Pandemia agrava 'déficit de natureza' em crianças e adultos: 'Estamos menos vivos quando nos concentramos nas telas'
Néli Pereira, BBC Brasil
Aumento na adoção e compra de animais domésticos, mudança na
disposição dos móveis para garantir espaço para o banho de sol dentro de casa e
crescimento na venda de plantas e flores. Esses são apenas três indícios de um
problema comum enfrentado por muitas pessoas durante a pandemia do coronavírus:
a falta de contato com a natureza, provocada principalmente pelo confinamento e
isolamento social.
Além dos três movimentos, outro ainda reforça o que o americano Richard Louv convencionou chamar de "déficit de natureza": o aumento do êxodo urbano. Somente nos três primeiros meses de pandemia, até junho de 2020, em São Paulo, a procura por imóveis nas cidades a mais de 100 quilômetros de distância da capital havia subido 340% na comparação com o trimestre anterior, segundo dados da plataforma ZAP Imóveis.
Muita gente começou a repensar a vida nas grandes cidades, privadas do contato com a natureza, em tempos de trabalho remoto e impossibilidade de acesso aos serviços da metrópole.
"Ironicamente, a
pandemia atual, por mais trágica que seja, aumentou o déficit de natureza, mas
também fez crescer dramaticamente a consciência pública da profunda necessidade
humana de conexão com a natureza", diz ele.
Autor de diversos livros, entre eles A Última Criança na Natureza - Resgatando nossas crianças do
transtorno de déficit de natureza, Louv afirma que a pandemia, ao mesmo tempo que
agrava nossa já distante relação com a natureza, fez muitas pessoas perceberem
que essa conexão é essencial para uma vida saudável - física e mentalmente.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele afirma que "a pandemia
nos incitou a imaginar novas imagens de um futuro em que nossa conexão com a
natureza e uns com os outros, como parte da natureza, começa a ressurgir".
Confira a entrevista:
BBC News Brasil - No livro A Última Criança na Natureza você
trata da falta de contato com a natureza e o impacto dessa ausência na vida das
crianças, tanto físico quanto psicológico. Durante a pandemia do coronavírus
muitos de nós, crianças e adultos, fomos privados da vida perto da natureza,
confinados em apartamentos e casas em grandes cidades. Como essa distância e
falta de contato com a natureza podem nos afetar?
Richard Louv - Ainda que tenhamos que confiar mais na tecnologia, ao mesmo tempo a pandemia nos lembra que às vezes não sabemos do que precisamos até que esse "algo" desapareça - ou fique inacessível. Muitos de nós ficamos mais conscientes dessa necessidade de conexão com a natureza, e da necessidade de agir.
No meu novo livro, Nosso Chamado Selvagem (em tradução literal), eu escrevo sobre a epidemia da solidão humana. Mesmo antes da pandemia do coronavirus, o isolamento social rivalizava com o tabagismo e a obesidade como um risco para a saúde. O aumento da solidão humana é causado por muitos fatores, mas pode muito bem estar relacionado com a própria solidão da espécie. Nós estamos desesperados, como espécie, a não nos sentirmos sozinhos no universo. E não estamos, se prestarmos bem atenção.
Ironicamente, a pandemia atual, por mais trágica que seja, aumentou o déficit de natureza, mas também fez crescer dramaticamente a consciência pública da profunda necessidade humana de conexão com a natureza e está contribuindo para um senso ainda maior de urgência ao movimento para conectar crianças, famílias e comunidades à natureza.
Enquanto nos isolávamos
em casa, muitos de nós ficamos fascinados com o aparente retorno dos animais
selvagens às nossas cidades e bairros. Alguns animais de fato encontraram
caminhos até o ambiente urbano. Mas muitos deles já estavam lá, escondidos da
vista de todos. Durante os períodos de "lockdown" retomaram os
hábitos naturais. Quando o ar e água ficaram mais claros e limpos, nós vimos
não apenas o que estávamos perdendo, mas também do que esperávamos ver: o
vislumbre de um mundo com a natureza restaurada.
Então, precisamos nos
perguntar: Como será o mundo pós pandêmico? Estamos de fato nos preparando para
potencializar os benefícios e reduzir os riscos da conexão entre humanos e o
resto da natureza? O que será preciso para mover nossa espécie a agir contra os
desequilíbrios climáticos, o colapso da biodiversidade, a ameaça de extinções
em massa, e pandemias relacionadas à forma como tratamos os animais?
BBC News Brasil - Você fala da necessidade de termos
"vitamina N", de natureza. Como a pandemia afeta nosso corpo e mente
com a falta dela?
