20 dezembro 2025

Minha opinião

Muita coisa mudou
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65   

A certa altura da vida, basta uma notícia fortuita para reacender lembranças de tempos idos, marcas na memória cotejadas ao longo da estrada. Leio agora que as vendas do comércio eletrônico brasileiro alcançaram o montante de R$ 24,12 bilhões em 2012, mais 29% do que o ano anterior, de acordo com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm).

O brasileiro compra cada vez mais pela internet: roupas, acessórios, cosméticos e eletrodomésticos, sobretudo.

Lembro que num delicioso livro de viagem – Gato Preto em Campo de Neve – escrito por Érico Veríssimo em 1941, quando de uma excursão pelos EUA, li sobre a existência de coisas que sequer conseguia imaginar. Meu horizonte pouco ultrapassava os limites da Lagoa Seca, bairro de Natal, onde nasci e vivi até o meio da adolescência. (Mais tarde, já no Recife, outro livro, este do jornalista Mauro Almeida, também referente à vida nos EUA – Estados Unidos da América, civilização empacotada -, voltaria a me impressionar). Tudo me parecia moderno demais, inatingível ao nosso Brasil à época alvo de comentários depreciativos que ouvia na mercearia de meu pai. – Isso nunca vai chegar aqui, diziam frequentadores mais assíduos, mais dados à conversa do que à compra.

Pois hoje “tudo aquilo” chegou cá em nossas terras. Revistas especializadas, ditas temáticas, tem pra qualquer gosto e interesse: jardinagem, criação de felinos e cães, pesca e muito etc. a perder de vista. As chamadas lojas de departamento de antigamente, agora moderníssimos complexos plantados como âncoras nos chamados shopping centers.

Daí não mais se estranhar que nove milhões de brasileiros tenham feito sua primeira compra online em 2012. A previsão é que, em 2013, se amplie consideravelmente o consumo de bens digitais, como e-books, músicas e filmes “on demand”. Isso na proporção direta da expansão das vendas de tablets e smartphones.

- Muita coisa mudou, meu filho – dizia minha mãe diante da constatação de novas modernidades, que a surpreendiam sempre.

Tem gente que se queixa disso. Que preferiria os modos de compra antigos, na bodega da esquina e na feira livre; ou, no máximo, pelo reembolso postal. E que encontra sempre um veio por onde criticar as múltiplas facilidades advindas da tecnologia da informação.

Cá com meus modestos botões, prefiro saudar com entusiasmo tudo o que facilite os procedimentos corriqueiros, quase automáticos, que a vida em grandes cidades nos impõe – inclusive o indefectível ato de comprar. E, se possível, pegar carona nessa onda, e com isso livrar mais tempo para velhos costumes – como de ler livros e ouvir uma boa música e dar atenção à pessoas queridas. Se temos que correr muito nesse mundo de competição, de obstáculos à livre locomoção e de perda de tempo útil, pois que o façamos com a ajuda das modernas tecnologias e nos locupletemos todos das horas que ganhamos de sobra.

Crônica publicada  no Blog da revista Algomais e no Jornal da Besta Fubana em janeiro de 2013

Leia: "Beto de Shangai" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/05/minha-opiniao_11.html 

Rubem Braga, cronista

Rubem Braga, o humanista que fez da crônica literatura
Trinta e cinco anos após sua morte, Rubem Braga segue vivo na delicadeza com que ensinou o Brasil a olhar o cotidiano, elevando a crônica à condição de gênero maior
Cezar Xavier/Vermelho  

Rubem Braga nunca precisou levantar a voz para ser ouvido. Preferia a conversa mansa, quase um sussurro, como quem chama o leitor para sentar à sombra de uma árvore e observar o tempo passar. Há 35 anos, quando escolheu morrer do mesmo modo como escolheu viver — sem espetáculos, sem pressa e sem concessões —, deixou ao país não apenas mais de 15 mil crônicas, mas uma maneira de existir na literatura.

Morreu sozinho, em seu apartamento em Ipanema, depois de se despedir de amigos e de aceitar a morte como quem aceita o vento que muda de direção. Em seus últimos textos, escreveu sobre a insignificância do eu diante do mundo — não como desespero, mas como libertação. Era seu humanismo mais radical: retirar o ego do centro para devolver protagonismo à vida.

