Não aprendemos nada com a História?
Cláudio Carraly*
O mundo de hoje caminha perigosamente por trilhas já percorridas na primeira metade do século XX. Ainda que a história não se repita de forma idêntica, ela rima, e os versos atuais carregam uma métrica sinistra. A ascensão de lideranças autoritárias, o colapso do centro político, o descrédito nas instituições democráticas, a desigualdade estrutural, a crise de refugiados e a falência do multilateralismo internacional configuram um cenário que, para quem conhece a história do entreguerras, soa tragicamente familiar.
O ressentimento social volta a ser capitalizado por discursos de ódio,
por soluções fáceis para problemas complexos, por um nacionalismo excludente
que aponta inimigos internos e externos a serem eliminados. A democracia
liberal, cansada e desacreditada, assiste à sua própria erosão sem força para
reagir, enquanto o mundo desliza, sorrateiro, rumo a um novo precipício
histórico.
Nas décadas de 1920 e 1930, o mundo viu emergir líderes como Benito
Mussolini, Adolf Hitler, Antonio de Oliveira Salazar, Francisco Franco e outros
que se aproveitaram do medo coletivo, das crises econômicas profundas e de um
ressentimento nacionalista exacerbado. Hoje, assistimos a fenômenos muito
similares com Viktor Orbán na Hungria, Recep Tayyip Erdoğan na Turquia,
Narendra Modi na Índia, Javier Milei na Argentina, Benjamin Netanyahu em
Israel, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros.
Mesmo em contextos distintos, reproduzem uma cartilha conhecida: minam o
judiciário, deslegitimam a imprensa, estimulam o ódio a minorias, exaltam
soluções autoritárias e simplistas, alimentam uma nostalgia idealizada de um
passado que nunca existiu. Esse padrão evidencia que o autoritarismo não é um
acidente histórico, mas um risco recorrente quando instituições democráticas
são enfraquecidas e o medo coletivo se torna combustível para líderes
messiânicos e projetos regressivos de poder.
Essa nova onda autoritária, disfarçada de "vontade popular",
não é episódica, é um fenômeno sistêmico nascido das inúmeras crises
vivenciadas pelo capitalismo. As democracias liberais estão corroídas por
dentro, o descrédito nas instituições, a captura das políticas públicas por
interesses corporativos e a sensação difusa de que "a política não serve
mais" criam um vácuo ocupado pelos populismos e a antipolítica se tornou
capital político e a negação dela um instrumento da extrema-direita.
O centro político, que outrora funcionava como moderador entre extremos,
esvaziou-se, a República de Weimar, precursora da ascensão do nazismo, também
padeceu da ausência de forças moderadas capazes de sustentar um pacto
democrático. A fragmentação atual da esquerda, ainda com vários dos sintomas do
fim da União Soviética, além do esgarçamento da social-democracia global,
contribui indiretamente para tudo isso, assim como o crescimento da
extrema-direita mundial, agora mais articulada, porém sob os mesmos signos do
passado, nacionalismo, armamentismo, negação do diverso e fortemente alicerçado
nas teologias.
As redes sociais aceleram esse processo, se Goebbels compreendia o poder
de uma mentira repetida mil vezes, hoje os algoritmos potencializam isso em
escala exponencial. Fake news, deepfakes, discursos de ódio e teorias da
conspiração circulam com uma velocidade incomensurável, criando realidades
paralelas, a verdade tornou-se relativa. A confiança no conhecimento
científico, na imprensa livre, nas universidades e nas instituições caiu drasticamente,
o chão da razão foi minado e o fato real não importa mais, apenas as narrativas
desses fatos.
Em paralelo, a desigualdade atinge níveis obscenos, o relatório da Oxfam
de 2024 apontava que as cinco pessoas mais ricas do mundo dobraram suas
fortunas desde a pandemia, enquanto bilhões de pessoas enfrentam insegurança
alimentar e falta de acesso à saúde básica. A crise de 1929, que devastou as
economias capitalistas e criou uma legião de desempregados, é um espelho
sombrio desse presente, a humilhação econômica, ontem como hoje, é fértil para
o ódio, para o nacionalismo tóxico, para as crenças messiânicas e para a
ascensão do extremismo nos moldes do século passado
A fragmentação social, o hiperindividualismo promovido pelo
neoliberalismo e o culto ao empreendedorismo como a nova solução mágica para a
miséria desestruturaram o tecido coletivo e criam uma cunha na base da
sociedade que não se unifica e ainda com parcela dos deserdados defendendo quem
os mantém na vida miserável que levam. O Estado e a democracia foram
demonizados e a lógica do “cada um por si” tornou-se o mantra dominante. Não à
toa, ideias de supremacia racial, xenofobia, misoginia e lgbtfobia retornam com
força, como se nunca tivessem sido derrotadas. O ressentimento de quem se sente
“prejudicado” pela inclusão do outro é manipulado com precisão cirúrgica pelos
neofascistas.
