Os filhos do delírio
nazista
Como crianças
nascidas de um projeto genético de Hitler enfrentam a descoberta sombria de
suas raízes
Valentine Faure/revista
piauí
Na pequena escola primária de Jouy-sous-les-Côtes, no nordeste da França, Gisèle Marc sabia dos boatos sobre ela: que tinha sido adotada e sua verdadeira mãe talvez fosse uma prostituta. Era o fim dos anos 1940, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, uma época em que histórias como essa eram sussurradas de pais para filhos. As mulheres que segundo se dizia haviam dormido com soldados alemães durante a Ocupação da França – chamadas de “colaboradoras horizontais” – tinham a cabeça raspada e eram humilhadas publicamente por turbas furiosas. No jardim da escolinha, as crianças zombavam daqueles supostos filhos de “pais desconhecidos”.
A ideia de que teria sido abandonada por alguém de má reputação deixava Gisèle Marc terrivelmente envergonhada. Aos 10 anos, ela tomou coragem e confrontou sua mãe, que contou a verdade: “Nós te adotamos quando você tinha 4 anos; você falava alemão, mas agora você é francesa.” As duas pouco falaram sobre esse assunto depois.
Gisèle encontrou os papéis de sua adoção escondidos em uma gaveta no quarto dos pais e, de tempos em tempos, dava uma espiada no que estava escrito ali. Quando fez 18 anos, queimou todos eles no fogão. “Eu disse para mim mesma: se quiser continuar vivendo, preciso me livrar disso tudo”, contou. Hoje ela tem 79 anos e não se arrepende de ter queimado os documentos.
Por um tempo, Gisèle conseguiu deixar de lado a questão de suas origens. Aos 17 anos, aceitou um emprego num abrigo que também funcionava como hospital infantil e percebeu que tinha encontrado sua vocação. Passou toda a carreira trabalhando principalmente em creches. Depois, abriu a sua própria creche. Em 1972, casou-se com Justin Niango, um estudante de química da Costa do Marfim. Eles compraram um hotel nos fundos da Praça Stanislas, na cidade de Nancy, também no nordeste da França, e o transformaram numa casa.
Visitei Gisèle em junho passado. Foi fácil imaginar a vida familiar vibrante que havia em sua casa no passado, com os seus quatro filhos – Virginie, Gabriel, Grégoire e Matthieu – subindo e descendo as escadas, correndo para lá e para cá, tocando instrumentos nos quartos. Na escola, eles costumavam ser as únicas crianças negras da turma. Gisèle tem muitas histórias sobre os comentários cruéis que ouviu ao longo dos anos, nas quais sempre acabava confrontando o culpado. Ela demorou a contar para os filhos que foi adotada. Tinha medo que a revelação pudesse enfraquecer o vínculo deles com os avós. Mas, às vezes, o segredo “doía um pouco”. Gisèle sabia que uma hora teria que contar.
Quando sua mãe morreu, em 2004, ela reuniu os filhos e revelou tudo. Eles ficaram chocados, e fizeram perguntas que ela não sabia responder.
Depois de anos de negação, Gisèle desejava encontrar essas respostas. Ela lembrava o nome e o local de nascimento que apareciam nos documentos de sua adoção: Gisela Magula, nascida em Bar-le-Duc, no nordeste da França. Começou sua pesquisa com isso. Escreveu para os Arquivos Arolsen, o centro internacional sobre perseguição nazista, na Alemanha, perguntando se havia menção a ela no vasto conjunto de documentos da organização.
Em março de 2005, veio a resposta: ela não tinha nascido em Bar-le-Duc, mas perto de Liège, na Bélgica, em uma maternidade nazista instalada no Castelo de Wégimont. Esse abrigo e outros do gênero tinham sido criados pela SS, o braço paramilitar do Partido Nazista, sob o guarda-chuva da associação Lebensborn, com a qual o regime tentou incentivar o nascimento de bebês de “sangue bom” para apressar a meta final da pureza racial ariana.