A grandeza do pequeno

Antes de Braga, a crônica era vista como um gênero menor, um intervalo entre notícias mais “importantes”. Depois dele, tornou-se morada definitiva da literatura brasileira. Não por acaso, críticos e escritores costumam dividir o gênero em “antes e depois de Rubem Braga”.

Sua revolução não veio pelo excesso, mas pela economia. Frases curtas, vocabulário límpido, temas aparentemente banais: um passarinho, uma amendoeira, o Natal solitário, o mar visto da janela. Mas ali, no que parecia pequeno, morava o essencial. Braga ensinou que o cotidiano é o grande palco da condição humana — basta saber olhar.

Humanismo sem discurso

O humanismo de Rubem Braga não se manifesta em tratados, slogans ou discursos morais. Ele surge na empatia silenciosa com figuras anônimas, na ternura pelos que passam despercebidos, na atenção quase reverente à natureza. Seus textos não explicam o mundo; acolhem-no.

Há quem diga que não há mais espaço na imprensa para isso. Em tempos de soluços entre lulismo e bolsonarismo, trumpismo e genocídio, haters do twitter e viralização no tiktok, parece desinteressar o debruçar sobre passarinhos, a praia, a borboleta, o pão quentinho de cada manhã, o sublime. Mas é bom lembrar que Braga escreveu entre o levante armado contra Getúlio em 1932, chegando a ser preso; foi correspondente de guerra da FEB na Itália, além de atravessar a censura da ditadura militar e a hiperinflação da redemocratização. Mesmo assim, a poesia sempre esteve lá.

“Sou um homem sozinho, numa noite quieta”, escreveu, e nessa solidão não havia isolamento, mas escuta. Braga escrevia como quem presta homenagem ao outro — fosse gente, fosse bicho, fosse paisagem. Em tempos de opiniões estridentes, sua literatura permanece como um convite à delicadeza.

O cronista que escolheu ser cronista

Formado em Direito, diplomata por circunstância, correspondente de guerra por dever, Rubem Braga só quis ser, de fato, cronista. Não ambicionou o romance total, nem o grande ensaio. Fez da crônica o gênero de sua vida e, ao fazê-lo, deu a ela estatura literária definitiva.

Influenciou poetas, prosadores, jornalistas. Bebeu do Modernismo, mas foi além: trouxe oralidade, lirismo e humanidade para as páginas dos jornais. Transformou o espaço efêmero da imprensa em território duradouro da literatura.

O sabiá continua cantando

Trinta e cinco anos depois de sua partida, Rubem Braga segue atual — talvez ainda mais necessário. Num mundo apressado, polarizado e barulhento, sua obra resiste como um gesto de calma. Lê-lo é reaprender a olhar, a sentir e a silenciar.

Se a crônica brasileira mudou depois dele, como tantos afirmam, é porque Braga provou que a literatura não precisa ser grandiosa para ser grande. Basta ser humana. E nisso, poucos foram tão altos quanto ele. Em 12 de janeiro próximo, o escritor capixaba completaria 113 anos, se não tivesse parado definitivamente de escrever em 19 de dezembro de 1990.

Para entender um estilo tão influente na literatura, fica aqui uma de suas crônicas mais marcantes, O padeiro, de 1956:

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não, senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina — e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”
E assobiava pelas escadas.

Rio, maio, 1956.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Global, 2019

[Se comentar, identifique-se]

"Meu ideal seria escrever...", crônica de Rubem Braga https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/uma-cronica-de-rubem-braga.html

Presença de Maiakovski

“...é indispensável/que sobre todos os tetos, cada noite,/uma única estrela, pelo menos, se alumie.”

Vladimir Maiakovski  

Leia um poema de José Martí https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_5.html 

19 dezembro 2025

Palavra de poeta

Lembrança alada
Mia Couto  

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória

de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés

o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra

uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes

com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma

que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.

[Ilustração: Gilvan Samico]

Leia também: "O baile", poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/palavra-de-poeta_18.html 

Brasil: janela histórica

A armadilha da austeridade permanente
Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS*/A Terra é Redonda   

Fui recentemente desafiado a pensar sobre os desafios estruturais que um programa desenvolvimentista enfrenta no Brasil contemporâneo.[i] Minha contribuição aqui busca articular duas dimensões desse desafio: primeiro, as restrições domésticas impostas pelo arcabouço fiscal à execução de uma política econômica desenvolvimentista; segundo, as oportunidades abertas pela reconfiguração geopolítica global, particularmente a rivalidade sino-americana, que criam condições históricas para uma estratégia de autonomia tecnológica e reindustrialização.

