusão da alimentação em todas as políticas, especialmente no contexto municipal e urbano, ainda é um objetivo a ser alcançado. Para avançar em políticas públicas locais de segurança alimentar e nutricional, é necessário o comprometimento de atores políticos e técnicos com a pauta.  Estes devem estar dispostos à escuta e à construção conjunta das políticas com a população e entre os setores da administração pública. Iniciativas nacionais de fortalecimento das políticas públicas, como a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas cidades, podem ser aliadas neste processo de promover nos municípios a necessária interação entre planejamento urbano e a segurança alimentar e nutricional.   

Nathalie Vieira Lucion é licenciada e bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestranda em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (GEPAD). 

1 POTHUKUCHI, Kameshwari; KAUFMAN, Jerome L. Placing the food system on the urban agenda: The role of municipal institutions in food systems planning. Agriculture and Human Values, [S.l.], n. 16, 1999. p. 213-224. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1023/A:1007558805953>.

2 FAO et al. The State of Food Security and Nutrition in the World 2023: Urbanization, agrifood systems transformation and healthy diets across the rural–urban continuum. Rome: FAO, 2023. Disponível em: <https://doi.org/10.4060/cc3017en>.

3 IBGE. Censo 2022: Agregados por Setores Censitários – Resultados do universo. Disponível em: <https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/>.

4 BRASIL. Decreto nº 11.822, de 12 de dezembro de 2023. Institui a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 dez. 2023. Edição Extra.

5 CUNILL-GRAU, Nuria. A intersetorialidade nas novas políticas sociais: uma abordagem analítico-conceitual. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, Brasília, n. 26, 2016, p. 35-66. Disponível em: <https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/docs/Caderno%20de%20Estudos%2026.pdf>.

6 BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com visas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 set. 2006.

7 CANDEL, Jeroen J. L.; PEREIRA, Laura. Towards integrated food policy: main challenges and steps ahead. Environmental Science and Policy, [S.l.], v. 73, 2017, p. 89-92. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.envsci.2017.04.010>.

8 HAWKES, Corinna; PARSONS, Kelly. Brief 1: tackling food systems challenges: the role of Food Policy.In: PARSONS, Kelly; HAWKES, Corinna. Rethinking Food Policy: A Fresh Approach to Policy and Pratice. London: Centre for Food Policy, 2019. Disponível em: <https://www.city.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/570443/7643_Brief-1_Tackling-food-systems-challenges_the-role-of-food-policy_WEB_SP.pdf> .

9 LUCION; Nathalie Vieira; GRISA, Catia. A alimentação no planejamento urbano de Curitiba/PR. In: MENEZES, Sônia de Souza Mendonça; ALVES, Flamarion Dutra (Orgs.). Os contrastes do rural brasileiro: desafios e alternativas da agricultura familiar diante do avanço do agronegócio e da crise alimentar. Aracaju: Criação Editora, 2024. p. 52-76. Disponível em: < https://editoracriacao.com.br/os-contrastes-do-rural-brasileiro-desafios-e-alternativas-da-agricultura-familiar-diante-do-avanco-do-agronegocio-e-da-crise-alimentar/>.

10 IPPUC; Instituto Escolhas. Os caminhos da comida: O papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar. Curitiba: IPPUC Editora, 2025. Disponível em: <https://ippuc.org.br/publicacoes?backTo=to%255Bname%255D%3DPagina%26to%255Bparams%255D%255Bslug%255D%3Dpesquisa-e-informacoes%26page%3D%25C3%25A0%2520Pesquisa%2520e%2520Informa%25C3%25A7%25C3%25B5es>.

11 IPES-FOOD. What makes urban food policy happen? Insights from five case studies. 2017. Disponível em: <https://www.ipes-food.org/_img/upload/files/Cities_full.pdf>.

12 BERTRANOU, Julián. Capacidad estatal: revisión del concepto y algunos ejes de análisis y debate. Estado y Políticas Públicas, [S.l.], n. 4, 2015, p. 37-59. Disponível em: <https://www.trabajosocial.unlp.edu.ar/uploads/docs/julian_bertranou.%20Capacidad%20Estatal%202015.pdf>.

13 GOMIDE, Alexandre de Ávila; PIRES, Roberto Rocha C. Capacidades estatais e democracia: a abordagem dos arranjos institucionais de políticas públicas. In: GOMIDE, Alexandre de Ávila; PIRES, Roberto Rocha C.(Orgs.). Capacidades estatais e democracia: arranjos institucionais para análise de políticas públicas. Brasília: IPEA, 2014. p. 15-30. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/3098>

14 CINGOLANI, Luciana. The State of State Capacity: a review of concepts, evidence and measures. Maastricht: AFD‐MGSoG/UNU‐Merit Working Paper Series on Institutions and Economic Growth: IPD WP13, 2013. 58 p. Disponível em: https://cris.maastrichtuniversity.nl/en/publications/the-state-of-state-capacity-a-review-of-concepts-evidence-and-mea>.

15 GOMIDE, Alexandre de Ávila; PIRES, Roberto Rocha C. Capacidades estatais em ação: a abordagem dos arranjos de implementação de políticas públicas. In: GOMIDE, Alexandre de Ávila; MARENCO, André (Orgs.). Capacidades estatais: avanços e tendências. Brasília: ENAP, 2024. p. 31-42. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/7875>.

16 LASCOUMES, Pierre; LE GALÈS, Patrick. A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Revista Pós Ciências Sociais, [S.l.], n. 18, v. 9, p. 19- 44, 2012. Disponível em: <https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/1331>.

[Foto: Viarami/Pixabay]

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