Tudo que Gisèle acreditava ser verdade sobre si mesma desandou. A sua família, que ela passou parte da vida defendendo contra o racismo, descendia de um dos projetos raciais mais sombrios da história.
O nazismo é uma ideologia de destruição, cujo objetivo final é a eliminação das “raças inferiores”. Mas outro aspecto igualmente intenso desse credo consistiu em uma forma imaginária de restauração: assim que chegaram ao poder, os nazistas começaram a produzir uma nova geração de alemães de sangue puro. A Lebensborn era uma parte fundamental do plano. Criada em 1935 sob os auspícios da SS, a associação incentivava a procriação entre membros da raça ariana, oferecendo conforto, apoio financeiro e, quando necessário, discrição para mães que davam à luz. O quartel-general da entidade ficava em Munique, na antiga casa do escritor Thomas Mann, que deixou a Alemanha em 1933. Em 1936, a Lebensborn abriu sua primeira maternidade, na cidade vizinha de Steinhöring.
A SS era supervisionada por Heinrich Himmler, comandante militar dessa organização e um dos líderes centrais do Partido Nazista, que esperava que seus soldados de elite servissem como vanguarda racial de uma germanidade revitalizada. “No que diz respeito ao valor de nosso sangue e à quantidade de nossa população, estamos morrendo”, disse ele, num discurso à SS, em 1931. “Estamos sendo convocados a criar as bases para que a próxima geração possa fazer história.” Agrônomo de formação, Himmler acompanhava a iniciativa com um nível de atenção que beirava o voyeurismo. De início, todos os pedidos de casamento de líderes da SS tinham de ser levados a ele. Esperava-se que todos reproduzissem. Quatro filhos era considerada “a quantidade mínima […] para um casamento bom e sólido”. Himmler não tinha problemas com a geração de filhos fora do casamento e criticava a hostilidade da Igreja Católica aos nascimentos ilegítimos. Criar “filhos ilegítimos ou órfãos de bom sangue” deveria ser um “costume aceito”, escreveu ele. Em 1939, emitiu uma ordem que incitava os membros das SS a procriar do modo que lhes fosse possível, inclusive com mulheres com as quais não fossem casados.
De acordo com Himmler, os abrigos da Lebensborn deveriam servir “em primeiro lugar às noivas e esposas de nossos jovens homens das SS e, em segundo lugar, às mães ilegítimas de bom sangue”. Na prática, as “mães ilegítimas” eram a maioria. Longe dos olhos do mundo, mulheres solteiras podiam dar à luz em maternidades da Lebensborn, e caso quisessem abandonar seus bebês, eles receberiam os melhores cuidados antes de serem entregues a uma família adotiva – desde que os pais biológicos satisfizessem os critérios raciais (exigiam-se fotos do pai e da mãe). As primeiras candidatas precisavam ter uma altura mínima e provar que tinham boa saúde e adequação racial, retrocedendo às duas últimas gerações. O historiador alemão Georg Lilienthal descobriu que, no começo, mais da metade das mulheres que se candidataram foram rejeitadas.
Os funcionários da Lebensborn anotavam sobre o comportamento das mães durante o parto e faziam questão que elas amamentassem seus filhos, se fosse possível. “A mulher tem seu próprio campo de batalha”, disse Adolf Hitler, em 1935. “A cada filho que traz ao mundo, ela luta uma batalha pela nação.”
As mulheres também recebiam “educação ideológica” diariamente, de acordo com a historiadora britânica Lisa Pine. Funcionários da Lebensborn davam a alguns bebês nomes não cristãos, durante uma cerimônia inspirada em antigos costumes nórdicos. Sob uma bandeira nazista e um retrato do Führer, em frente de um grupo de adeptos, o mestre de cerimônias empunhava uma adaga da SS sobre o recém-nascido e recitava: “Nós te aceitamos em nossa comunidade como um membro de nosso corpo. Tu deves crescer sob nossa proteção e honrar teu nome, dar orgulho a teus irmãos e glória inextinguível à tua raça.” Por meio dessa cerimônia, a criança se tornava um membro do clã da SS, ligada para sempre ao Reich.
