19 novembro 2025

Abraham Sicsu opina

Estratégias empresariais: contrariando o senso comum
Abraham B. Sicsu
Para Bernardo que até hoje me chama de Conselheiro  

No imaginário da sociedade foram difundidas “verdades” que são absolutas, não podem ser contestadas.

Na área da concorrência empresarial, três são muito fortes e sempre repetidas. Em primeiro lugar, a visão de que a concentração de mercado sempre é prejudicial a sociedade. Também, a noção de que as empresas sempre conseguirão “fugir” das restrições que lhes são impostas pelo poder público. Ainda, que, no Brasil em particular, as empresas não se preocupam com a inovação, pois os mercados são fechados e protegidos das mudanças advindas do progresso técnico.

Entre 2006 e 2008, fui juiz conselheiro do órgão responsável pelo controle da área concorrencial no país. Era um trabalho árduo. De quinze em quinze dias tínhamos plenária onde tudo era decidido. Para não haver um acúmulo excessivo de processos tínhamos que relatar, cada um dos seis juízes conselheiros, quase dez processos por sessão, processos sempre muito diversificados. Só conseguíamos por ter uma equipe de jovens assessores muito competentes. No meu caso quatro advogados e três economistas.

Nessa atividade aprendi muito da realidade do setor empresarial brasileiro e passei a relativizar muitas das idéias preconcebidas. Três casos interessantes que estiveram sob minha relatoria.

Uma empresa brasileira que detinha mais de sessenta por cento do mercado nacional resolve comprar uma empresa espanhola que tinha uma subsidiária aqui que detinha aproximadamente vinte e cinco por cento de nosso mercado. Juntas se aproximavam de noventa por cento e, para alguns produtos chegavam à totalidade.

Um colega juiz, o mais brilhante de nós todos, me advertiu que era um caso complicado, que tínhamos que impor restrições, que não poderíamos deixar passar impunemente. Sabendo da importância do caso, fomos estudar.

Verificamos que essas empresas tinham como seus principais mercados as grandes concorrências internacionais. Também, que as maiores empresas do setor eram chinesas, as quais tinham escalas de produção muito maiores, algumas quase dez vezes. Em outras palavras, empresas que podiam dividir seus custos de logística, de distribuição e mesmo administrativos por um número muito grande de unidades. Além disso, a própria produção era feita com equipamentos mais eficientes e de maior porte. Ou seja, tinham custos unitários menores e estavam mais bem posicionadas para as grandes licitações.

Dois cenários se apresentavam. Ou a empresa brasileira comprava a companhia e com isso otimizava seus custos, tornando-se mais competitiva, ou, em curto espaço de tempo, as grandes companhias internacionais a inviabilizariam, inclusive com a entrada ostensiva no mercado brasileiro. Aprovamos a transação e a empresa teve condições de crescer em escala e até hoje ser bem competitiva.

Cartel é uma prática ilegal. Empresas que através de acordos “subterrâneos” simulam concorrência para, em processos licitatórios públicos, manipular resultados fixando preços, definindo ex ante os vencedores, dividindo o mercado ou eliminando possíveis outros concorrentes, cometem um delito. Uma prática anti-competitiva que pode causar enormes prejuízos à administração pública. Empresas que os praticam estão sujeitas a severas punições.

Acontece que é muito difícil comprovar essa prática. A não ser que um dos participantes se sinta lesado por ser preterido e denuncie publicamente. Exatamente o que ocorreu. Ele foi à televisão e gravou um programa denúncia.

O caso caiu na minha relatoria. Evidentemente seriam condenados. Nada havia a negar. No entanto, embora as multas fossem pesadas, parecia que o grupo já tinha contabilizado essa possibilidade. Dividiriam entre eles e se reorganizariam continuando a prática ilegal.

Um assessor sugere que colocássemos uma clausula adicional à sentença. Aceita, foi inserida. Proibia-se que qualquer empresa que contasse com um dos participantes, seus familiares ou membro da direção superior das empresas punidas participasse de concorrências públicas nos próximos cinco anos.

Aprova-se em plenário. Tumulto geral. Quebram-se as pernas do cartel. Recebo um advogado, que pretende entrar com embargos, com insinuações nada legais. Única vez em toda a minha gestão. Estando acompanhado por meu grupo de colaboradores, peço que anotem e gentilmente que ele assine a ata da reunião. Retira-se indignado sem assinar. Não conseguiram reverter a decisão.

Duas empresas de grande porte, concorrentes, começam a se preocupar com o rápido progresso técnico em seu setor. Acompanhá-lo é difícil financeiramente. Equipamentos que produzem em grande escala foram desenvolvidos, diminuem em muito o custo dos produtos, mas exigem investimentos não compatíveis com os mercados regionais que essas firmas dominavam.

Uma solução inventiva, pensando a médio e largo prazo. A melhoria da qualidade e a maior eficiência podia ser um diferencial.

Propõe um novo arranjo empresarial. Criar uma empresa específica para a produção, em conjunto, cada uma detendo metade do investimento, com saídas para um porto seco, totalmente separado e dividido em duas partes. À direita para uma empresa e à esquerda para a outra.  Os pedidos e especificações não seriam conhecidos pela concorrente e continuariam disputando o mercado final.

Para a grande maioria dos especialistas não era crível. Como uma empresas dona de metade da firma produtora não vazaria informações para seus proprietários? Seria possível não haver colusão, ou seja, acordos internos que permitissem praticar um poder de mercado quase absoluto? Difícil de acreditar.

Fomos analisar o caso. Por mais de seis meses. Verificou-se que o sistema era seguro, que não havia fluxo de informações de especificidades estratégicas dos produtos e de mercados de uma para a outra. Mesmo a seleção dos profissionais responsáveis pela administração da empresa produtora estava sendo feito por empresas especializadas autônomas e tinham como requisito não haver nenhum vínculo com as duas empresas detentoras da quase totalidade do mercado final.

Aprovou-se a operação, as empresas melhoraram a qualidade de seus produtos, atenderam às demandas dos mercados finais, avançou-se no progresso técnico do setor no país com redução de custos e preços.

Muitos outros casos poderão ser elencados. A visão externa da concorrência empresarial parece distorcida. Não há dúvida que cada empresa pensa em seus interesses individuais, mas, estes, em um número significativo de ocasiões, vêm atender aos anseios da própria sociedade. Condená-los, a priori como prejudiciais, pode levar a sérios problemas para a sociedade, defasando nosso parque fabril em termos técnicos, ou mesmo gerando custos insuportáveis para a população.

Aprendi no Órgão de Defesa da Concorrência CADE que ponderação sempre é necessária, bem como antecipação com inventividade para evitar práticas que lesam a população em geral. Uma experiência por demais enriquecedora.

[Qual a sua opinião?]

 Leia também: Artistas na Sala de Visitas https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/05/uma-cronica-de-abraham-b-sicsu_17.html 

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