23 novembro 2025

Palavra de poeta

motivo

Ana Cristina Leonardos  


mais que a pele
mais que um jeito enviesado
de me gostar
gosto de sua
não palavra
do modo avesso e nu
como me atravessa
na hora de amar

 

[Ilustração: Vilhelm Hammershoi] 

Chico Buarque: "Mil perdões" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/chico-buarque-mil-perdoes.html 

22 novembro 2025

Bolsonaro sob os rigores da lei

Prisão Preventiva de Bolsonaro: o resumo jurídico que você precisa entender
Longe de ser uma medida abrupta, a decisão foi o resultado de um processo judicial que, pacientemente, esgotou todas as alternativas cautelares menos gravosas antes de recorrer à medida extrema
Renan Bohus da Costa*/Vermelho

A decretação da prisão preventiva de Jair Messias Bolsonaro, determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito da Petição (PET) 14.129/DF, representa um marco na aplicação da lei penal brasileira. Longe de ser uma medida abrupta, a decisão foi o resultado de um processo judicial que, pacientemente, esgotou todas as alternativas cautelares menos gravosas antes de recorrer à medida extrema.

A análise técnica da decisão revela uma fundamentação robusta, alicerçada em três pilares centrais: o desrespeito sistemático às medidas cautelares, a configuração de um risco concreto à ordem pública e, de forma decisiva, a existência de um risco iminente de fuga para frustrar a aplicação da lei penal.

A prisão não foi um ato isolado, mas a consequência de uma escalada de transgressões às ordens judiciais. Após ser condenado pela Primeira Turma do STF a 27 anos e 3 meses de reclusão, Bolsonaro foi submetido a uma série de medidas cautelares diversas da prisão, conforme o art. 319 do Código de Processo Penal (CPP). Entre elas, destacam-se: uso de tornozeleira eletrônica com recolhimento domiciliar, proibição de contato com outros investigados e proibição de uso de redes sociais.

É crucial entender que a prisão preventiva opera sob o princípio da ultima ratio, ou seja, é o último recurso do Estado. A legislação processual penal, em respeito ao princípio da presunção de inocência, prioriza medidas menos severas. Contudo, a decisão do STF demonstra que a conduta do réu tornou essas medidas inócuas. O art. 312 do CPP é claro ao autorizar a prisão para a garantia da ordem pública, para a conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. No caso em tela, a decisão se fundamentou solidamente em dois desses requisitos: a ordem pública e a aplicação da lei penal, ambas ameaçadas diretamente pelas ações d o ex-presidente.

A decisão detalha como o ex-presidente desafiou repetidamente essas restrições. Em 4 de agosto de 2025, por exemplo, o uso indevido das redes sociais levou ao endurecimento das medidas, com a decretação da prisão domiciliar integral. O descumprimento de medidas cautelares é um fundamento legal expresso para a decretação da prisão preventiva, conforme o § 1º do art. 312 do CPP. A reiteração dessa conduta demonstrou que nenhuma outra medida seria suficiente para garantir o cumprimento das ordens judiciais.

Dois eventos ocorridos na véspera da prisão foram determinantes para a decisão do Ministro Alexandre de Moraes. A convocação de apoiadores para uma “vigília” em frente ao condomínio do réu foi interpretada pelo STF como uma reedição do modus operandi da organização criminosa. O objetivo, segundo a decisão, era “causar tumulto” para obstruir a fiscalização e, potencialmente, “facilitar eventual tentativa de fuga”. A manobra foi vista como um risco concreto à ordem pública. O ato final e inequívoco foi a violação do equipamento de monitoramento eletrônico, registrada à 00h08 do dia 22 de novembro. A decisão é taxativa ao afirmar que o ato “consta ta a intenção do condenado de romper a tornozeleira eletrônica para garantir êxito em sua fuga”. Esse fato, por si só, eliminou a principal ferramenta de controle do Estado, tornando a prisão a única alternativa viável.

A interpretação do STF sobre a “vigília” não pode ser dissociada do contexto de ataques às instituições democráticas. A convocação foi vista não como um exercício de liberdade de manifestação, mas como um ato deliberado para criar um ambiente de intimidação e confronto, similar a táticas já utilizadas para obstruir a justiça. Ameaçar a ordem pública, nesse sentido, significa também desafiar a autoridade do Poder Judiciário e criar instabilidade social para fins particulares, o que justifica uma resposta firme do Estado para preservar a paz social e o respeito às decisões judiciais.

O principal fundamento para a conversão das medidas cautelares em prisão preventiva foi o periculum libertatis, o perigo gerado pelo estado de liberdade do réu. Esse perigo se materializou, principalmente, no risco iminente de fuga, que visava frustrar a aplicação da lei penal. A decisão não se baseou em meras suposições. A Polícia Federal apresentou informações concretas que sustentaram essa conclusão: histórico de planejamento de fuga (planos de busca por asilo); proximidade geográfica (a apenas 13 km do Setor de Embaixadas); e a fuga de corréus (como Alexandre Ramagem e Carla Zambelli), que demonstrou ser uma estratégia recorrente do grupo.

A combinação desses elementos, convocação de tumultorompimento do monitoramento e um histórico de planejamento de fuga, formou um cenário que, juridicamente, justificava plenamente a decretação da prisão. A sequência de fatos demonstra a aplicação do princípio da proporcionalidade de forma progressiva. O Judiciário iniciou com as medidas mais brandas e, diante de cada novo descumprimento, foi forçado a intensificar o rigor, culminando na prisão como a única medida proporcional à gravidade dos atos e à ineficácia das anteriores.

A prisão preventiva de 22 de novembro de 2025 não foi uma decisão política, mas um ato de natureza estritamente técnica e processual. Ela reafirma um princípio fundamental do Estado de Direito: ninguém está acima da lei. Ao esgotar todas as medidas alternativas e agir somente diante de fatos novos e concretos, o Supremo Tribunal Federal aplicou a legislação de forma criteriosa.

O caso se torna exemplar não pela figura do réu, mas pela mensagem que transmite: a democracia brasileira possui os mecanismos necessários para responsabilizar aqueles que atentam contra ela e que se recusam a cumprir as decisões de suas instituições.

*advogado criminalista. Especialista em Direito Penal. Mestrado em Direitos Fundamentais.

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Leia também:  Bolsonaro preso por risco de fuga, o que acontece agora? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/bolsonaro-preso-desdobramentos.html 

Bolsonaro preso: desdobramentos

Bolsonaro é preso por risco de fuga após violação de tornozeleira e Flávio convocar vigília: o que acontece agora?
Giulia Bianchi e Mariana Schreiber/BBC Newss Brasil  

Jair Bolsonaro (PL) foi preso preventivamente pela Polícia Federal (PF) em Brasília na manhã deste sábado (22/11) por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Moraes decidiu revogar a prisão preventiva em regime domiciliar, na qual ele estava desde o início de agosto, a pedido da PF após ser identificado um risco concreto e iminente de fuga.

Segundo a decisão, esse risco foi identificado após o senador Flávio Bolsonaro convocar uma "vigília" em apoio ao pai nas proximidades da residência do ex-presidente e ser detectada uma tentativa de violação da tornozeleira que ele usava.