Meu argumento central é que essas duas dimensões estão intrinsecamente conectadas: sem reformar as amarras fiscais que inviabilizam investimentos públicos estratégicos, o Brasil permanecerá incapaz de aproveitar a janela geopolítica que se abre.

A armadilha da austeridade permanente

O chamado “arcabouço fiscal” ou “regime fiscal sustentável” representa a continuidade, sob nova roupagem, da lógica da austeridade que domina a política econômica brasileira pelo menos desde 2015. Embora apresentado como mais flexível que o teto de gastos de Michel Temer, o novo regime mantém o essencial: a subordinação da política fiscal a metas de resultado primário e a limitação do crescimento das despesas primárias a um teto móvel vinculado à 70% do crescimento da receita, com crescimento real máximo de 2,5% ao ano.

As consequências dessa arquitetura institucional são evidentes. Primeiro, ela perpetua a compressão dos investimentos públicos, que caíram de 3,5% do PIB em 2010 para menos de 1% atualmente. Segundo, ela impõe uma contenção permanente dos gastos sociais justamente quando o país deveria expandir sua rede de proteção e seus serviços públicos. Terceiro, e crucialmente para o argumento que desenvolvo aqui, ela inviabiliza a capitalização de empresas estatais e os investimentos em infraestrutura necessários para viabilizar um projeto desenvolvimentista.

O problema não é meramente técnico ou contábil. Trata-se de uma escolha política que prioriza a rentabilidade dos títulos públicos e a tranquilidade dos mercados financeiros em detrimento da capacidade do Estado de induzir o desenvolvimento econômico.

Como demonstrei em análises anteriores, essa escolha reflete um condomínio hegemônico entre o capital estrangeiro e o grande capital financeiro doméstico que se consolidou após o golpe de 2016 e que resiste a qualquer projeto que ameace suas estratégias de acumulação que integra a economia brasileira de modo dependente no capitalismo mundial.

A recuperação do gasto público, seja na infraestrutura social seja na econômica, ao contrário, é fundamental para ativar um modelo de crescimento econômico que combine apoio popular e investimentos públicos e privados orientados para atendimento das necessidades da população brasileira.

Reforma fiscal estratégica – exclusões necessárias

Diante desse impasse, o ideal seria propormos a superação do arcabouço. Se não tivermos força política para tanto, pelo menos devemos obter duas exclusões fundamentais do cálculo dos gastos limitados pelo arcabouço fiscal.

Primeira: exclusão dos gastos em educação e saúde. A racionalidade dessa proposta é evidente. Educação e saúde são investimentos de longo prazo na capacidade produtiva da nação, não gastos de consumo. Tratá-los como despesas ordinárias que devem ser contidas é condenar o país ao subdesenvolvimento permanente.

Mais ainda, em um momento histórico em que a competição econômica global se desloca crescentemente para setores intensivos em conhecimento – inteligência artificial, biotecnologia, transição energética, entre outros –, comprimir investimentos em educação, ciência e tecnologia é renunciar antecipadamente a qualquer possibilidade de inserção soberana na economia mundial.

Segunda: exclusão dos gastos com capitalização de empresas estatais e investimentos em infraestrutura realizados pela administração direta e unidades federadas. Esta exclusão é ainda mais crucial para o argumento que desenvolvo aqui. Sem capacidade de capitalizar empresas como Petrobras, Eletrobras (onde o Estado ainda mantém participação minoritária), BNDES e outros bancos públicos, o Estado brasileiro fica desarmado para implementar políticas industriais substantivas.

Contudo, tal capitalização, incluída no teto do arcabouço fiscal, é financeiramente inviável. Contudo, sem poder investir em infraestrutura logística, energética e digital fora do teto de gastos, o país permanece prisioneiro de gargalos estruturais que inviabilizam qualquer estratégia de desenvolvimento.

Um pequeno sinal disso é que, em 05/12, a LDO de 2026 aprovada pelo Congresso Nacional retirou algo como R$ 10 bilhões do teto do arcabouço para auxiliar na recuperação financeira dos Correios, viabilizando a continuidade de um serviço essencial para integrar a nação.