Em 11 de outubro de 1943, quando Gisèle nasceu, havia dezesseis unidades da Lebensborn espalhadas pelos territórios ocupados pelos nazistas na Europa. Tivesse nascido quatro dias antes, ela teria Himmler como padrinho. O Reichsführer da SS fazia questão de apadrinhar pessoalmente as crianças que compartilhavam seu aniversário, em 7 de outubro.
Conversei com Gisèle Marc na sala de estar de sua casa, com dezenas de documentos e fotos espalhadas diante de nós. Baixinha e de cabelos brancos recortados por uma mecha castanha, ela é uma mulher ao mesmo tempo reservada e direta, com uma pitada de senso de humor. “Himmler foi bem incompetente comigo”, brincou, numa referência a seu casamento com um homem negro da Costa do Marfim e à família miscigenada que tiveram.
Gisèle rejeita a ideia de que exista uma conexão entre sua carreira profissional, como dona de creche, e seus anos iniciais de vida, passados em um tipo tão diferente de maternidade. Afinal, ela escolheu o próprio caminho muito antes de saber de onde tinha vindo. Mas não minimiza o fato de sua história de vida estar visceralmente ligada à história do nazismo. Gisèle muitas vezes se perguntou como suas origens podem ter moldado o que chama de “memória interna”. Ela sempre teve um medo terrível de caminhões, trens militares e coturnos. Também não tolera ouvir bebês chorando – era comum que deixasse sua sala na creche para consolar as crianças. Além disso, receia ter passado algo ruim para seus filhos por meio dos genes.
Um encontro casual ajudou Gisèle Marc a retraçar suas origens, poucos meses depois da morte de sua mãe, logo que começou a sua pesquisa. Um primo dela foi a um velório e ouviu um sujeito alto e louro discursar em homenagem ao falecido, um professor que o havia incentivado. O tal sujeito, Walter Beausert, contou que chegou à França ainda criança, em um trem vindo da Alemanha. O primo, que tinha idade suficiente para se lembrar da adoção de Gisèle e sabia que ela viera da Alemanha, se perguntou se a parente não teria chegado no mesmo trem. Ele resolveu conversar com Beausert depois do funeral.
Beausert era uma das crianças nascidas na Lebensborn. Em 1994, ele foi a primeira pessoa na França a dar um depoimento sobre a associação nazista, em uma reportagem de tevê que registrou sua busca pela Europa do lugar onde havia nascido. O primo colocou os dois em contato, e Beausert ajudou Gisèle a resgatar o próprio passado.
Ela montou uma história que ainda tem muitos furos, mas agora sabe ao menos a identidade de sua mãe biológica. Marguerite Magula era uma húngara que imigrou para Bruxelas com os pais e a irmã, em 1926. Mais tarde, se mudou para a Alemanha com o objetivo de trabalhar, com a mãe e a irmã, numa fábrica em Saarbrücken. Em 1943, ela engravidou e fugiu de volta para Bruxelas. A jornalista alemã Dorothee Schmitz-Köster, autora de Lebenslang Lebensborn. Die Wunschkinder der SS und was aus Ihnen Wurde (Lebensborn para sempre: os desejados filhos das SS e o que aconteceu com eles), me disse que, àquela altura, o programa Lebensborn tinha afrouxado um pouco seus critérios: uma crença fervorosa no nacional-socialismo poderia compensar a baixa estatura de mulheres, como era o caso de Marguerite, embora um certificado de ariana, um atestado de saúde e outro de saúde hereditária ainda fossem obrigatórios para ambos os pais.
O sentimento de Gisèle por Marguerite mudou ao longo do tempo. Quando descobriu nos arquivos Steinhöring que algumas mães foram atrás dos filhos depois da guerra, tentando reavê-los, Gisèle passou a odiá-la. “Ela nunca veio atrás de mim”, disse. “Eu não tenho piedade, nada, muito pelo contrário. Isso não é uma mãe.” Um documento do pós-guerra negando o pedido de cidadania húngara para Marguerite (ela e a irmã haviam se tornado apátridas) menciona sua “má vida”. Caso tivessem se encontrado, talvez a mãe biológica pudesse dar mais explicações. Mas Marguerite morreu em 2001, poucos anos antes de a filha começar suas buscas.