O senador reagiu à prisão de afirmando em transmissão ao vivo no YouTube que decisão "criminaliza o livre exercício da crença", manteve a convocação da vigília e acusou Moraes: "Se meu pai morrer, a culpa é sua".

Bolsonaro foi transferido para a Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal, onde deve permanecer em uma Sala de Estado, local de detenção especial reservado para autoridades.

A decisão ainda será submetida ao referendo da Primeira Turma do STF, que deve realizar uma sessão virtual extraordinária na segunda-feira, das 8h às 20h.

Moraes também rejeitou o pedido da defesa de Bolsonaro para que ele fique em prisão domiciliar por motivo humanitário. Seus advogados argumentam que, pelas condições de saúde dele, a cadeia pode representar um "risco à vida" do ex-presidente — que, segundo eles, sofre de "doença grave de natureza múltipla (cardiológica, pulmonar, gastrointestinal, neurológica e oncológica)".

O que diz Moraes na ordem de prisão de Bolsonaro

Alexandre de Moraes pontua na nova ordem de prisão de Bolsonaro que a convocação de vigília por seu filho Flávio poderia gerar aglomerações capazes de dificultar a fiscalização policial e a aplicação de decisões judiciais.

De acordo com a decisão, a convocação da vigília foi interpretada como parte de uma estratégia para "prejudicar o cumprimento de eventuais medidas judiciais" e "dificultar a aplicação da lei penal" nas horas que antecedem o possível trânsito em julgado da condenação

Além disso, ainda segundo a decisão, o sistema de monitoramento registrou, na madrugada deste sábado, uma ocorrência de violação da tornozeleira eletrônica usada por Bolsonaro, o que reforçou o entendimento de que havia risco iminente de evasão.

Para Moraes, o registro "constata a intenção do condenado de romper a tornozeleira eletrônica para garantir êxito em sua fuga", supostamente facilitada pela confusão causada pela manifestação convocada.

Moraes diz também que o ex-presidente poderia se abrigar na embaixada dos EUA para evitar sua prisão. O local fica a cerca de 15 minutos de carro da residência de Bolsonaro, destaca o ministro.

Bolsonaro é um aliado do presidente americano, Donald Trump, e, em 2024, enquanto ainda era investigado, chegou a ir à embaixada da Hungria, país governado por outro aliado, Viktor Orbán, e passou duas noites no local, levantando suspeitas de que poderia pedir asilo para evitar uma prisão preventiva, o que ele negou.

O ministro também afirma no despacho que a mobilização convocada por Flávio Bolsonaro se assemelha a estratégias já utilizadas por apoiadores do ex-presidente em outros momentos, inclusive os acampamentos em frente a quartéis após as eleições de 2022.

Segundo o ministro, haveria tentativa de reeditar esse tipo de mobilização, que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023.

A decisão descreve em detalhes o vídeo publicado por Flávio Bolsonaro na rede social X, no qual ele convoca apoiadores a se deslocarem para as proximidades da residência do ex-presidente.

Segundo o documento, Flávio afirmou: "Você vai lutar pelo seu país ou assistir tudo do celular aí do sofá da sua casa? Eu te convido para lutar com a gente".

Ainda segundo o despacho, o senador convocou uma "Vigília pela saúde de Bolsonaro e pela liberdade no Brasil", marcada para as 19h deste sábado, no balão do Jardim Botânico, nas imediações do condomínio onde vive o ex-presidente.

A postagem, diz o texto, já acumulava dezenas de milhares de visualizações e milhares de compartilhamentos.

A decisão também menciona o histórico de aliados do ex-presidente que deixaram o país para escapar da Justiça. São citados os casos da deputada Carla Zambelli, que foi para a Itália, e do ex-diretor da Abin e deputado Alexandre Ramagem, que teria saído recentemente do país rumo aos Estados Unidos.

Ambos foram condenados no mesmo processo que levou à condenação de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. O ex-presidente recebeu pena de 27 anos e três meses em regime inicial fechado.

A prisão ocorre em um momento sensível do caso. Bolsonaro havia passado por fases sucessivas de restrições judiciais, que começaram com medidas cautelares como o uso de tornozeleira eletrônica, depois convertidas em prisão preventiva cumprida em regime domiciliar.

Na semana passada, o STF rejeitou embargos apresentados pela defesa, aproximando o processo de sua fase final.

A condenação de Bolsonaro

Bolsonaro foi considerado pelo STF como líder de uma organização criminosa, com militares, policiais e aliados, que atuou para impedir a transição de poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A investigação também levou à imposição de uma série de medidas cautelares ao longo do processo, à medida que o tribunal entendeu haver risco concreto à ordem institucional e à aplicação da lei penal.

O ex-presidente foi declarado culpado de cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.

As condenações resultaram em um endurecimento progressivo de sua situação jurídica, com restrições cada vez mais severas de liberdade.

Além de Bolsonaro, os outros sete réus na ação penal também foram condenados: Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Mauro Cid, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto. Ao longo desse período, o STF passou a adotar medidas individuais de controle e monitoramento em relação aos condenados.

Para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a organização criminosa agiu em várias frentes desde 2021 para tentar executar o plano de ruptura, desde discursos públicos para descreditar o sistema eleitoral até supostas pressões sobre o Alto Comando das Forças Armadas para apoiar um decreto de cunho golpista — a chamada "minuta do golpe".

Segundo o Ministério Público, esse contexto de articulação e mobilização contínua foi considerado pelo Supremo na dosimetria das penas e na análise da necessidade de medidas cautelares.

Gonet citou ainda na denúncia movimentos para tentar atrapalhar o andamento da eleição, citando os bloqueios da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia da eleição em 2022, em especial em regiões com eleitores favoráveis ao adversário Lula. Esse histórico passou a embasar, posteriormente, a decisão de submeter Bolsonaro a monitoramento eletrônico.

A PGR destacou ainda os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o ato final da tentativa golpista.

Após esses eventos, o STF determinou o uso de tornozeleira eletrônica por Bolsonaro, além de restrições de circulação e de contato com outros investigados, como forma de evitar novas articulações políticas fora do controle judicial.

Ao fim do julgamento, o STF considerou haver provas suficientes das acusações da PGR e condenou os réus. Mesmo após a condenação, Bolsonaro permaneceu inicialmente em liberdade com medidas cautelares, mas, diante de episódios considerados graves pelo tribunal, a situação foi agravada.

Primeiro, a Justiça converteu as medidas em prisão preventiva em regime domiciliar, com monitoramento integral.

Agora, com a nova decisão do ministro Alexandre de Moraes, houve a revogação da prisão domiciliar e a decretação de nova prisão preventiva, desta vez a ser cumprida em unidade da Polícia Federal, sob o argumento de risco de fuga e necessidade de garantia da ordem pública.

Reação de aliados de Bolsonaro

Michelle Bolsonaro publicou uma mensagem nas redes sociais pouco após a prisão do ex-presidente. Sem mencionar diretamente a decisão judicial, ela afirmou que "não vai desistir da nossa nação" e disse confiar na "Justiça de Deus".

Na publicação, voltou a mencionar o atentado a faca sofrido por Bolsonaro em 2018, disse que ele ainda enfrenta sequelas do episódio e afirmou acreditar que "o Senhor dará o escape". Michelle informou ainda que estava no Ceará e que seguia viagem para Brasília.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) não se manifestou publicamente.

