19 setembro 2025

Neofascismo

As hordas do ódio
O manto de Deus e o amor à pátria servem agora de disfarce para um projeto de poder visceral. A nova estratégia não é mais se disfarçar, mas declarar abertamente a guerra cultural, transformando a esquerda no inimigo metafísico a ser erradicado
STEVEN FORTI/A Terra é Redonda        

À primeira vista, a cúpula organizada pelo Vox em Madri no final de semana passado não traz grandes novidades em relação ao que já sabíamos. Vistalegre mais ou menos cheio, bandeiras do país tremulando por todos os lados, Santiago Abascal exibindo-se… e os discursos clássicos a que nos habituaram os extremistas de direita de todos os matizes: uma mistura de insultos, vitimização, ataques contra a esquerda, os imigrantes, a “religião climática”, a “ideologia de gênero” e o globalismo, além da reivindicação da nação, da identidade, da soberania, da tradição e da família. O de sempre.

Alguns até acreditam que foi um fracasso, já que a maioria dos aliados internacionais do Vox não compareceu a Madri, limitando-se a enviar vídeos com mensagens gravadas. Há alguma verdade nisso, mas convém parar e analisar mais a fundo o que aconteceu e o que foi dito, porque a minha impressão é que o Europa Viva 2025 marca, de certa forma, uma mudança nada desprezível. Ou, se preferirem, uma aceleração pronunciada na estratégia da extrema-direita. Não só na Espanha.

Um pouco de contexto

Em 14 de setembro, o Vox organizou no palácio de Vistalegre, em Madri, um evento intitulado Europa Viva 2025, juntamente com o Patriotas pela Europa (PfE), a formação europeia de extrema direita presidida por Santiago Abascal. A extrema direita está historicamente dividida na União Europeia. Por um lado, estão os Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), liderados pelos polacos do Lei e Justiça e pelos Irmãos da Itália.

Os conservadores britânicos fundaram o ECR em 2009 e, nos anos seguintes, foram incorporando forças de extrema direita, essencialmente atlantistas. O Vox juntou-se em 2019, pouco antes das eleições europeias desse ano, que lhe permitiram entrar no Parlamento Europeu. Do outro lado, estava a Identidade e Democracia (ID), formação criada nesse mesmo ano de 2019 por Marine Le Pen e Matteo Salvini, que reunia partidos mais russófilos.

No verão de 2024, pouco depois das últimas eleições europeias, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán – cujo partido, o Fidesz, tinha abandonado o grupo dos populares europeus três anos antes – criou o PfE. A operação foi uma mera mudança de marca com algumas adesões, como o Vox ou o partido de Andrej Babis na República Checa. O objetivo – alcançado apenas parcialmente – era fazer uma oferta pública de aquisição aos Conservadores e Reformistas: atualmente, os dois partidos disputam o terceiro lugar na Câmara de Estrasburgo, atrás dos populares e dos socialistas.

Ficou de fora o Alternativa para a Alemanha, que montou seu próprio grupo, Europa das Nações Soberanas (ENS), reunindo formações menores, sobretudo do leste do continente. Na realidade, estas três formações competem entre si e têm algumas divergências, mas compartilham a mesma visão de mundo, colaboram mais do que imaginamos e muitas vezes acabam votando da mesma forma em Bruxelas.

Em fevereiro passado, o Vox organizou uma cúpula do Patriotas pela Europa em Madri com a intenção de mostrar força e aproveitar o impulso inicial da presidência de Donald Trump nos Estados Unidos. Além disso, em maio de 2024, quando ainda era membro do ECR, o partido de Santiago Abascal organizou outro evento, Europa Viva 2024, que reuniu em Vistalegre líderes da extrema-direita europeia e americana.

O evento do último final de semana insere-se, portanto, nesta série de encontros internacionais que mostram o papel cada vez mais importante que o Vox está desempenhando na Internacional Reacionária. Da mesma forma, a escolha de Madri – sede há alguns meses do Fórum Econômico dos criptobros paleolibertários, com o presidente argentino Javier Milei como convidado especial – evidencia a centralidade que a Espanha tem para a extrema-direita de todas as latitudes. O objetivo principal – e explícito – é derrubar o executivo presidido por Pedro Sánchez e libertar a Espanha dos “vermelhos”.