Gisèle teve menos curiosidade pela identidade do pai, que imagina como o estereótipo do oficial da SS – sem dúvida, “um cretino”.
Em 2009, ela conheceu um meio-irmão, Claude, nascido depois da guerra e criado por Marguerite. Os dois ainda se visitam de tempos em tempos. Ele contou a Gisèle que foi maltratado pela mãe e certa vez comentou que a irmã teve sorte em crescer longe de Marguerite.
Assim como Gisèle, Walter Beausert deve ao acaso a descoberta de suas origens. Em 1966, quando nasceu a primeira filha dele, Valérie, a parteira olhou fixamente para Beausert, na época com 22 anos. Debaixo dos cabelos louros e lisos, tombados sobre a testa, ela percebeu os olhos azul-claros do rapaz – um deles era um olho de vidro que jamais fechava – e se lembrou das dezessete crianças pequenas que, em 1946, tinham chegado de trem em Commercy e foram levadas ao hospital da cidade. “Eu acho que você é alemão”, disse a parteira. Isso confirmou uma antiga desconfiança dele.
Única criança daquele comboio que jamais foi adotada, Beausert cresceu em abrigos infantis e se tornou um adolescente circunspecto, difícil. Algo pouco comum entre os nascidos nas Lebensborn, ele tinha sido circuncidado, fato que nunca soube explicar. “Meu pai era obcecado com a busca pela família. Ele procurou pela mãe dele a vida toda”, me contou Valérie, sua filha de 56 anos, quando nos encontramos em uma cervejaria art nouveau, em Nancy. Em 1994, quando participou daquela reportagem de tevê sobre sua busca, Beausert viajou até o Castelo de Wégimont, o lugar que foi um dos abrigos da Lebensborn. Ali, ouviu os habitantes falarem sobre uma mulher chamada Rita, uma cozinheira da associação, que deu à luz um menino de nome Walter. Segundo a história contada, no momento em que os soldados tentaram tirar o bebê dos braços da mãe, ele caiu e feriu o olho esquerdo. Aí estava a pista que Walter esperava encontrar – e ele passou a acreditar que Rita era sua mãe.
“O problema é que isso não é verdade”, disse Valérie. “Nós encontramos essa Rita. Sabemos que o bebê Walter da história não é meu pai. Mas ele não queria ouvir nada a respeito disso. Dizia que Rita teve um segundo bebê, também chamado Walter. Eu falava que isso não fazia sentido. Mas a negação dele era patológica.” Na infância, Valérie, que tem olhos azul-claros e cabelos louros iguais aos do pai, era chamada de boche imunda.[1] Seu pai, na infância, era chamado de “rato branco”. Em 1986, Valérie se apaixonou por um refugiado do Vietnã. “O pai do meu filho foi a primeira pessoa não branca na nossa vila”, disse ela. “Para mim isso não tinha a menor importância. Eu também me sentia uma forasteira.”
O filho do casal, Lâm, nasceu com um olho castanho e o outro azul. Um dos olhos – o azul – tinha uma deficiência. O médico identificou que se tratava de uma anormalidade congênita, que poderia causar cegueira. Valérie tinha a mesma anormalidade e passou-a para o filho. Assim, ela se deu conta de que o olho de vidro do pai não era resultado de um ferimento, no fim das contas. “Quando meu filho precisou ser operado, eu disse para meu pai: ‘Está vendo? É congênito.’” Ele ficou indignado: “Que bobagem! Você não pode dizer isso!”