Pouco após a confirmação da prisão preventiva de Jair Bolsonaro (PL) na manhã deste sábado (22/11), o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder do Partido Liberal na Câmara, afirmou nas redes sociais que o ex-presidente "sempre será inocente e não roubou ninguém".

"Podem fazer o que quiser, @jairbolsonaro sempre será INOCENTE e não roubou ninguém!!", escreveu no X, antigo Twitter.

Em outros tuítes publicados em seguida, repetiu a ideia compartilhada por muitos dos apoiadores de Bolsonaro, de que o ex-presidente é perseguido pela Justiça brasileira.

"Ele nunca roubou ninguém, diminuiu impostos pra todos os brasileiros e aumentou a arrecadação, entregou o comando do país, mesmo tento um presidente do TSE totalmente tendencioso; a prisão de @jairbolsonaro é a maior perseguição política da história do Brasil!", disse.

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), afirmou que o ocorrido é uma "injustiça".

Em publicação nas redes sociais, Zema declarou que o país "viu hoje o que já sabíamos: afastaram Jair Bolsonaro do convívio da família, de forma arbitrária e vergonhosa para nossa história".

Ele acrescentou que "silenciar opositor não é Justiça, é abuso de poder" e que divergências políticas "não podem ser motivo para prisão".

Já o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), afirmou estar junto do ex-presidente "em mais esse desafio".

"Bolsonaro, estaremos juntos em mais esse desafio, sem perder a esperança de viver o ideal de Deus, Pátria, Família e Liberdade! Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!", disse no X.

"O país amanheceu triste. A prisão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, homem honesto, deixa claro o quanto ainda precisamos evoluir como nação e como democracia. Um presidente que sempre viveu o simples, ao lado do povo, mereceria um mínimo de deferência", escreveu também.

O deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ) esteve em frente à Superintendência da Polícia Federal em Brasília e afirmou que a vigília se tratava de um grupo de oração. Segundo ele, o ato teria sido pacífico e com poucos participantes.

"Foi uma vigília de oração, não tinha multidão, era para orar pela saúde do presidente", afirmou.

Lopes também declarou que acredita que Bolsonaro deveria estar em casa, sem tornozeleira eletrônica, e disse temer pelo estado de saúde do ex-presidente, mencionando as sequelas do atentado a faca sofrido em 2018.

Na avaliação do parlamentar, Bolsonaro corre risco de passar mal em ambientes de custódia.

Outros aliadosdo ex-presidente demonstraram apoio a ele. O deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ) questionou, em publicação na rede social X, a alegação de ameaça à ordem pública e afirmou não ver risco em um ato de caráter religioso. Ele classificou a decisão como desproporcional e injusta e disse considerar a medida excessiva.

Já o líder da Oposição na Câmara, deputado Luciano Zucco (PL-RS), disse ter recebido com indignação a notícia da prisão. Em nota, declarou considerar a decisão injustificável e criticou a medida. Segundo ele, Bolsonaro sempre teria colaborado com as autoridades e enfrentaria um quadro de saúde delicado.

Repercussão internacional

A decisão também passou a ser amplamente repercutida por veículos da imprensa internacional.

Nos Estados Unidos, jornais como The Washington Post e The New York Times destacaram o fato de Alexandre de Moraes ter atuado em um sábado, algo descrito como incomum, e ressaltaram o argumento do "risco de fuga" como justificativa central da prisão. As reportagens enfatizaram o paralelismo entre Bolsonaro e outros líderes populistas que enfrentam processos judiciais.

No Reino Unido, o The Guardian classificou a prisão como um dos momentos mais sensíveis da recente história política brasileira e relembrou os ataques de 8 de janeiro de 2023 como parte do contexto. O jornal destacou ainda o papel das Forças Armadas nas investigações e o debate sobre os limites da atuação do Judiciário.

Na Argentina, Clarín e La Nación deram destaque ao suposto registro de violação da tornozeleira eletrônica e à possibilidade de tentativa de evasão. Os jornais argentinos também relacionaram o caso ao histórico de instabilidade política na América Latina.

Em Israel, o The Times of Israel enfatizou o fato de Bolsonaro ser aliado de Trump e contextualizou a prisão dentro de uma onda global de responsabilização judicial de ex-chefes de Estado. Já a emissora americana CBS News citou a prisão como um teste para a resiliência das instituições democráticas brasileiras.

Na Espanha, o El País descreveu Bolsonaro como "líder da extrema-direita brasileira" e destacou o contraste entre a prisão domiciliar e a transferência para custódia na sede da Polícia Federal. O veículo ressaltou o impacto da decisão para o cenário político regional.

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Prisão de Bolsonaro: o resumo jurídico que você precisa entender https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/bolsonaro-sob-os-rigores-da-lei.html 

Prisão necessária

Bolsonaro é preso preventivamente na Polícia Federal em Brasília
Ministro Alexandre de Moraes usou a “garantia de ordem pública” como base para o pedido de prisão. Bolsonaristas foram convocados a fazerem uma vigília, a partir da noite deste sábado, em frente ao condomínio onde o ex-presidente mora.
André Cintra/Vermelho  

Jair Bolsonaro – que cumpria prisão domiciliar desde 4 de agosto – foi levado na manhã deste sábado (22) para a Superintendência da Polícia Federal (PF) em Brasília. Por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), o ex-presidente ficará preso preventivamente até se esgotarem os prazos para o início de sua condenação a 27 anos e três meses de prisão por ter liderado a trama golpista.

A “garantia de ordem pública” foi a base para o pedido, já que bolsonaristas foram convocados a fazerem uma vigília, a partir da noite deste sábado, em frente ao condomínio onde Bolsonaro mora. Quem precipitou a medida foi um filho do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que anunciou a vigília na véspera em suas redes sociais.

Segundo o decreto, a manobra “indica a possível tentativa de utilização de apoiadores” para “obstruir a fiscalização das medidas cautelares e da prisão domiciliar”. O STF viu na vigília “a repetição do modus operandi da organização criminosa liderada pelo referido réu”, que podia “causar tumulto para a efetividade da lei penal”.

“Rememoro que o réu, conforme apurado nestes autos, planejou, durante a investigação que posteriormente resultou na sua condenação, a fuga para a embaixada da Argentina, por meio de solicitação de asilo político”, registrou Moraes, que condenou o chamado à vigília: “Não há limites da organização criminosa na tentativa de causar caos social e conflitos no país, em total desrespeito à democracia”. Ainda conforme o decreto, Bolsonaro tentou romper a tornozeleira eletrônica.

O ministro do STF orientou a PF a cumprir o mandado de prisão “sem algemas” e “com todo o respeito à dignidade” do ex-presidente, que foi preso às 6 horas. Ele chegou às 6h35 à Superintendência da PF, onde passou por exame de corpo de delito com agentes do Instituto Médico-Legal (IML). Bolsonaro deve permanecer numa “Sala de Estado” (reservada a autoridades públicas).

A prisão preventiva é uma medida cautelar por tempo indeterminado e pode ser revista pela Justiça. Isso quer dizer que, quando Bolsonaro começar a cumprir a pena pela tentativa de golpe de Estado, ele não necessariamente ficará na Superintendência da PF.