Por último, não se pode perder de vista o objetivo secundário dos partidários de Santiago Abascal: começar o ano político com um ato multitudinário, apoiado por aliados internacionais, para ganhar mais visibilidade na mídia, aproveitando o momentum político, marcado pelo tsunami trumpista, a humilhação da União Europeia nos campos de golfe da Escócia, os escândalos de corrupção que atingem os populares e os socialistas e o mal-estar dos cidadãos pelos incêndios que devastaram a península neste verão. De acordo com as últimas sondagens, o Vox está subindo nas intenções de voto, sobretudo entre os mais jovens.

As redes ultras, o elemento-chave

Em comparação com eventos anteriores, poucos líderes de extrema direita se deslocaram a Madri. Apenas o português André Ventura (Chega), o flamengo Tom Van Grieken (Interesse Flamengo), a grega Afroditi Latinopoulou (A Voz da Razão) e o mais desconhecido por estas bandas Rafael López Aliaga, prefeito de Lima. Sentada perto de Santiago Abascal, embora não tenha intervindo, estava a húngara Kinga Gál, vice-presidente do PfE e muito próxima de Orbán.

A conexão húngara – não se esqueçam – é fundamental para o Vox, também pelos empréstimos milionários que lhe foram concedidos por um banco próximo ao governo magiar. A realidade é que os 8.500 participantes que compareceram a Vistalegre passaram a maior parte do tempo vendo mensagens gravadas em vídeo.

A única exceção foi Javier Milei, em baixa, que se conectou on-line e leu um texto sem muito entusiasmo ou vontade. O autodenominado “leão” portenho decidiu ficar na Argentina para contornar a crise de seu governo – com sua irmã Karina no centro do furacão – e tentar salvar o que puder nas eleições legislativas de final de outubro, após a derrota eleitoral na província de Buenos Aires.

Todos os outros limitaram-se a enviar uma mensagem gravada em vídeo: o checo Babis, o húngaro Orbán, o austríaco Herbert Kickl, o italiano Salvini… Tal como Ventura, Van Grieken e Latinopoulou, todos são membros do Patriotas pela Europa. Houve duas ausências notáveis: a francesa Marine Le Pen e o holandês Geert Wilders. E uma surpresa: o retorno de Giorgia Meloni, que voltou a aparecer num ato do Vox, após o abandono do ECR pelos partidários de Santiago Abascal. Já se sabe que a italiana quer sempre ter um pé em cada lado.

Do outro lado do Atlântico, além de Javier Milei, estavam os de sempre: o chileno José Antonio Kast, o brasileiro Eduardo Bolsonaro, o paraguaio Santiago Peña, o colombiano Álvaro Uribe, a venezuelana María Corina Machado. Todos eles são membros do Fórum Madri, a rede de extrema direita criada pela Fundação Dissenso do Vox, em 2020, que organiza cúpulas anuais nos países da região (Bogotá, 2022; Lima, 2023; Buenos Aires, 2024; Assunção, 2025).

As redes tecidas pelos extremistas são cruciais. O próprio Viktor Orbán assinalou em sua mensagem gravada que, através do Vox, nos últimos dois anos não só abriu a sede em Madri de seu think tank, o Centro de Direitos Fundamentais, como também penetrou na América Latina. Atenção ao soft power húngaro.

Além disso, não faltaram mensagens de duas figuras-chave da Internacional Reacionária: o presidente da Fundação Heritage, Kevin Roberts, e o casal formado por Matt e Mercedes Schlapp, animadores da Conferência Política de Ação Conservadora (CPAC). A Heritage, fundada no início dos anos 70 com o objetivo de rearmar ideologicamente o conservadorismo, que elaborou o Projeto 2025 para a presidência de Donald Trump e tem tentáculos em todos os países, incluindo a Espanha.

Já a CPAC, também criada na época de Richard Nixon, é a cúpula anual dos republicanos estadunidenses: há uma década, criou franquias em vários países dos cinco continentes, como Brasil, México, Argentina, Hungria, Polônia, Austrália, Japão e Coreia do Sul. Agora, o Paraguai também se somará a eles.