Meritória em si, a exclusão deste gasto do teto do arcabouço e da meta fiscal levanta uma pergunta óbvia: por que só atender a necessidades urgentes de investimento público – como os Correios ou a reconstrução de infraestruturas destruídas por desastres climáticos – ao invés de viabilizar a expansão planejada do investimento público orientado para restaurar o desenvolvimento econômico e social?

Essas exclusões não representam irresponsabilidade fiscal, mas sim uma compreensão mais sofisticada do que significa “sustentabilidade” em política econômica. Sustentável não é aquilo que agrada aos mercados financeiros no curto prazo, mas sim aquilo que constrói capacidades produtivas de longo prazo. Países desenvolvidos jamais impuseram a si mesmos as amarras que o Brasil se autoinflige.

A janela geopolítica sino-americana[ii]

Enquanto o Brasil se paralisa em debates sobre décimos de ponto percentual no resultado primário, o mundo passa por uma reconfiguração geopolítica de magnitude histórica. A ascensão da China como potência tecnológica e industrial, e a resposta estadunidense na forma de contenção e “desacoplamento”, criam oportunidades sem precedentes para países de desenvolvimento intermediário que souberem aproveitar as contradições dessa nova guerra fria.

Os dados são eloquentes. A participação da China no comércio exterior brasileiro saltou de meros 2% no ano 2000 para 31,3% em 2023, tornando-se nosso principal parceiro comercial. Simultaneamente, a participação dos Estados Unidos caiu de 23,9% para 10,3% no mesmo período. Essa reorientação comercial não é mero acidente estatístico, mas expressão de uma transformação estrutural na economia mundial.

Mais significativo ainda: essa transformação não se limita ao comércio. Empresas chinesas tornaram-se protagonistas em setores estratégicos da infraestrutura brasileira. Na geração de energia elétrica, empresas chinesas controlam 13% da capacidade instalada do país. Na transmissão, controlam 18% das linhas. Em telecomunicações, a Huawei consolidou-se como fornecedora fundamental, apesar das pressões estadunidenses para sua exclusão das redes 5G.

O segundo governo de Donald Trump, com sua ênfase em unilateralismo e protecionismo, tende a aprofundar essa tendência. Enquanto Washington impõe tarifas, restrições tecnológicas e exige subordinação geopolítica de seus parceiros, Beijing oferece financiamento, transferência tecnológica e parcerias sem condicionalidades políticas explícitas.

Esta é a janela histórica que se abre: aproveitar a competição sino-americana para negociar transferências tecnológicas substantivas e construir capacidades produtivas autônomas. Mas – e aqui retorno ao primeiro argumento – essa janela só pode ser aproveitada se o Estado brasileiro tiver capacidade fiscal e institucional para ser um parceiro relevante, não um mero receptor passivo de investimentos.

Parcerias estratégicas: transição energética, Inteligência artificial e semicondutores

Proponho três eixos concretos de parcerias estratégicas com capital estatal chinês, todos dependentes da reforma fiscal que defendo.

Primeiro eixo: transição energética e transferência tecnológica. O Brasil possui vantagens comparativas evidentes em energia renovável – hidroelétrica, eólica, solar, biomassa. Mas nossa inserção nesse setor tem sido predominantemente como fornecedor de matérias-primas e receptor de tecnologias já maduras.

A proposta é estabelecer joint ventures entre empresas estatais brasileiras (Petrobras, eventualmente uma nova empresa focada apenas em energias sustentáveis) e grupos estatais chineses líderes em tecnologias de transição energética – painéis solares de alta eficiência, turbinas eólicas offshore, baterias de armazenamento, hidrogênio verde.

O objetivo não é apenas atrair investimentos, mas estabelecer contratos de joint venture que incluam cláusulas explícitas de transferência tecnológica e produção local de componentes de alta intensidade tecnológica. A China possui tanto o interesse estratégico (diversificar cadeias produtivas diante de pressões ocidentais) quanto a capacidade tecnológica para viabilizar esse tipo de parceria. Mas isso exige contrapartida brasileira: capacidade de co-investimento via capitalização de estatais, algo impossível sob o atual arcabouço fiscal.

Segundo eixo: inteligência artificial e economia digital. A corrida pela supremacia em Inteligência artificial é o front central da competição tecnológica global. O Brasil não tem capacidade de competir diretamente com Estados Unidos ou China nesse campo, mas pode buscar uma inserção qualificada.