Na sexta (21), a defesa pediu ao STF que o ex-presidente fosse mantido em prisão domiciliar humanitária por um suposto “risco concreto à vida”. Mas a expectativa do próprio Bolsonaro é a de que, de início, a prisão será em regime fechado, no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília.

Bolsonaro integrou o chamado “núcleo crucial” da trama golpista ao lado de outras autoridades que, sob suas ordens, planejaram impedir a posse do presidente Lula e garantir a permanência do ex-presidente no poder à margem da lei. A condenação de Bolsonaro deve transitar em julgado – ou seja, esgotar a fase de recursos – nos próximos dias.

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Leia também:  Bolsonaro preso por risco de fuga, o que acontece agora? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/bolsonaro-preso-desdobramentos.html

Dólar ainda moeda-chave?

Por que o dólar segue dominante no sistema monetário internacional
Iniciativas como BRICS, SML e INSTEX ampliam alternativas de pagamento, mas não substituem o arranjo consolidado desde 1971
Marcelo Fernandes/Portal Grabois 
www.grabois.org.br   

Está ocorrendo uma ruptura do sistema monetário internacional? 
Desde a imposição das sanções econômicas contra a Rússia em razão desse país ter invadido a Ucrânia em fevereiro de 2022, uma discussão mais ampla sobre “desdolarizaç&atild e;o” se tornou recorrente. Vários analistas acreditam que o papel do dólar americano como moeda-chave do sistema monetário internacional (SMI) estaria em risco ou mesmo que ele já não cumpre essa função. André Lara, por exemplo, não tem mais dúvida de que o domínio do dólar está ameaçado e que “o processo de perda de relevância do dólar no cenário comercial e financeiro mundial já está relativamente avançado”i. Normalmente, este é um processo descrito como fim da hegemonia do dólar, que seria suplantado ou passaria a dividir com outras moedas o palco principal.

Assim, o termo desdolarização tem sido utilizado para caracterizar uma ruptura no atual padrão monetário baseado no dólar. Porém, como veremos neste artigo, existem alguns exageros e imprecisões neste debate.

Dollar Weaponization

Desde os anos 1980, o déficit em transações correntes do balanço de pagamentos e a dívida pública dos Estados Unidos são comumente descritos como fatores responsáveis por uma suposta fragilidade do dólar que inevitavelmente levaria ao seu declínio como moeda padrão do sistema monetário internacional (SMI)ii. Atualmente, entretanto, o argumento principal é de que o governo tem usado o dólar como arma contra seus adversários, como a revista britânica “The Economist” denominou de “ultimate weapon of mass disruption”, algo que ficou mais perceptível após as sanções econômicas contra a Rússia. Isto é, os Estados Unidos vêm utilizando sua posição excl usiva e assimétrica no SMI, aplicando restrições ao uso do dólar e aos sistemas de pagamentos como forma de punição.

Antes das sanções à Rússia, já se discutia o uso do dólar como instrumento geopolítico. A ação mais radical até então tinha sido contra o Irã, grande exportador de petróleo e país com considerável importância regional. Em março de 2012, os bancos irani anos foram excluídos do sistema de mensagens financeiras internacional, o Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift), dificultando muito a venda do seu petróleo no mercado internacional. Em 2016, após um acordo sobre seu programa nuclear, o país recuperou seu acesso para, em novembro de 2018, ser novamente cortado da rede de mensagens. Ainda hoje, o Irã sofre restrições relacionadas ao Swift.

Todavia, o caso mais emblemático, sem dúvidas, é o da Rússia. Em março de 2022, os bancos russos foram excluídos da rede Swift e o país teve quase metade de suas reservas congeladas. Com isso, aproximadamente US$ 300 bilhões dos seus US$ 630 bilhões em reservas não puderam mais ser acessados pelo ba nco central russo, sendo a maior parte de ativos denominados em euros – medida tão excepcional, que teria surpreendido as autoridades russas, segundo o chanceler da Rússia, Serguei Lavroviii. Uma ação sem precedentes, levando-se em conta que a Rússia é a 11ª economia do mundo.

Assim, a redução do uso do dólar pela Rússia não ocorre exatamente por uma escolha das suas autoridades, mas de uma necessidade imposta pelo Ocidente por meio destas sanções econômicas, iniciadas desde a anexação da Crimeia em março de 2014. As sanções econômicas intensific adas em 2022, e sem prazo de duração definido expuseram mais uma vez o uso do dólar como instrumento para promoção dos interesses geopolíticos norte-americanos, ampliando as reivindicações por uma reforma do SMI.

Funcionamento do SMI

O atual padrão monetário internacional, o padrão dólar-flexível, não é fruto de uma reforma planejada ou de qualquer acordo internacional entre as grandes potências. Não existe uma lei internacional que discipline o uso das moedas entre os países. O padrão dólar-flexível nasce de uma decisão unilateral por parte de Washington que, em 1971, pôs fim ao sistema anterior, o padrão ouro-dólar, em que o dólar já era dominante. O dólar tem o predomínio na liquidação das transações comerciais e financeiras, mas outras moedas também cumprem esta função em escala mais restrita, como o iene japonês no espaço asiático. Logo, nenhum país está obrigado a usar o dólar em suas relações econômicas internacionais, ainda que isso possa acarretar  custos econômicos.

Assim, é preciso destacar, pois nem sempre está claro no debate, que o SMI convive com algumas moedas soberanas aceitas fora das fronteiras dos seus países emissores e utilizadas como meio de pagamento e reservas dos bancos centrais. Este é o caso do euro, do iene, da libra esterlina e, mais recentemente, do renminbi (yuan). Estas sã o as moedas mais importantes e ainda possuem a característica de constituírem a cesta de moedas dos direitos especiais de saque (SDR) do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ainda há outras moedas, como o dólar canadense, dólar australiano e o franco suíço, que compõem as reservas de alguns bancos centrais, embora em uma parcela significativamente reduzida.

Portanto, há um conjunto de moedas que podemos classificar de moedas internacionalizadas; porém, uma única desempenha a função de moeda-chave do sistema, definindo o padrão monetário. Neste caso, temos evidentemente o dólar americano como essa moeda.< /span>

Ampliação do SMI por meio de novos acordos monetários

A tese de uma ruptura no SMI não é original: algumas moedas já foram apontadas como candidatas a substituir o dólar, como o marco alemão e o iene japonês nos anos 1980-1990, o euro nos anos 2000, e agora a escolhida parece ser o renminbi da China ou até mesmo o ouro em um curioso retorno ao padrão-ouro do sé ;culo XIX. Outra possibilidade debatida seria a criação de um SMI multimonetário com o dólar dividindo sua liderança com outras moedas.

Uma das evidências apontadas de que o mundo estaria caminhando para a ruptura do SMI seria a emergência de acordos sobre moedas locais. Vale lembrar que tais acordos também não são novidade. Diversos acordos comerciais com a utilização de moedas locais já foram e continuam sendo realizados. Alguns com algum sucesso e outros que, na prática, mal saíram do papel. Atualmente temos a iniciativa dos países que formam os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) sobre o uso de moedas locais, tendo a Rússia a principal interessada por conta das sanções. No âmbito do bloco, também se discute a criação de uma nova moeda – R5 é o nome sugerido para a moeda – também no intuito de facilitar o comércio sem o uso direto do dólar.