O que há de novo?

O que se ouviu em Vistalegre parece, portanto, mais do mesmo: Deus, pátria e família. Mas não é verdade. Há três elementos novos. Em primeiro lugar, a maior radicalização do tom e das mensagens: os discursos de todos são desinibidos em grau máximo. Vão dizer que já eram assim antes.

Claro, mas agora todas as linhas vermelhas desapareceram. É o efeito Trump 2.0: tudo é permitido. Parece que a chamada “desdiabolização” adotada por Marine Le Pen, ou seja, a estratégia de normalização que esconde os aspetos e discursos mais extremistas, foi-se de vez. Giorgia Meloni ainda o faz de forma tímida e chegou mesmo a pedir, nesse fórum, que continuem a ajuda à Ucrânia e a aposta num futuro Estado para os palestinos.

Embora possa ser uma experiência pouco recomendável para quem tem estômago fraco, sugiro encarecidamente que todos vejam as gravações do Europa Viva 2025 para terem uma ideia da ameaça existencial que as nossas democracias enfrentam. Não basta resumir seus lemas: é preciso ver com os próprios olhos.

Imitando o estilo descontrolado de Javier Milei, Ventura gritou, por exemplo, que é preciso colocar “Sánchez na prisão” e que devemos “acabar com o socialismo na Europa”; chegou até mesmo a elogiar a caça aos imigrantes em Torre Pacheco, enquanto Latinopoulou pediu “deportações em massa” e a suspensão do direito de asilo. Santiago Abascal, por sua vez, chamou Sánchez de “cafetão” e “psicopata que ocupa Moncloa” e reforçou que é preciso “confiscar e afundar” o Open Arms. Ao fundo, o público gritava o tempo todo “Pedro Sánchez, filho da puta” e “Europa cristã e não muçulmana”.

Isso nos leva ao segundo ponto. Não é novidade alguma afirmar que, há muito tempo, os extremistas se gabam de defender os valores cristãos e a família tradicional contra os supostos perigos representados pelo progressismo, o liberalismo, a ideologia de gênero ou a agenda 2030 das Nações Unidas. No entanto, em Vistalegre, as referências ao cristianismo foram constantes.

O objetivo é transformar a luta da extrema direita numa nova cruzada para salvar a civilização ocidental. De fato, o lema da cúpula era “Começa a Reconquista”, conceito utilizado e repetido ad infinitum por todos, junto com o aviso de que “não nos renderemos”. Ademais, Santiago Abascal atualizou-o, falando do “Califado de Bruxelas”. Latinopoulou falou do “suicídio da Europa cristã”, enquanto Javier Milei citou as Sagradas Escrituras e López Aliaga – que chamou os limenhos de seus “irmãos em Deus” – definiu a esquerda como “o mal” e acrescentou que “o enxofre é seu cheiro tradicional”.

Torquemada aplaudiria com as orelhas. Mas o mais interessante, e que mostra a grande influência de um nacionalismo cristão estadunidense em ascensão, foi a participação do casal Schlapp e de Kevin Roberts. Embora para a grande maioria seus nomes não digam nada, não estamos falando dos últimos da fila. Muito pelo contrário: são eles que mandam.

Os animadores da CPAC contaram que visitaram Astúrias neste verão e rezaram em Covadonga “pela fortaleza da Espanha”. Matt Schlapp falou da “batalha contra as trevas”, ou seja, o socialismo, ao lado “de Deus e Jesus Cristo”, enquanto sua esposa, Mercedes, convidou todos a “regressarem às igrejas” e a casarem-se porque “o matrimônio é uma bênção de Deus”.

Roberts, por sua vez, afirmou que a cruz é o “símbolo mais importante de nossa civilização” contra “o depravado” – ou seja, o progressismo – e condenou a suposta “tentativa descarada de derrubar a maior cruz do mundo”, em referência ao Vale dos Caídos. Ele também citou São Pedro, Constantino, Don Pelayo e os Reis Católicos – também acrescentou Trump – para explicar que é preciso lutar contra a “falta de fé” em Deus para evitar o colapso civilizatório.

