03 março 2023

Força da leitura

Ler verbo Ser

Alexandria se caracterizava como lugar de aceitação, tanto religiosa, quanto cultural, e também como centro intelectual de sua época para onde convergiam pensadores e pesquisadores de inúmeras culturas e, por isso, era constantemente visitada por pessoas do mundo inteiro.
Kelsen Barros/Vermelho www.vermelho.org.br

 

Uma civilização se apresenta pelo seu acervo cultural. Entre os povos ágrafos as primeiras manifestações de contato apresentavam danças, músicas, pinturas, oferendas gastronômicas e variados artesanatos. As relações consolidadas estabeleciam negócios, buscavam entendimentos ideológicos mais profundos para fortalecer laços. As dissidências, antes pactuadas em favor da boa amizade,  recrudesciam quando a ambição de uma das partes queria subjugar a outra. Daí a principal manifestação passava a ser a ostentação das armas e o extermínio dos inimigos.

Entre os povos que dominavam a escrita, o processo era bem parecido; porém mais demorado em razão do amplo e horizontal saber acumulado e da vertical história preservada pelos registros escritos. Além da demora, a principal diferença era que depois da conquista, a vida da maioria dos inimigos era preservada; mas seus papiros, seus escritos viravam cinzas. Assim o fez, segundo a versão mais divulgada, o califa muçulmano de Meca, Omar Ibne Alcatabe, ao mandar destruir a Biblioteca de Alexandria, fato que marcou o fim da cultura alexandrina.

Alexandria se caracterizava como lugar de aceitação, tanto religiosa, quanto cultural, e também como centro intelectual de sua época para onde convergiam pensadores e pesquisadores de inúmeras culturas e, por isso, era constantemente visitada por pessoas do mundo inteiro. Uma civilização ecumênica e pacífica que sofreu várias tentativas de submissão até ser dizimada por Omar, que mandou queimar sua biblioteca, dizem, com o argumento de que a humanidade não carecia de outros saberes senão o contido no Corão.

Fartos são os lamentáveis fatos de queima de livros ao longo da história. Todos eles fruto de imposição autoritária, anti-humana, etnocida e genocida, pois quem queima livros também queima literalmente pessoas, não necessariamente nessa ordem. Assim fez, no século 16, a inquisição que queimou livros e pessoas, assim também fizeram,  no século 18,  os ingleses ao queimar a Biblioteca do Congresso dos EUA, e no século 20 os nazistas ao queimarem livros na Alemanha dos anos de 1930.

Os exemplos, reitero, são fartos em todos os continentes. Sempre marcados pela estupidez do autoritarismo. É o caso mais recente do Brasil, cujo mandatário eleito em 2018, promoveu perseguição e minou a Cultura em geral e especificamente a política do livro e leitura que se aprimorava gradativamente, como consta no Plano Nacional de Cultura (PNC), constituído em 2010, ajustado em 2014, e que deveria ter sido refeito em 2020.

O PNC em seu eixo 2, intitulado Cultura, Cidade e Cidadania, definiu como uma de suas prioridades: “Garantir para toda a população urbana e rural, em sua diversidade, a criação, manutenção e a sustentabilidade de bibliotecas públicas, comunitárias, itinerantes e escolares da rede pública e outros espaços de leitura, com quadro de profissionais qualificados que permitam o acesso à leitura literária, científica e informativa, em seus diversos suportes (livros, jornais, revistas, internet, livro acessível, em Braille, audiolivros, equipamentos visuo-espaciais etc.), informatizadas, em rede, integradas e dinamizadas por mediadores de leitura.” Incluem-se entre as públicas as bibliotecas particulares de acesso público.

Nessa diretriz está delineado um sistema de bibliotecas. que deve abarcar não só a criação de bibliotecas públicas e outros espaços de leitura em zonas urbanas e rurais, mas também garantir o emprego de profissionais qualificados bem como a sustentabilidade desses espaços de leitura, num sentido amplo, para contemplar as mais diversas linguagens e públicos. Essa prioridade do PNC atende à reivindicação histórica da cadeia mediadora, embora seja apenas uma diretriz a partir da qual devem-se desenvolver projetos e ações contínuas, que devem ser garantidas na forma da lei para torná-las política pública de estado.

No Ceará, a política do livro é bem avançada se comparada à maioria dos entes federados, mas ainda deixa muito a desejar, há muito o que cumprir para fortalecer o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas, que, reconheçamos, tem à frente excelente e abnegada gestora, assim como a gestão da Biblioteca Estadual do Ceará – BECE, cujas ações de promoção e difusão da leitura e do livro têm sido bem pensadas e realizadas e precisam ser intensificadas, manutenidas e asseguradas na forma da lei.

Em recente participação em um programa online da BECE ― “Histórias de quem gosta de ler” ― comparei a biblioteca pública central do Ceará a uma nave-mãe que se articula com as demais bibliotecas em um intenso intercâmbio cultural a promover e ampliar continuamente o acervo de nossa civilização, fortalecendo a cidadania ao semear livros, “livros à mancheia”, como cantou o poeta Castro Alves. Uma utopia! Então, como toda ela, deve ser perseguida e ao longo do trajeto deve-se construir realidades.

A referida diretriz prioritária do Eixo 2 – CULTURA, CIDADE E CIDADANIA do PNC em 2010, é uma dessas realidades construídas no caminho. Caso houvesse sido implantada junto a outras políticas públicas como o “Minha Casa, Minha Vida”, dispondo, por exemplo, em cada conjunto habitacional uma biblioteca pública, um espaço de convivência e difusão literária com o devido incentivo e ampla propaganda institucional, talvez houvesse uma geração mais criteriosa no consumo. Afinal, nem só de “picanhazinha e cervejinha” vive o ser.

Se se entendesse que o ler, e, sobretudo, ler arte literária, sensibiliza a pessoa leitora a perceber sua localização no mundo e sua relação com as pessoas, consigo mesma e com todas e todos para além das pessoas com quem interage. Se se entendesse que essa sensibilização vai fazer com que a pessoa se perceba um ser único, mas de possibilidades múltiplas e ― importante! ―  protagonista da própria história, talvez a sociedade, com destaque a juventude, evitasse mais o descartável e o fútil.

Se se tomasse consciência de que o verbo ler promove o verbo ser, com certeza a sociedade valorizaria mais a arte e bens culturais afins, por se reconhecerem neles, por se sentirem mais criativos e protagonistas da própria história, e assim poderiam resistir mais ao enganador discurso meritocrático, acrítico, autoritário, religiosamente fanático, falso moralista, e combateria com antecipação a “queima de bibliotecas” promovida pela laia fascista, que ocupou o poder de 2019 a 2022. É isso, evoé!

Quando uma livraria fecha a cultura perde https://bit.ly/3k5Fdy3

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