Na esfera da América do Sul, há o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) iniciado em 2008, entre Brasil e Argentina, que permite que o comércio entre os dois países seja liquidado em suas respectivas moedas. Mais tarde o SML passou a contar com a participação de Paraguai e Uruguai. Conforme o Grupo de Monitoramento Macroeconômico do Mercosul (GMM), apenas 5% do volume de exportações intra-bloco passavam pelo SML e somente o Brasil responderia por 50%iv. Em 2009, a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) criou o sucre, moeda cujo objetivo declarado era se livrar da “ditadura do dólar”, promovendo a integração das economias do bloco. Inicialmente, o sucre parecia ter um caminho promissor; hoje, na prática, está extinto.

O descontentamento com a forma que os Estados Unidos usam seu privilégio exorbitante sobre o SMI atinge inclusive seus aliados mais próximos. Em janeiro de 2019, para contornar as sanções de Washington ao Irã, Reino Unido, França e Alemanha anunciaram a instituição do Instrument in Support of Trade Exchanges (INSTEX), funcionando como uma câmara de compensação para comercializar com o Irã sem utilizar o dólar. Posteriormente, outros sete países europeus se juntaram à iniciativa (Bélgica, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Noruega, Espanha e Suécia). Entretanto, o INSTEX foi extinto em março de 2023 e, durante o período em que esteve ativo, foi utilizado somente uma vez, em março de 2020, para exportação de remédios da Europa para o Irã. Tudo isso revela a dificuldade de se criar mecanismos de compensação mais amplos e com menos custos.

Rumo a um novo padrão monetário?

Acordos monetários são complexos e, uma vez firmados entre países, as empresas privadas somente farão uso do acordo se perceberem vantagens econômicas. Independente disso, tais acordos podem reduzir o uso do dólar como meio de pagamento – e aqui o termo desdolarização faria sentido, mas não significam por si só uma mudança do padrão monetário. Há de fato uma ampliação das iniciativas de acordos monetários, porém todas elas ocorrem dentro do padrão monetário vigente, isto é, dentro do padrão dólar-flexível inaugurado em 1971. Para os Estados Unidos, não importa se o comércio entre Rússia e China é negociado em renminbi, se a Arábia Saudita irá vender petróleo em euro para a União Europeia ou se o Mercosul está usando o SML. O que importa é se suas importações continuam sendo liquidadas em dólar. É esta a vantagem extraordinária da qual os Estados Unidos jamais abrirão mão: o de ser o único país sem qualquer restrição em seu balanço de pagamentos.

Ademais, o dólar, sob qualquer indicador objetivo que se utilize, confirma seu amplo domínio no sistema monetário e financeiro internacional. Um indicador que normalmente tem sido ressaltado de forma exagerada são as reservas denominadas em dólar dos bancos centrais. Em 1995, no auge do imperialismo norte-americano, a parcela de d&oa cute;lares alocados nas reservas internacionais dos países era de 58,6%; no segundo quadrimestre de 2025 estava em 56,3%. Na verdade, trata-se de uma variação modesta que em parte está ligada à desvalorização do dólar ocorrida neste ano.

Outro indicador interessante é a taxa de turnover cambial, que o Banco Internacional de Compensações (BIS) disponibiliza a cada três anos.

turnover representa a atividade nos mercados cambiais, sendo um bom indicador do uso global de uma moeda. Um mercado que, atualmente, movimenta diariamente US$ 9,6 trilhões, o que significa um aumento de 28%, comparado aos US$ 7,5 trilhões do último levantamento. Vale observar que, como sempre há duas moedas em cada transação, a soma das percentagens totaliza 200%.

Como podemos observar no quadro abaixo, o dólar é amplamente dominante, e ainda teve um ligeiro crescimento comparado ao último triênio. Vale destacar o renminbi que, em 2007, praticamente não participava dos mercados cambiais e agora tem um turnover de 8,8%.

Taxa de Turnover (principais moedas)

Moedas

2007

2010

2013

2016

2019

2022

2025

USD

86,0%

84,9%

87%

87,6%

88,3%

88,5%

89,2%

EUR

37,0%

39%

33,4%

31,4%

32,3%

30,5%

28,9%

JPY

17,0%

19%

23%

21,6%

16,8%

16,7%

16,8%

GBP

15,0%

12,9%

11,8%

12,8%

12,8%

12,9%

10,2%

CNY

0,0%

0,9%

2,2%

4%

4,3%

7,0%

8,5%

Fonte: Banco Internacional de Compensações (BIS)


Na literatura, é bastante mencionado que a moeda que cumpre o papel de moeda chave do SMI precisa ser tratada como um bem público global pelo país emissor, não como uma ferramenta de promoção de seus interesses nacionais.

A questão aqui é que os Estados Unidos usam reiteradamente o dólar segundo seus próprios interesses. Apenas para citar um exemplo, a política do quantitative easing conduzida pelo Fed (banco central dos Estados Unidos) e iniciada em novembro de 2008, um experimento que expandiu a base monetária americana em torno de 700%, obrigando vários governos no mundo a adotarem medidas para tentar controlar a excessiva entrada de dólares e a valorização das suas moedas. Nesse contexto, o então ministro da Fazenda Guido Mantega denunciou que uma “guerra cambial” estava em curso.v O uso do dólar para atender a certos interesses nacionais não deveria surpreender, afinal, com um instrumento tão poderoso, por que os Estados Unidos não utilizariam?

O descontentamento e a demanda por uma reforma no SMI são evidentes. A questão que se coloca é como fazê-la.

Marcelo Fernandes é doutor em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Professor Associado IV do Departamento de Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ( UFRRJ), onde também atua no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária (PPGCTIA). É professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) da UFRJ. Atualmente, está cedido ao Instituto Pereira Passos, na Coordenadoria de Projetos Especiais, e realiza estágio pós-doutoral na UFRJ com pesquisa sobre a internacionalização do renminbi. É membro do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Nacional e Socialismo (GP1) da Fundação Maurício Grabois.

Notas

i RESENDE, André Lara. “A dominância do dólar, os bancos centrais e o mundo pós-Bretton Wood”. CEBRI-Journal, ano 4, no. 15, Jul-Set, 2025.
ii Atualmente tem havido uma ênfase maior sobre a dívida pública americana em relação ao déficit em transações correntes em razão da política fiscal do atual governo Trump, o “Big, Beautiful Bill”, projeto de lei tributária de gastos que dever&aacut e; elevar ainda mais a relação dívida/PIB dos Estados Unidos.
iii JACK, Victor. “Sergey Lavrov admits Russia was surprised by scal e of Western sanctions”, Politico, March 23, 2022. 
iv “GMM avança na criação de propostas para melhorar o Sistema de Pagamentos de Moedas Locais do Mercosul”, 31 de outubro, 2023.
v FERNANDES, Marcelo Pereira. “Notas sobre a conturbada economia norte-americana”. Fundação Maurício Grabois, 2014.

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Leia também: O crepúsculo do império norte-americano https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/eua-em-decadencia.html

21 novembro 2025

Palavra de poeta

Destino
Mia Couto  

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
 
vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso
 
conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
 
agora
que mais
me poderei vencer?