Acabar com a esquerda

O terceiro elemento está intimamente ligado aos outros dois. A desculpa foi dada pelo assassinato do supremacista branco Charlie Kirk, fundador da organização ultraconservadora Turning Point USA. Em Vistalegre, ele foi homenageado com um vídeo, no final do qual todos cantaram de pé “La muerte no es el final”, o hino oficial das Forças Armadas espanholas para os mortos em combate.

Santiago Abascal, que no dia anterior apareceu com a mesma camiseta que Charlie Kirk usava quando foi assassinado – com a palavra “Freedom” estampada –, pediu uma oração por ele. Matt Schlapp definiu-o como “um grande herói”, enquanto Javier Milei disse que ele era “um guerreiro exemplar” e um “mártir da liberdade”. Mais uma vez, o resquício religioso.

Mas o elemento inovador, sobretudo por seu caráter visceral, é uma demonização da esquerda como nunca tínhamos visto até agora. Para Santiago Abascal, a esquerda “promove a violência” e é “assassina”. Para Javier Milei, os esquerdistas são “terroristas”, enquanto que para a supostamente moderada Giorgia Meloni são “extremistas e odiosos” que têm “maus professores”, fazendo um paralelo claro com as Brigadas Vermelhas. Segundo Roberts, “são opositores da ordem, emissários da violência e inimigos da verdadeira cruz”. A cereja do bolo foi colocada pelo casal Schlapp: “Os esquerdistas querem destruir-nos a todos, física e espiritualmente”, por isso é necessário usar “nosso poder e autoridade para acabar com a esquerda”.

Os extremistas já não estão simplesmente atacando a esquerda e apelando para a vitimização, algo clássico por esses lados, mas estão clamando por medidas contra aqueles que consideram – literalmente – representantes do mal na Terra. Para eles, o assassinato de Charlie Kirk foi um evento catártico que, por um lado, alinhou ainda mais as agendas e os discursos da extrema-direita em todo o mundo e, por outro, será usado como uma espécie de incêndio do Reichstag 2.0.

Ou seja, a justificação para a mudança definitiva, eliminar a esquerda e, de passagem, destruir completamente as democracias liberais e instaurar autocracias eleitorais. Não apenas em Washington… onde, aliás, nas mesmas horas, o general aposentado Mike Flynn, conselheiro de Segurança Nacional no primeiro governo de Donald Trump, publicou um longo e grotesco tuíte acusando os “assassinos globalistas” – em suas palavras: Soros, Obama, Clinton, Biden, Gates, Schwab, Macron, Starmer, Merz e muitos outros – de “odiar Deus” e pede a Donald Trump que faça uma guerra para extirpar seus “atos demoníacos”. Alguém pode pensar que Mike Flynn é um maluco e possivelmente esteja certo, mas nos Estados Unidos, nos últimos dias, são muitos os que dizem e pedem o mesmo dentro do movimento MAGA.

Em Vistalegre, também enfatizou-se que a morte de Charlie Kirk representa um ponto de inflexão e que não há mais volta atrás. Segundo Santiago Abascal, “a Reconquista começou e não a deterão”. Em toda esta irmandade de ódio explícito e desenfreado, os extremistas não perderam a oportunidade de tentar apropriar-se da palavra “amor”. É isso mesmo.

A apropriação de conceitos para lhes dar um novo significado não é algo novo para a extrema direita. Já o fizeram com o termo liberdade – reivindicado por todos em Vistalegre – e, parcialmente, com o de democracia. Eduardo Bolsonaro chegou a afirmar, por exemplo, que no Brasil “a democracia está sequestrada” por um “tirano”, o juiz Alexandre de Moraes, que condenou seu pai por tentativa de golpe de Estado.

O amor tem estado na boca de todos: o amor pela pátria, pelo povo, pela família, pelos filhos… até mesmo o amor pelo futuro. Seu amor diante do suposto ódio de uma esquerda assassina, extremista e demoníaca. O mundo ao contrário. As de Vistalegre não foram, entretanto, as hordas do amor: foram as hordas do ódio dispostas a passar à ação. Hordas que se protegem sob o manto do deus da contrarreforma. Estamos avisados.

*Steven Forti é professor de história contemporânea na Universidade Autônoma de Barcelona.

Tradução: Fernando Lima das Neves.

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