Walter Beausert queria acreditar que seu olho de vidro era resultado da luta de sua mãe biológica para protegê-lo dos soldados alemães, e tinha pavor de doenças e da possibilidade de ser “um vetor de defeitos”, disse Valérie. Por isso, fazia enorme esforço para dar provas de sua força superior e seu estoicismo. Um dia, um amigo que cortava um tronco com uma motosserra atravessou a madeira com o instrumento e cortou as duas panturrilhas de Beausert até perto do osso. Ele fez dois torniquetes e voltou para casa dirigindo. Valérie se lembra do pai subindo as escadas com as duas pernas ensanguentadas, como se nada tivesse acontecido, e pedindo com toda a calma que ela chamasse uma ambulância.
Beausert achava insuportável a fragilidade dos outros. Foi assim com sua mulher. Quando a mãe de Valérie recebeu um diagnóstico de câncer, a filha tinha que empurrar o pai para fora do quarto da doente. “Ele ficava dizendo: ‘Você tem que lutar, você tem que comer, é assim que você melhora.’ Era uma forma de assédio psicológico.”
Para Valérie, essa característica do pai era um eco perturbador da ênfase dada pelos nazistas à superioridade física. “Um jovem alemão precisa ser rápido como um galgo, resistente como o couro e duro como aço Krupp”, proclamou Hitler, em 1935. As crianças nascidas nas Lebensborn com síndrome de Down, lábio leporino ou pés tortos eram expulsas dos abrigos ou assassinadas.
Às vezes, Valérie se preocupa com aquilo que ela mesma e seu filho possam ter herdado de Walter Beausert. “Quando vejo alguns traços de personalidade do meu filho – meio rude, meio autoritário –, que podem ter sido herdados do meu pai, mas também de mim, eu sempre tenho um momento de ansiedade: será que nós passamos para frente algo das Lebensborn?”.
Em agosto de 1945, a revista Life publicou uma reportagem, ilustrada com fotos de Robert Capa (1913-54), sobre os “superbebês” de um abrigo Lebensborn, em Hohenhorst, na Alemanha. “Os filhos bastardos dos homens de Hitler em Hohenhorst têm olhos azuis, cabelos louros e são gordos como porcos”, dizia uma das legendas. Outra afirmava: “Excesso de comida e fartura de Sol deixaram esse bebê nazista, vestido com roupinha e sapatinhos de crochê, tão gordo e saudável que ele ocupa totalmente seu enorme carrinho.” Mais uma: “Engordados como porcos, sob os cuidados de enfermeiras nazistas, esses bebês representam hoje um problema que ainda terá de ser resolvido pelos Aliados.” O tom dá uma ideia do nível de ressentimento que os norte-americanos e europeus nutriam em 1945 em relação a todos que haviam sido poupados dos horrores da guerra – até mesmo as crianças.
Mas nem todos os bebês das Lebensborn tinham olhos azuis, cabelos louros. Para falar a verdade, nem eram todos “gordos como porcos”. Provavelmente devido à falta de vínculo com uma única cuidadora, algumas crianças sofriam de atraso de desenvolvimento. Exames médicos feitos depois da guerra indicam que Beausert tinha peso abaixo do normal. Um documento de assistentes sociais franceses diz que Gisèle costumava ter acessos de raiva quando chegou à França.
Quando a Bélgica foi libertada pelos Aliados, ela e outras crianças das Lebensborn começaram uma jornada pela Europa devastada, levadas dentro de berços de vime na traseira de caminhões militares. Em Lebensborn: La Fabrique des Enfants Parfaits – Enquête Sur Ces Français qui Sont Nés dans une Maternité SS (Lebensborn: a fábrica de crianças perfeitas – investigação sobre esses franceses que nasceram em uma maternidade SS), o jornalista francês Boris Thiolay relata que os soldados alemães em retirada deixaram o abrigo da Lebensborn perto de Liège com cerca de vinte bebês, em 1º de setembro de 1944. Depois de várias paradas na Alemanha e na Polônia, as crianças chegaram à primeira Lebensborn, em Steinhöring, cidade vizinha de Munique. Walter Beausert também foi parar lá. No mesmo local, oficiais da SS ficaram amontoados com crianças e grávidas, vindas de outras instituições que haviam sido fechadas. Caixas de documentos abarrotavam os corredores da ala da maternidade, onde mulheres seguiam dando à luz.