Louv - A criança sedentária e confinada dentro de casa era figura comum
mesmo antes da pandemia do coronavírus - não apenas em bairros urbanos e
suburbanos, mas também em áreas rurais, apesar de a natureza estar logo ali, da
porta para fora, nesses locais. E isso gera muitos problemas: como os jovens
passam cada vez menos tempo de suas vidas em ambientes naturais, os sentidos se
estreitam, fisiológica e psicologicamente. Somado a isso, a infância
superorganizada e a desvalorização das brincadeiras espontâneas, sem regras,
têm enormes implicações para a capacidade de autorregulação das crianças. Isso
reduz a riqueza da experiência humana e contribui para uma condição que chamo
de "transtorno de déficit da natureza".
Criei esse termo como
bordão para descrever o que muitos de nós acreditamos ser os custos humanos de
viver alienado da natureza. Entre esses custos estão a redução do uso dos
sentidos, dificuldades de atenção, taxas mais altas de doenças físicas e emocionais,
uma taxa crescente de miopia, obesidade infantil e adulta, deficiência de
vitamina D e outras doenças.
A ciência correlacionou
experiências no mundo natural com melhorias em cada uma delas. Obviamente, o
transtorno de déficit de natureza não é um diagnóstico médico, embora se possa
pensar nele como uma condição da sociedade. Você sabe do que se trata assim que
alguém menciona o assunto, e isso pode explicar a facilidade com a qual o termo
foi traduzido e incorporado a tantos idiomas ao redor do mundo.
Além disso, agora mais do que nunca, precisamos praticar o uso
da esperança imaginativa para pensar seriamente sobre como criar uma
civilização mais saudável, rica em natureza e mais justa nos anos que virão.
Enfim, muitas dessas dicas são para que as pessoas, injustamente, tenham um
pouco de acesso à natureza, o que acredito deveria ser considerado um direito
humano.
BBC News - Muitos brasileiros decidiram deixar as grandes
cidades para viver mais perto da natureza após o início da pandemia, em um
"êxodo urbano" bastante inédito para nossa época. Você acha que isso
pode continuar se ou quando a pandemia acabar? Você observa isso em outros
países?
Louv - Muitos de nós agora temos a oportunidade de construir sobre o
anseio, intensificado durante a pandemia, de uma maior conexão com nossos entes
queridos e com o resto da natureza. Embora seja possível, até provável, que
nossa espécie retorne à sua antiga abordagem da natureza, que é vê-la como um
inimigo, também é possível que algo em nós - um anseio - tenha reacendido.
E essa redescoberta pode
ser vista no crescente interesse em design urbano biofílico e arquitetura
biofílica, que incorporam elementos naturais não apenas nos locais de trabalho,
onde se observa uma melhora a produtividade dos funcionários e redução do tempo
afastados por doenças - mas também em escolas e residências e, potencialmente,
cidades inteiras.
Muitas das pessoas e
empresas que repentinamente se acostumaram ao home office e ao trabalho remoto
podem continuar com essa prática, reduzindo o consumo de combustível, ajudando
as pessoas a se concentrarem novamente nos lugares onde vivem e na necessidade
da natureza próxima.
Como aprendemos durante
a pandemia, a natureza próxima é, pelo menos para muitos de nós, essencial para
a saúde mental. Nos últimos anos, muitas pessoas - e também legisladores -
ficaram presas em um transe distópico. Quando questionados sobre como será o
futuro, as imagens que eles descrevem são frequentemente aquelas que se parecem
muito com os filmes Blade
Runner ou Mad
Max, onde a natureza e o amor foram arrancados da paisagem.
A menos que a gente
consiga reacender a esperança - e eu falo da esperança imaginativa, não
esperança cega, então sim, Blade
Runner será nosso futuro e o futuro de nossos netos. Mas a pandemia
nos incitou a imaginar novas imagens de um futuro onde nossa conexão com a
natureza e uns com os outros, como parte da natureza, começa a ressurgir.
BBC News Brasil - Ao mesmo tempo desse anseio de aproximação com
a natureza que você comenta, observamos no Brasil muitos retrocessos em
políticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente. Na sua avaliação, por
que a proteção à natureza ainda não é uma prioridade em muitos países?
Louv - Muitas pessoas não avaliam o tempo passado na natureza e com
brincadeiras espontâneas como essenciais para o desenvolvimento infantil,
psicológico ou físico. Isso se dá, em partes, porque a tecnologia agora domina
quase todos os aspectos de nossas vidas.
No entanto, muitos de
nós sentimos que algo grande e promissor está se formando lá fora, um movimento
que inclui, mas vai além do ambientalismo tradicional e da sustentabilidade -
uma visão alternativa do futuro. E talvez a gente esteja percebendo isso bem a
tempo.
Não podemos minimizar o
sucesso da conservação tradicional, mas pesquisas mostram que a preocupação
ambiental, em muitas regiões, atingiu o ponto mais baixo desde antes do Dia da
Terra de 1970. É como se quanto mais falamos sobre mudanças climáticas, menos
as pessoas acreditam nisso. Por quê? Recessão econômica. Uma campanha de
desinformação bem financiada.
