Estratégias
empresariais: contrariando o senso comum
Abraham B. Sicsu
Para Bernardo que até hoje me chama de Conselheiro
No imaginário da sociedade foram difundidas “verdades” que são absolutas, não podem ser contestadas.
Na área da
concorrência empresarial, três são muito fortes e sempre repetidas. Em primeiro
lugar, a visão de que a concentração de mercado sempre é prejudicial a
sociedade. Também, a noção de que as empresas sempre conseguirão “fugir” das
restrições que lhes são impostas pelo poder público. Ainda, que, no Brasil em
particular, as empresas não se preocupam com a inovação, pois os mercados são
fechados e protegidos das mudanças advindas do progresso técnico.
Entre 2006 e 2008,
fui juiz conselheiro do órgão responsável pelo controle da área concorrencial
no país. Era um trabalho árduo. De quinze em quinze dias tínhamos plenária onde
tudo era decidido. Para não haver um acúmulo excessivo de processos tínhamos
que relatar, cada um dos seis juízes conselheiros, quase dez processos por
sessão, processos sempre muito diversificados. Só conseguíamos por ter uma
equipe de jovens assessores muito competentes. No meu caso quatro advogados e
três economistas.
Nessa atividade
aprendi muito da realidade do setor empresarial brasileiro e passei a
relativizar muitas das idéias preconcebidas. Três casos interessantes que
estiveram sob minha relatoria.
Uma empresa
brasileira que detinha mais de sessenta por cento do mercado nacional resolve
comprar uma empresa espanhola que tinha uma subsidiária aqui que detinha
aproximadamente vinte e cinco por cento de nosso mercado. Juntas se aproximavam
de noventa por cento e, para alguns produtos chegavam à totalidade.
Um colega juiz, o
mais brilhante de nós todos, me advertiu que era um caso complicado, que
tínhamos que impor restrições, que não poderíamos deixar passar impunemente.
Sabendo da importância do caso, fomos estudar.
Verificamos que essas
empresas tinham como seus principais mercados as grandes concorrências
internacionais. Também, que as maiores empresas do setor eram chinesas, as
quais tinham escalas de produção muito maiores, algumas quase dez vezes. Em
outras palavras, empresas que podiam dividir seus custos de logística, de
distribuição e mesmo administrativos por um número muito grande de unidades.
Além disso, a própria produção era feita com equipamentos mais eficientes e de
maior porte. Ou seja, tinham custos unitários menores e estavam mais bem
posicionadas para as grandes licitações.
Dois cenários se
apresentavam. Ou a empresa brasileira comprava a companhia e com isso otimizava
seus custos, tornando-se mais competitiva, ou, em curto espaço de tempo, as
grandes companhias internacionais a inviabilizariam, inclusive com a entrada
ostensiva no mercado brasileiro. Aprovamos a transação e a empresa teve
condições de crescer em escala e até hoje ser bem competitiva.
Cartel é uma prática
ilegal. Empresas que através de acordos “subterrâneos” simulam concorrência
para, em processos licitatórios públicos, manipular resultados fixando preços,
definindo ex ante os vencedores, dividindo o mercado ou eliminando possíveis
outros concorrentes, cometem um delito. Uma prática anti-competitiva que pode
causar enormes prejuízos à administração pública. Empresas que os praticam
estão sujeitas a severas punições.
Acontece que é muito
difícil comprovar essa prática. A não ser que um dos participantes se sinta
lesado por ser preterido e denuncie publicamente. Exatamente o que ocorreu. Ele
foi à televisão e gravou um programa denúncia.
O caso caiu na minha
relatoria. Evidentemente seriam condenados. Nada havia a negar. No entanto,
embora as multas fossem pesadas, parecia que o grupo já tinha contabilizado
essa possibilidade. Dividiriam entre eles e se reorganizariam continuando a
prática ilegal.
Um assessor sugere
que colocássemos uma clausula adicional à sentença. Aceita, foi inserida.
Proibia-se que qualquer empresa que contasse com um dos participantes, seus
familiares ou membro da direção superior das empresas punidas participasse de
concorrências públicas nos próximos cinco anos.
Aprova-se em
plenário. Tumulto geral. Quebram-se as pernas do cartel. Recebo um advogado,
que pretende entrar com embargos, com insinuações nada legais. Única vez em
toda a minha gestão. Estando acompanhado por meu grupo de colaboradores, peço
que anotem e gentilmente que ele assine a ata da reunião. Retira-se indignado
sem assinar. Não conseguiram reverter a decisão.
Duas empresas de
grande porte, concorrentes, começam a se preocupar com o rápido progresso
técnico em seu setor. Acompanhá-lo é difícil financeiramente. Equipamentos que
produzem em grande escala foram desenvolvidos, diminuem em muito o custo dos
produtos, mas exigem investimentos não compatíveis com os mercados regionais
que essas firmas dominavam.
Uma solução
inventiva, pensando a médio e largo prazo. A melhoria da qualidade e a maior
eficiência podia ser um diferencial.
Propõe um novo
arranjo empresarial. Criar uma empresa específica para a produção, em conjunto,
cada uma detendo metade do investimento, com saídas para um porto seco,
totalmente separado e dividido em duas partes. À direita para uma empresa e à
esquerda para a outra. Os pedidos e
especificações não seriam conhecidos pela concorrente e continuariam disputando
o mercado final.
Para a grande maioria
dos especialistas não era crível. Como uma empresas dona de metade da firma
produtora não vazaria informações para seus proprietários? Seria possível não
haver colusão, ou seja, acordos internos que permitissem praticar um poder de
mercado quase absoluto? Difícil de acreditar.
Fomos analisar o
caso. Por mais de seis meses. Verificou-se que o sistema era seguro, que não
havia fluxo de informações de especificidades estratégicas dos produtos e de
mercados de uma para a outra. Mesmo a seleção dos profissionais responsáveis
pela administração da empresa produtora estava sendo feito por empresas
especializadas autônomas e tinham como requisito não haver nenhum vínculo com
as duas empresas detentoras da quase totalidade do mercado final.
Aprovou-se a operação,
as empresas melhoraram a qualidade de seus produtos, atenderam às demandas dos
mercados finais, avançou-se no progresso técnico do setor no país com redução
de custos e preços.
Muitos outros casos
poderão ser elencados. A visão externa da concorrência empresarial parece
distorcida. Não há dúvida que cada empresa pensa em seus interesses
individuais, mas, estes, em um número significativo de ocasiões, vêm atender
aos anseios da própria sociedade. Condená-los, a priori como prejudiciais, pode
levar a sérios problemas para a sociedade, defasando nosso parque fabril em
termos técnicos, ou mesmo gerando custos insuportáveis para a população.
Aprendi no Órgão de
Defesa da Concorrência CADE que ponderação sempre é necessária, bem como
antecipação com inventividade para evitar práticas que lesam a população em
geral. Uma experiência por demais enriquecedora.
[Qual a sua opinião?]

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