Proponho parcerias para desenvolvimento de aplicações de Inteligência artificial voltadas para especificidades brasileiras – agricultura de precisão tropical, gestão de biomas complexos como Amazônia e Cerrado, sistemas de saúde pública em escala continental, educação adaptativa para país de dimensões continentais e desigualdades regionais extremas.

Empresas chinesas de Inteligência artificial enfrentam crescente fechamento de mercados ocidentais. O Brasil pode oferecer não apenas um mercado de 215 milhões de habitantes, mas também dados e problemas únicos que enriqueceriam o desenvolvimento dessas tecnologias. Em contrapartida, exigimos transferência tecnológica, formação de quadros brasileiros e desenvolvimento de capacidades computacionais nacionais – data centers soberanos, processamento em território nacional, segurança de dados.

Terceiro eixo: semicondutores e autonomia tecnológica. A dependência brasileira de semicondutores importados é quase absoluta, tornado o país vulnerável tanto a choques de oferta (como vimos na pandemia) quanto a pressões geopolíticas. A China investiu centenas de bilhões de dólares na última década para reduzir sua própria dependência de chips ocidentais, especialmente diante das restrições impostas pelos EUA.

Proponho negociar com grupos chineses do setor a instalação no Brasil de plantas de fabricação de semicondutores de gerações anteriores (não necessariamente os chips mais avançados de 3 ou 5 nanômetros, mas chips de 28nm ou superiores que atendem 90% das aplicações industriais, automotivas e de infraestrutura).

Em troca, oferecemos mercado garantido via compras públicas, incentivos fiscais e, crucialmente, uma localização geográfica que oferece alguma proteção contra pressões geopolíticas estadunidenses.

Esses três eixos, por sua vez, devem estar conectados a projetos coordenados pelo Estado de expansão da infra-estrutura econômica e social orientada para um modelo de crescimento que combine redução de desigualdades, sustentabilidade ecológica e atendimento de necessidades reconhecidas da população brasileira.

Síntese – reforma fiscal como pré-condição geopolítica

Retorno ao argumento central: essas parcerias estratégicas não são viáveis sem a reforma fiscal que proponho. Joint ventures substantivas exigem que o parceiro brasileiro entre com capital, não apenas com território e mão-de-obra barata. Transferência tecnológica genuína só ocorre quando o receptor demonstra capacidade de absorção, o que exige investimentos massivos em educação, pesquisa e desenvolvimento institucional. Autonomia tecnológica não se conquista com passividade fiscal.

O momento é agora. A janela geopolítica aberta pela rivalidade sino-americana não permanecerá aberta indefinidamente. Se o Brasil não aproveitar a atual conjuntura para negociar parcerias substantivas, voltaremos à condição de receptores passivos de investimentos em setores de baixo valor agregado.

As eleições de 2026 devem ser disputadas em torno dessa escolha civilizatória: continuar prisioneiros de uma austeridade que nos condena ao subdesenvolvimento permanente, ou realizar as reformas institucionais – começando pela fiscal – que viabilizam uma estratégia soberana de inserção na economia mundial do século XXI.

A pergunta que coloco para debate não é se podemos fazer isso, mas se teremos a coragem política de fazê-lo.

*Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor titular Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A era Vargas: Desenvolvimentismo, economia e sociedade (Editora da Unicamp). [https://amzn.to/3RxhzIe]

Notas


[i] O texto foi preparado para responder ao desafio posto pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo-FESPSP, na figura de Angelo Del Vecchio e Ubiratan de Paula Santos, que organizaram reunião ampla em 06/12/2025 para voltarmos a debater, como em 2017, a urgência de um novo projeto de Nação.

[ii] Este item baseia-se no paper Donald Trump’s Unilateralism, Brazilian Nationalism, and the China-BRICS Nexus, apresentado na Fudan-Latin America Universities Consortium – FLAUC 7th Annual Meeting (PUCp, Lima, Peru, dec. 04-05th).

[Qual a sua opinião?]