As guerras atuais também ecoam os ensaios trágicos do passado: a invasão
da Ucrânia pela Rússia, o massacre em Gaza, os conflitos étnicos na Etiópia,
Sudão e Congo, as tensões entre Índia e Paquistão, os Estados Unidos com a
retórica de anexar o Canadá e a Groenlândia, além de ameaçar tomar o canal do
Panamá: tudo aponta para um cenário de instabilidade crônica, onde alianças
frágeis e nacionalismos armados podem facilmente escalar para confrontos
maiores. O clima de pré-guerra está no ar, e a comunidade internacional, como a
antiga Liga das Nações, aparentemente pouco faz ou não demonstra a força
necessária para estancar a escalada belicosa e agora armamentista, que arrastou
agora até mesmo a Europa.
Além disso, o mundo vive uma nova crise de refugiados, causada não
apenas por guerras, mas também pelo colapso climático e pela pobreza
estrutural. Milhões de pessoas são forçadas a abandonar seus lares, mas
enfrentam fronteiras fechadas, políticas de rejeição e discursos que os tratam
como “ameaça civilizacional”. Nos anos 1930, países como os Estados Unidos, o
Reino Unido, França, México e o Brasil recusaram judeus em fuga do nazismo.
Hoje, corpos boiam no Mediterrâneo, crianças são separadas de pais na fronteira
estadunidense e tudo isso se normalizou de forma escandalosa.
As instituições multilaterais mostram-se tão frágeis quanto a ONU está
paralisada, refém de vetos no Conselho de Segurança e da geopolítica das
grandes potências. Os tratados de paz, meio ambiente e direitos humanos são
ignorados sem consequências. O Acordo de Paris claudica, enquanto corporações
continuam explorando recursos com voracidade insustentável, enquanto isso o Sul
Global paga a conta ambiental de um modelo que nunca construiu e nem
aproveitou.
No campo simbólico, a banalização do mal, conceito cunhado pela judia
Hannah Arendt para explicar como pessoas comuns se tornam cúmplices de crimes
abjetos em nome da obediência, volta a ser cada vez mais atual. Hoje, soldados
bombardeiam civis com drones como se jogassem videogames. Funcionários em
escritórios elaboram algoritmos que excluem populações inteiras de serviços
públicos, o horror é terceirizado, automatizado, e normalizado. A frieza
burocrática da máquina estatal é revestida por eufemismos:
"colateral", "operação de pacificação", "ajuste
fiscal", "intervenção técnica". Por trás dessas palavras, vidas
são esmagadas, direitos são diluídos e a empatia é substituída por relatórios e
gráficos, é a ética anestesiada pela rotina, o crime tornado rotina, a justiça
substituída por uma pretensa eficiência.
Mas nem tudo está perdido, nosso século também nos oferece ferramentas
que inexistiam no passado, temos redes de solidariedade internacional,
movimentos sociais articulados globalmente, juventudes politizadas, tecnologias
livres que podem ser usadas para construir alternativas. A luta antirracista,
feminista, ambiental e anticapitalista floresce em todos os continentes. A
memória histórica pode e deve ser um antídoto, e ela está sendo resgatada por
educadores, artistas, ativistas e acadêmicos.
A crise atual, se trabalhada, pode virar uma oportunidade, como
descreveu Walter Benjamin, outro judeu que vivenciou a ascensão do
nazifascismo: “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em
que vivemos é a regra”. Cabe a nós interromper esse ciclo. A democracia, a
justiça social, os direitos humanos e o planeta não serão preservados por
inércia.
É preciso um desejo coletivo, com organização e coragem política, e o
urgente renascimento do movimento socialista internacional, esse é um elemento
fundamental para barrar a onda fascista, exatamente como ocorreu no século
passado, mas a luta contra o autoritarismo começa no cotidiano: na escola, na
vizinhança, no trabalho, na internet, na igreja, onde cada um de nós esteja.
A história não apenas rima, ela cobra caro quando ignorada. Caminhamos
hoje sobre os escombros mal varridos do século XX, repetindo padrões que
acreditávamos superados. O autoritarismo já não bate à porta, ele senta-se à
mesa, veste terno, discursa em palanques e governa sob aplausos dos incautos. O
colapso do centro político, o descrédito das instituições e o avanço de
discursos de ódio não são fenômenos espontâneos, são sintomas de uma democracia
adoecida e de uma memória histórica maltratada.
Persistir na ilusão de que “dessa vez será diferente” é um risco que a
humanidade já não pode se dar ao luxo de correr. O antídoto está na
reconstrução da vida democrática como experiência coletiva: fortalecendo
instituições, combatendo a desigualdade que alimenta o ressentimento e,
sobretudo, ensinando história não como uma sucessão de datas, mas como um
alerta permanente.
Se não aprendermos com o passado, ele deixará de ser apenas uma sombra
incômoda, e voltará a ser nossa prisão, para muitos literalmente. O futuro
ainda é um campo aberto, mas só permanecerá livre se tivermos coragem de
confrontar os fantasmas que insistem em retornar com novas máscaras.
Cláudio
Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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Leia: Abraham B. Sicsú escreve sobre polarização e intolerância nas relações humanas https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/uma-cronica-de-abraham-b-sicsu_14.html
2 comentários:
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