[Ilustração: Diego Rivera]

Leia: "O agente secreto", uma opinião crítica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/o-agente-secreto-critica.html 

Cláudio Carraly opina

O fim da democracia liberal dos Estados Unidos
Cláudio Carraly* 


A democracia americana, por mais de dois séculos, apesar de profundas falhas, serviu como farol de aspirações democráticas globais, porém atravessa hoje uma crise existencial que ameaça sua própria natureza. O que testemunhamos não é um colapso súbito, mas uma erosão sistemática e deliberada das instituições que sustentaram o experimento democrático mais antigo do mundo moderno. Esta transformação segue padrões reconhecíveis de deriva autoritária, ecoando experiências contemporâneas desde a Hungria de Orbán até El Salvador de Bukele, passando pela Polônia de Kaczynski e os primeiros anos do Brasil de Jair Bolsonaro.

Arquitetura da Autocracia: Quando a Democracia se Devora

O processo em curso nos Estados Unidos replica um roteiro familiar aos estudiosos do autoritarismo competitivo, teorizado por Steven Levitsky e Lucan Way. Diferentemente dos golpes dramáticos do século XX, essa transformação utiliza as próprias instituições democráticas para desmontá-las por dentro. Viktor Orbán, na Hungria, forneceu o modelo mais refinado: manter as aparências eleitorais enquanto esvazia sistematicamente o conteúdo democrático das instituições por meio do que Bálint Magyar denomina "captura de Estado mafioso".

Esse mesmo manual foi adaptado com sucesso em contextos diversos. Em El Salvador, Nayib Bukele consolidou poder através de popularidade genuína combinada com intimidação sistemática das instituições. Quando invadiu o Congresso salvadorenho em 2020 com militares armados para pressionar por aprovação de empréstimos, testou os limites da resistência institucional exatamente como Trump faria em 6 de janeiro de 2021. A diferença crucial é que Bukele teve sucesso onde Trump inicialmente falhou, mas isso mudou com seu retorno triunfal em 2025.

A cronologia da implementação americana revela aceleração preocupante. A primeira administração Trump (2017-2021) estabeleceu precedentes com o "Muslim Ban" e ataques sistemáticos à imprensa, testando a resistência institucional. O período Biden (2021-2025) proporcionou uma leve estabilização, mas também permitiu que as forças trumpistas se reorganizassem e aprendessem com seus erros iniciais. O retorno de Trump em janeiro de 2025 marca uma nova fase, caracterizada por poderes executivos expandidos e resistência institucional enfraquecida e enfraquecendo.

Entre 20 de janeiro e 28 de janeiro de 2025, uma ordem executiva removeu proteções legais contra demissões políticas para funcionários federais. Em fevereiro, mais de 75.000 funcionários públicos aceitaram acordos de "renúncia adiada", enquanto 107.000 postos foram eliminados do próximo orçamento fiscal. Tribunais federais declararam essas medidas ilegais, mas a implementação de fato continua durante os processos judiciais, uma tática aprendida diretamente do manual de Orbán, que ignora decisões judiciais inconvenientes enquanto apela e reorganiza o judiciário.

Defensores da administração apresentam narrativa alternativa, argumentando que essas medidas visam aumentar a eficiência governamental e eliminar o que chamam de "Estado administrativo" não eleito. Esses extremistas no poder defendem que a reforma do funcionalismo é necessária para restaurar a responsabilidade democrática. Esta interpretação, embora minoritária entre cientistas políticos, ecoa justificativas similares oferecidas por todos os regimes autoritários contemporâneos: eficiência contra corrupção, vontade popular contra elites entrincheiradas, uma suposta ordem contra caos burocrático.
 

O Novo Macartismo

O paralelo com o macartismo dos anos 1950 é estruturalmente preciso. Joseph McCarthy perseguia supostos comunistas alegando defender a democracia americana; o novo macartismo segue nessa mesma trilha, persegue democratas, acadêmicos e jornalistas em nome de uma visão autoritária de poder ultranacionalista. A diferença metodológica é crucial: enquanto McCarthy operava através de comissões congressionais com alguma supervisão judicial, o novo sistema utiliza poderes executivos expandidos e agências federais, criando menos pontos de controle institucional, ou seja, é muito mais perigoso que o original.

Os mecanismos específicos de coerção em 2025 são impressionantemente abrangentes. Cinquenta e três universidades estão sob investigação federal por violações de programas DEI - Diversidade, Equidade e Inclusão, com ameaças de corte de 400 milhões de dólares em financiamento federal. Sistemas de vigilância de redes sociais monitoram estudantes internacionais, buscando identificar posições “pseudo-antissemitas". O uso de leis de emergência contra opositores políticos se intensifica, incluindo tarifas políticas punitivas como as de 50% contra o Brasil em fevereiro de 2025, uma escalada que ecoa as sanções arbitrárias de regimes autoritários contra países que os desafiam.

Esse padrão de perseguição ampla encontra paralelos inquietantes em outros contextos. Bukele em El Salvador utilizou a guerra contra gangues para justificar estado de emergência que já dura mais de dois anos, permitindo prisões em massa e suspensão de direitos constitucionais. Embora inicialmente popular devido à redução dramática da violência, o modelo salvadorenho demonstra como crises reais podem ser instrumentalizadas para consolidação autoritária. Trump aprende dessa experiência, usando múltiplas "emergências" simultâneas - imigração, "wokismo", "marxismo cultural", para justificar poderes extraordinários.

Apoiadores dessas medidas apresentam contra-argumentos que merecem consideração séria. Grupos como a Foundation for Individual Rights in Education apresentam dados mostrando que 79% dos estudantes conservadores relatam autocensura em campus universitários, argumentando que as medidas restauram "equilíbrio ideológico". Essa narrativa de opressão conservadora em universidades, embora contestada por evidências mais amplas, ressoa com experiências genuínas de estudantes e professores conservadores em certos ambientes acadêmicos. O problema não é a inexistência desses fenômenos, mas sua instrumentalização para justificar medidas autoritárias desproporcionais.

Militarização Silenciosa das Instituições

O Estado de direito enfraquece através de táticas que testam sistematicamente os limites constitucionais. Esta estratégia, denominada de "legalismo autocrático", mantém aparências de legalidade enquanto subverte a substância democrática. O modelo é aplicado com precisão cirúrgica, cada medida individual pode parecer defensável, mas o conjunto produz transformação qualitativa e exponencial do regime.

O uso do chamado tarifaço contra o Brasil exemplifica essa dinâmica. Tradicionalmente reservado para ameaças genuínas à segurança nacional, o International Emergency Economic Powers Act - IEEPA é agora aplicado contra aliados históricos por divergências políticas menores. Tentativas de influenciar nomeações judiciais através de pressão política direta se intensificam, enquanto a transformação do aparelho de Estado em instrumentos de perseguição política interna e externa avança sistematicamente.

Particularmente reveladora é a coerção midiática via Comissão Federal de Comunicações, que pressiona redes de TV através de aprovações de fusões bilionárias. A suspensão do talk show de Jimmy Kimmel pela ABC em setembro de 2025, após críticas persistentes ao trumpismo, e o cancelamento de Stephen Colbert na CBS demonstram como agências regulatórias são instrumentalizadas para silenciar vozes dissidentes através de pressão econômica direta e indireta. O padrão nem é mais sutil e, diante disso, redes de TV "voluntariamente" silenciam críticos para proteger interesses comerciais multibilionários sob análise governamental.