Quando chegaram as notícias sobre a morte de Hitler, os oficiais queimaram o máximo possível de documentos. Thiolay descreve os objetivos desse expurgo: “As certidões de nascimento, a identidade das crianças, dos pais, o prontuário da organização, os nomes das pessoas encarregadas: tudo devia sumir. As evidências da própria existência das Lebensborn precisavam ser apagadas.” Mas a obsessão dos nazistas com documentos inviabilizou a tarefa de eliminar todos os registros – havia papéis demais.
Poucos dias depois da morte de Hitler, ocorrida em 30 de abril de 1945, um pequeno destacamento de soldados dos Estados Unidos chegou a Steinhöring, e as crianças mudaram de mãos: agora, elas eram responsabilidade dos norte-americanos.
Mais tarde, no mesmo ano, Gisèle e Beausert foram transferidos para Kloster Indersdorf, a cerca de 15 km de Dachau, um monastério do século XII que o Exército norte-americano requisitara para a Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas (Unrra, na sigla em inglês). O local passou a abrigar um centro de recepção para crianças deslocadas. Ali, os filhos das Lebensborn viviam junto com outros sobreviventes: crianças judias libertadas dos campos de concentração e adolescentes cristãos da Europa Oriental e Central usados em trabalhos forçados durante a guerra.
Os mais velhos eram incentivados a ajudar os mais novos. Há uma fotografia que mostra três menininhas loiras penteando bebês delicadamente e lhes dando comida com colherinhas, como se estivessem brincando de boneca. Outra foto exibe um grupo de bebês em um acolchoado xadrez sob a supervisão de uma assistente social, a norte-americana Lillian Robbins, e de uma irmã de caridade. No canto da imagem, sentado no chão longe das outras crianças, está o pequeno Walter, com um olho fechado, sorrindo para o fotógrafo.
Os funcionários da Unrra tentaram encontrar parentes das crianças sobreviventes, embora elas não tivessem registro de identidade. Em alguns casos, estabeleceu-se uma data aproximada de nascimento. Foi o que, talvez, tenha ocorrido com Walter Beausert, cuja data oficial é um dia suspeito, ainda que evidentemente possível: 1º de janeiro de 1944. Seu local de nascimento é desconhecido, mas, como acreditavam que ele vivera antes num abrigo Lebensborn na França, os funcionários da Unrra decidiram mandá-lo para lá.
No caso da pequena Gisela, os arquivos mostravam que ela havia nascido em “Wégimont” (o registro omite o nome completo do castelo). Os funcionários pensaram que se tratava de uma cidadezinha francesa. Assim, ela e Walter foram juntos em um comboio enviado para a região francesa de Mosa, cuja população jamais havia se recuperado da Primeira Guerra Mundial.[2] Gisela então se tornou Gisèle, e assim começou sua vida como uma criança francesa.
Será que esses bebês, cuja existência se deve à política de natalidade dos nazistas e que comiam frutas frescas e mingau, enquanto outras crianças eram assassinadas com gás ou morriam de fome, podem ser considerados “sobreviventes”?
Em 10 de outubro de 1947, quatro líderes da Lebensborn compareceram perante um tribunal especial militar norte-americano como parte dos Processos Subsequentes de Nuremberg, nos quais foram julgados oficiais nazistas de escalão inferior. Eram três as acusações contra eles: crime contra a humanidade, crimes de guerra e participação em organização criminosa. Três dos quatro líderes da organização foram considerados culpados da terceira acusação. O tribunal, porém, estabeleceu que a Lebensborn foi apenas uma “instituição de cuidados” e que, por isso, as crianças não deviam ser consideradas vítimas.
Até a década de 1970, os abrigos da Lebensborn foram tratados como um boato, ou descritos como um local de procriação, onde homens da SS acasalavam com mulheres selecionadas por critérios raciais. Em 1975, na França, saiu o primeiro livro sobre a Lebensborn. A obra contribuiu para perpetuar esse equívoco, pois sugeria que as “enfermeiras”, na verdade, eram escolhidas para serem reprodutoras. O historiador Georg Lilienthal escreveu o primeiro trabalho acadêmico sobre o programa em 1986.