Leia também: Terras raras: por que evitar aproximação com os EUA https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/reservas-estrategicas.html

Humor de resistência

 

Enio

Leia: A influência que fica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/minha-opiniao.html 

Editorial do 'Vermelho'

Sob controle da direita, Senado reduz penas de criminosos golpistas
Lula anunciou que vetará o execrável projeto, que incentiva novas aventuras golpistas
Editorial do 'Vermelho' www.vermelho.org.br   

 

A aprovação pelo Senado do chamado Projeto de Lei da Dosimetria, que reduz a pena de condenados pelos atos do 8 de janeiro e dos que lideraram a tentativa de golpe de Estado, com o ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro à frente, é um retrocesso que afronta a democracia. Foram 48 votos a favor da aprovação e 25 contra. A exemplo do que aconteceu na Câmara, o consórcio da direita e da extrema-direita, se valendo da maioria, impôs esse escárnio à consciência democrática da nação e conspurcou o julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em entrevista coletiva nesta quinta-feira, 18, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que vetará o projeto. “As pessoas que cometeram um crime contra a democracia brasileira terão que pagar”, afirmou.

Na lógica do rolo compressor, a direita fez uso de uma manobra casuística. Diante da alteração de mérito do projeto, regimentalmente deveria ter retornado à Câmara para nova deliberação. Mas, para evitar isso, reduziram mudança de conteúdo a uma mera “emenda de redação”, o que motivará judicialização do caso.

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), vice-presidente do PCdoB, disse que a aprovação do projeto no Senado fez parte da “pior pauta possível”, de “perdão, de alívio de redução de pena para quem atentou contra a democracia”. “Por mais que o texto tenha alteração no Senado, o que vai ficar, naquele texto, é exatamente a redução de pena, como se atentar contra a democracia fosse um crime menor”, avaliou. “É um acinte às ruas de domingo (as manifestações populares contra o projeto do dia 14), um acinte à luta democrática brasileira, um acinte às famílias que lutaram contra a ditadura e esses militares, um acinte à toda a luta que se construiu e a resposta que o Estado deu pela primeira vez na história.”

Como afirmou o relator da trama golpista no STF, ministro Alexandre de Moraes, não é possível atenuante “em penas aplicadas depois do devido processo legal, aplicadas depois da ampla possibilidade de defesa, porque isso seria um recado à sociedade de que o Brasil tolera ou tolerará novos flertes contra a democracia.”

A dimensão da gravidade do projeto, portanto, é gigantesca. Ele ameniza significativamente um crime de enormes consequências, um atentado à nação, à soberania popular e à salvaguarda de direitos fundamentais. Com resultados que a história conhece bem, em especial no Brasil, quando processos semelhantes triunfaram, sobretudo a ditatura militar imposta em 1964.

E com o agravante de que os golpistas interagiram com o intervencionismo de potência estrangeira, submetendo-se ao ditame do governo estadunidense de Donald Trump com seu tarifaço e outras medidas para ameaçar a soberania brasileira, proferindo chantagens explícitas ao Poder Judiciário do país, num contexto de intervencionismo imperialista na região, cujo extremo é a escalada de atos de guerra contra à Venezuela. Logo após, a votação da “dosimetria” na Câmara, a embaixada dos Estados Unidos no Brasil louvou o benefício aos golpistas. Jornalistas que fazem cobertura do Congresso, declararam que houve articulação direta da mesma embaixada com senadores.

Na votação no Senado Federal, na fase da Comissão de Constituição e Justiça, houve uma orientação de procedimento da liderança do governo aos senadores da base que provocou um contencioso público entre os parlamentares da base e com a própria coordenação política do Palácio do Planalto. A questão encerra controvérsia, mas o que fica é que não pode, como houve, se cometer erro numa matéria de magna importância como essa.

O certo é que o consórcio da direita e da extrema-direita, responsável pela aprovação do projeto na Câmara e no Senado, praticou uma agressão ao povo, ao país e aos que pagaram preço elevado para a conquista da democracia e de todos os benefícios sociais dela decorrente. Essa constatação remete à obrigatoriedade de um amplo e unitário movimento de resistência ao avanço do projeto nos seus trâmites finais e de denúncias sistemáticas sobre a ameaça que a impunidade aos criminosos golpistas representa.

Ou seja: o veto do presidente Lula precisa ser amplamente respaldo pelas forças democráticas, organizadas em movimentos sociais, partidos políticos e entidades representativas da sociedade. Respaldo que deve se estender ao STF, caso a demanda chegue à sua alçada. O Brasil democrático precisa se erguer com vigor nesse momento, deixando bem demarcado que criminosos golpistas e manobras para absolvê-los não terão êxito.

[Qual a sua opinião?]

O lugar do PCdoB na cena política https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/partido-renovado-e-influente.html