Essa tática ecoa métodos utilizados por Orbán na Hungria, onde oligarcas aliados compraram ou estrangularam economicamente veículos de mídia independentes. Bukele em El Salvador emprega variação similar, usando auditorias fiscais seletivas e pressão publicitária estatal para disciplinar jornais críticos. O modelo americano é mais sofisticado porque utiliza o próprio mercado como mecanismo de censura, mantendo aparências de liberdade empresarial.

Tribunais federais demonstram capacidade de resistência, com decisões contrárias à administração em 67% dos casos contestados até março de 2025. O sistema judiciário federal, com seus juízes vitalícios, representa o principal obstáculo institucional ao autoritarismo. Mas essa resistência enfrenta pressão crescente através de nomeações estratégicas e campanhas de deslegitimação. O cenário futuro depende da velocidade dessa captura judicial, resistência bem-sucedida pode frear a deriva autoritária, mas nomeações judiciais futuras podem alterar irreversivelmente o equilíbrio de poder.

EUA como Catalisador da Extrema-Direita Global

A dimensão internacional representa talvez a transformação mais revolucionária e subestimada. Os Estados Unidos abandonaram o papel de promotor da chamada democracia liberal para se tornarem ativamente um catalisador global do autoritarismo. Essa inversão histórica produz ondas sísmicas através de todo o sistema internacional.

A interferência eleitoral americana agora rivaliza com práticas de regimes autocráticos. O bilionário Elon Musk promove abertamente o AfD alemão (partido de orientação neonazista) antes das eleições de março de 2025, enquanto a Conferência "Make Europe Great Again" em Madrid coordena estratégias entre Trump, Orbán, Meloni e o partido Vox espanhol. O vice-presidente JD Vance critica "erosões democráticas" europeias na Conferência de Munique, invertendo completamente a retórica tradicional americana sobre direitos humanos e democracia, ou seja, estamos vendo uma verdadeira "Internacional Fascista" em pleno funcionamento.

Institutos de pesquisa europeus registram aumento de 23% na aprovação de partidos de extrema-direita após endossos americanos explícitos. O fenômeno representa inversão completa da abordagem tradicional estadunidense, que historicamente favorecia forças democráticas-liberais. Agora os Estados Unidos exportam autoritarismo com a mesma eficácia que antes exportavam seu modelo de democracia.

Essa coordenação internacional autoritária encontra paralelos históricos inquietantes. Assim como regimes fascistas dos anos 1930 se inspiravam e coordenavam mutuamente, a nova extrema-direita desenvolve solidariedade transnacional baseada em valores compartilhados: nacionalismo étnico, autoritarismo populista, racismo, misoginia, desprezo por instituições multilaterais e democráticas e perseguição à diversidade sexual. Bukele participa dessa rede através de relacionamento próximo com Javier Milei na Argentina e apoio explícito a Trump, criando eixo autoritário que busca contaminar as Américas.

Realistas da política externa apresentam interpretação alternativa, argumentando que essa reorientação reflete declínio hegemônico natural dos EUA e busca por novos aliados em mundo multipolar. Alguns analistas veem essa mudança como adaptação estratégica, e não travessia ideológica. Essa perspectiva tem mérito analítico, mas subestima o componente sistêmico e genuíno da transformação trumpista e sua capacidade de inspirar movimentos similares globalmente.

Autocensura como Arma: O Silenciamento da Sociedade

A chamada "erosão executiva" é considerada mais perigosa que golpes dramáticos, porque produz desengajamento cívico através de intimidação psicológica. A autocensura se torna arma mais eficaz que a censura direta, pois cria aparência de liberdade enquanto produz conformidade real e cria seguidores que replicam a ideologia dominante. Pesquisas quantitativas documentam esse fenômeno com precisão alarmante. Nessas pesquisas, professores universitários relatam modificar currículos por medo de represálias, enquanto jornalistas admitem evitar temas considerados "sensíveis", e grandes corporações de mídia autocensuram conteúdo crítico ao governo, criando um sistema interno de coerção que mantém aparências de liberdade editorial.

O humor político emergiu paradoxalmente como forma mais eficaz de resistência democrática. Comediantes tornaram-se mais efetivos que a oposição política tradicional na denúncia de contradições do poder, precisamente porque o humor fura bolhas ideológicas e expõe absurdos de forma acessível. Não coincidentemente, esses enfrentaram pressões sistemáticas: o comediante Jimmy Kimmel foi suspenso em setembro de 2025 após críticas persistentes ao trumpismo, enquanto Stephen Colbert teve seu programa cancelado quando a CBS decidiu resolver "questões pessoais" com Trump. O padrão revela como o humor político, por sua capacidade de mobilizar através do riso, representa ameaça particular ao autoritarismo.

Movimentos de resistência organizada mostram resiliência impressionante. A Federal Employee Unions Coalition e Scholars at Risk organizaram redes de proteção mútua, enquanto mais de 200 universidades criaram fundos legais para defesa de professores. Esta mobilização sugere capacidade resiliente das instituições da sociedade civil norte-americana, mas enfrenta os enormes recursos e organização estatal crescentes.

Veredito Científico: Consenso sobre o Declínio

O consenso acadêmico sobre a natureza da transformação americana é extraordinário em sua convergência. Estudo conduzido pelo Instituto V-Dem com 527 cientistas políticos americanos em janeiro de 2025 revela que 89% classificam o regime atual como "autoritarismo competitivo" ou "democracia defectiva". Steven Levitsky, da Universidade de Harvard e autoridade mundial em transições autoritárias, é categórico: "Não estamos mais vivendo em um regime democrático".

As métricas internacionais confirmam essa avaliação. A Freedom House rebaixou os EUA de 83 para 71 pontos entre 2017 e 2025, enquanto o Polity IV reduziu a classificação de +8 para +5 na escala democrática. O V-Dem Democracy Index coloca os Estados Unidos em 29º lugar global, abaixo de países como Uruguai e Costa Rica - uma humilhação histórica para o suposto e autonomeado "líder do mundo livre".

A comparação internacional torna o declínio estadunidense ainda mais evidente. Enquanto os Estados Unidos retrocedem, países como a própria Polônia demonstraram capacidade de reverter deriva autoritária através de mobilização eleitoral massiva em 2023. A diferença crucial é que a Polônia contava com pressão externa da União Europeia, enquanto os Estados Unidos, como potência hegemônica, não enfrentam constrangimentos externos equivalentes. Logicamente que vozes dissidentes existem, mas são cada vez mais minoritárias. As instituições dos EUA ainda mantêm alguma robustez capaz de reverter o declínio democrático, embora a velocidade e sofisticação dos processos de captura institucional abalem profundamente esse muro institucional ainda de pé.