Existem muitas razões,
mas estou convencido de que uma das principais causas é o fracasso das
autoridades e da mídia em descrever um futuro para o qual as pessoas desejarão
seguir porque o que nos espera não é bonito. Para muitas pessoas, talvez a
maioria, pensar no futuro evoca imagens de uma distopia pós-apocalíptica
desconectada da natureza. Parecemos atraídos por essa chama e é uma fixação
perigosa.
As barreiras entre as
pessoas e a natureza continuam desafiadoras.
Mas estamos vendo
algumas mudanças. Nos EUA, vemos progresso entre as legislaturas estaduais,
escolas e empresas, organizações civis e agências governamentais. Os chamados
"clubes de natureza familiar" (nos quais várias famílias comparecem
para caminhadas conjuntas, por exemplo) estão se proliferando. As campanhas
regionais estão trazendo pessoas de todas as divisões políticas, religiosas e
econômicas, para conectar as crianças à natureza.
Por mais de uma década,
venho pedindo que o acesso à natureza seja considerado um direito humano. Uma
resolução da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla
em inglês) de 2012, indica que isso é cada vez mais visto como um problema
internacional. (...) Precisamos de liderança em todos os níveis e em todos os
países.
BBC News Brasil - Uma liderança indígena importante no Brasil, o
escritor, filósofo e ambientalista Ailton Krenak, costuma dizer que "a
resposta está natureza". Você concorda?
Louv - A conexão humana com a natureza não é uma panaceia milagrosa
para tudo o que nos aflige, mas acredito que, para muitos de nós, é fundamental
para manter nossa humanidade. Precisamos da experiência da natureza como um
antídoto para algumas das desvantagens do uso de tanta tecnologia, e precisamos
nos conectar com a natureza para reviver o uso pleno não apenas dos nossos
cinco sentidos, mas pelo menos dez deles, para ser conservador, ou até 30, de
acordo com alguns cientistas.
Em última análise,
trata-se de nossa capacidade de estar "plenamente vivos". Enquanto
nos concentramos por horas em nossas telas, nós e nossos filhos gastamos muito
de nosso tempo e grande parte de nossa energia tentando bloquear a maioria
desses sentidos para que possamos nos concentrar nas telas a alguns centímetros
de nossos olhos. Para mim, essa é a própria definição de estar "menos
vivo".
O espírito humano é inseparável do mundo natural. Como escreveu
o ecoteólogo Thomas Berry: "um habitat degradado produzirá humanos
degradados". O conceito de "inconsciente ecológico" surgiu na
encruzilhada entre ciência, filosofia e teologia. Essa é a ideia de que toda a
natureza está conectada de maneiras que não entendemos totalmente e,
independentemente de nossa origem cultural ou étnica, compartilhamos essas
conexões - mas fazemos isso de maneiras diferentes.
Depois que A Última Criança na Natureza foi
publicado, fiquei surpreso que tantas figuras religiosas, à direita e à
esquerda, apoiaram o livro. Cheguei à conclusão de que eles entendem
intuitivamente que toda vida espiritual começa com um sentimento de admiração.
A natureza é nossa janela compartilhada mais imediata para a maravilha. Esta
não é apenas uma visão do passado, mas de uma nova era em potencial. Eu evito a
frase "retorno à natureza". Prefiro dizer: "avante à
natureza".
BBC News Brasil - Como o impacto do isolamento social, do
distanciamento e do confinamento dentro de casa pode afetar as pessoas no longo
prazo?
Louv - A cobertura de parte da mídia descreve o trauma emocional do
isolamento social prolongado. Esse trauma pode realmente aumentar após os
lockdowns e os confinamentos.
Três meses depois do
tiroteio em massa contra as crianças da escola Sandy Hook em Connecticut (nos
EUA em 2012), fui convidado pela prefeitura da cidade de Newton para uma
palestra. Segundo as autoridades, o motivo foi o entendimento de que a conexão
com a natureza pode ser terapêutica e que, para os sobreviventes, o trauma
pós-evento se intensifica cerca de três meses após o ocorrido.
Hoje, a conexão com a
natureza pode ser uma forma de curar o trauma psicológico da pandemia em
algumas regiões. Parte da cura será imaginar um futuro para o qual queremos ir,
no qual múltiplas soluções sejam aplicadas ao isolamento humano, à emergência
climática e ao colapso da biodiversidade. E essas soluções devem descrever um
futuro não apenas para a saúde e sobrevivência humanas, mas para a saúde das
crianças de todas as espécies.
Veja: Como a gente se vê nas redes https://bit.ly/3mLkOvf
Nenhum comentário:
Postar um comentário