Cenários Futuros: Entre Colapso e Consolidação

A análise prospectiva identifica três cenários principais, cada um com probabilidades estimadas baseadas em modelos comparativos de transições autoritárias. O primeiro e mais provável cenário aponta para consolidação autoritária plena, esse cenário envolve captura completa do judiciário federal através de nomeações estratégicas, federalização da segurança eleitoral para eliminar controles estaduais e controle crescente da mídia através de pressão econômica sistemática. O precedente histórico é a Hungria entre 2010 e 2018, onde Viktor Orbán consolidou hegemonia através de métodos similares, transformando uma democracia europeia em autocracia estável.

O segundo cenário prevê estabilização em modelo de autoritarismo competitivo. Eleições continuam ocorrendo, mas com vantagens sistemáticas para incumbentes, enquanto a oposição é tolerada, mas constrangida através de múltiplos mecanismos legais e extralegais. Este modelo pode persistir por décadas, como demonstram casos na Hungria, Rússia e Venezuela, criando aparência de pluralismo político enquanto elimina possibilidade real de alternância.

O terceiro cenário envolve a restauração democrática através de mobilização eleitoral massiva nas eleições subsequentes, resistência judicial bem-sucedida, pressão internacional coordenada ou divisões na coalizão autoritária. Precedentes sugerem possibilidade de reversão, mas requerem condições específicas e um nível de mobilização interna e apoio externo que podem não se materializar nos Estados Unidos de hoje.

Resistência e Resiliência

Diferentemente de muitos casos de transição autoritária, os Estados Unidos mantêm recursos institucionais significativos para resistência. A estrutura federal permite que estados democratas como Califórnia e Nova York utilizem recursos econômicos e legais substanciais para resistir à centralização federal. O federalismo americano, ironicamente criado para proteger o regime escravocrata, pode agora proteger a democracia através de múltiplos centros de poder que complicam a captura autoritária total pelo poder central.

O poder judicial federal, com seus juízes vitalícios nomeados em administrações anteriores, mantém independência relativa que frustra sistematicamente iniciativas autoritárias. Decisões contrárias à administração em casos de comércio, imigração, meio ambiente e direitos civis demonstram capacidade de resistência institucional que diferencia os Estados Unidos de muitos outros casos de deriva autoritária.

A sociedade civil americana permanece robusta, com organizações expandindo recursos e capacidade de litígio para níveis históricos. Financiamento privado para defesa de direitos civis atingiu volumes sem precedentes, criando infraestrutura de resistência que pode sustentar uma oposição prolongada. A mídia independente, apesar da pressão crescente através de agências regulatórias federais, mantém capacidade investigativa significativa. Meios como o New York Times possuem recursos financeiros e reputação global que complicam tentativas de silenciamento direto. Plataformas digitais descentralizadas ainda dificultam controle total da informação, embora as chamadas big techs estejam abertamente apoiando o governo de Donald Trump e apoiando a crescente desestruturação democrática.

Lições do Autoritarismo Contemporâneo

A experiência húngara, nascida em 2010 e presente até hoje, oferece lições cruciais sobre consolidação autoritária através de controle midiático sistemático, reforma judiciária estratégica e instrumentalização de fundos europeus para cooptação política. A lição central é que recursos externos, incluindo ajuda internacional, podem ser capturados e pervertidos por regimes autoritários para fortalecer seu próprio poder.

A Polônia, entre 2015 e 2023, demonstra dinâmica diferente, em que tentativas de captura judicial foram bloqueadas por resistência sustentada da sociedade civil e pressão da União Europeia, culminando em restauração parcial da democracia em 2023. A lição crucial é que mobilização sustentada pode reverter deriva autoritária, mas requer coordenação entre sociedade civil, oposição política e pressão externa.

El Salvador sob Bukele desde 2019 exemplifica como popularidade genuína pode ser instrumentalizada para consolidação autoritária. Bukele mantém aprovação superior a 80% enquanto desmonta sistematicamente controles institucionais, demonstrando que autoritarismo competitivo pode ser profundamente popular, especialmente quando produz resultados tangíveis como redução da criminalidade.
O Fim da Era Liberal?

A transformação dos Estados Unidos transcende fronteiras nacionais com implicações sísmicas para a ordem internacional. Como potência global desde 1945, estruturaram o sistema internacional liberal através de instituições multilaterais, alianças econômicas e promoção dos seus valores internos. Sua conversão aberta ao autoritarismo produz efeitos sistêmicos que redefinem a própria natureza das relações internacionais.

O efeito dominó é mensurável e acelerado. Regimes autoritários globalmente sentem-se legitimados e empoderados pela transformação americana, enquanto índices de democracia global registram declínio acelerado desde 2017. A total inversão do já limitado soft power americano agora favorece movimentos autoritários ao invés dos regimes liberais-democráticos, representando uma mudança histórica comparável ao fim da hegemonia do Império Britânico no século XX.

Alianças tradicionais como NATO e OCDE enfrentam crise existencial sem liderança democrática americana consistente. Instituições multilaterais perdem capacidade de coordenação e enfrentamento, criando um vácuo complexo de analisarmos no curto prazo, mas que surgirão como alternativas ao liberalismo americano decadente. Paradoxalmente, a crise norte-americana pode catalisar democratização em outras regiões. Europa, América Latina e Ásia podem assumir liderança democrática global, desenvolvendo modelos alternativos de governança liberal que não dependam de hegemonia americana. Essa transição, embora potencialmente positiva a longo prazo, envolve um período de instabilidade e incertezas significativas.

Entre Colapso e Renovação: O Veredito

O que testemunhamos nos Estados Unidos representa momento de inflexão histórica cujo resultado permanece genuinamente indeterminado. As forças de erosão democrática são poderosas, sistemáticas e seguem padrões reconhecíveis de transição autoritária observados em múltiplos contextos contemporâneos. Simultaneamente, recursos de resistência institucionais, sociais e federais mantêm capacidade significativa de resposta que diferencia o caso americano de muitas outras transições autoritárias.

A questão central não é se a democracia dos EUA enfrenta ameaça existencial - o consenso acadêmico confirma inequivocamente que enfrenta - mas se possui recursos suficientes para superá-la. A resposta determinará não apenas o futuro deste país, mas o destino da própria ideia democrática no século XXI, pois a falência da democracia liberal em seu berço histórico representaria golpe devastador para essas aspirações de forma global.

Para o mundo, isso representa simultaneamente o fim de uma era e o início de outra. Se a democracia liberal pode morrer onde nasceu e floresceu por mais de dois séculos, que esperança resta para sua sobrevivência em contextos menos favoráveis? Alternativamente, se pode ser renovada e fortalecida através desta crise existencial, que lições oferece para democratização e resistência autoritária mundial? Que tal uma nova democracia baseada verdadeiramente na inclusão, igualdade, fraternidade, solidariedade, humanismo e internacionalismo?

A história permanece aberta. O autoritarismo americano não é inevitável, assim como seu modelo de democracia não é eterno. O que emerge desta crise dependerá da capacidade de mobilização coletiva dos próximos anos críticos. Neste sentido, o diagnóstico sombrio deste texto não constitui profecia fatalista, mas alerta para ação urgente e sustentada em defesa das instituições democráticas, ainda que imperfeitas, enquanto ainda é possível salvá-las. O tempo está se esgotando, mas não se esgotou. A democracia norte-americana pode morrer ou pode renascer ainda mais forte em novos parâmetros, quem sabe, mais inclusiva e socialmente mais justa.


*advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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