Nos nove anos de duração da política da Lebensborn, pelo menos 9,2 mil crianças nasceram nos abrigos – cerca de 1,2 mil na Noruega, onde ficava a maioria das maternidades da SS fora da Alemanha. Depois da guerra, essas crianças, assim como as mulheres suspeitas de terem casos com soldados alemães, foram estigmatizadas. Algumas mulheres chegaram a ser internadas em campos. Como a França teve apenas um abrigo da Lebensborn, que funcionou por menos de um ano, as crianças nascidas ali tinham menos probabilidade de serem reconhecidas como tais.
Em 2011, Gisèle e Beausert foram a Indersdorf para participar da celebração anual dos antigos residentes do centro de recepção da Unrra. Ela descreveu os organizadores como “crianças judaicas”, do mesmo modo como ela ainda se refere a si mesma como uma “criança da Lebensborn”. “Foi extraordinário ser incluída na cerimônia”, me disse. Enquanto estava em Indersdorf, visitou Dachau duas vezes. Sentiu necessidade de se confrontar com as crenças que talvez carregasse, caso tivesse sido criada pela família de um membro da SS. Juntos, Gisèle e Beausert fundaram, em 2016, a Associação pela Memória das Crianças Vítimas da Lebensborn, um esforço para incentivar o reconhecimento público de que elas são vítimas da guerra.
Beausert, de sua parte, tornou-se obcecado com a ideia de ser aceito pela comunidade judaica. Estudou a Torá e se identificava como sionista. “Ele celebrava os feriados judaicos”, lembra Valérie. “Os amigos judeus de meu pai o ajudaram muito. Para ele, dizer ‘Você também é uma vítima, Walter’ era o maior dos presentes.” Beausert morreu em 2021, aos 77 anos, portando uma estrela de Davi no pescoço. Ele morava numa casa de repouso para idosos e não estava bem de saúde. Poucos dias antes de sua morte, admitiu, pela primeira vez na vida, que Rita talvez não fosse sua mãe. Valérie guardou um pente com fios de cabelo de seu pai. Ela espera descobrir um dia os segredos ocultos no DNA de Beausert.
O marido de Gisèle, Justin, morreu há quinze
anos, mas ela ainda passa quase todos os invernos na vila onde ele nasceu, na
Costa do Marfim. Gisèle disse que é “famosa” por lá, em parte porque os
moradores a viram na tevê, numa reportagem sobre a Lebensborn.
Em sua casa em Nancy, na França, ela tem uma foto de sua mãe biológica à
vista, embora não olhe mais para ela. “É minha herança. Não quero esquecer que
nasci dessa mulher”, me disse. Tudo que ela quer agora é que sua história seja
contada. “Sou modesta”, brincou. “Só quero que o mundo inteiro saiba disso.”
Um dos seus filhos, Gabriel, casou com uma alemã, e seus filhos falam
alemão, uma língua que Gisèle esqueceu completamente. “Isso mostra que a
história segue em frente”, afirmou ela. Matthieu, seu outro filho, prepara um
livro sobre a Lebensborn e escreveu com sua mulher, Camille, uma peça sobre a
história das crianças. Recentemente, fui a uma sessão de leitura da peça num
pequeno teatro em Paris. Gisèle estava lá, sentada ao lado da filha Virginie,
assistindo à encenação de sua própria vida.
“Falam que a história é escrita pelos vencedores”, disse um dos atores.
“Mas acima de tudo ela é escrita pelos adultos.” Discretamente, Gisèle enxugou
as lágrimas por trás dos óculos.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_200 com
o título “Os filhos do delírio”.
[1] Boche é uma gíria ofensiva com a
qual os franceses designam os alemães desde o fim do século XIX. A etimologia
do termo é polêmica. Uma das hipóteses é que boche tem origem
dialetal, significando “cabeça dura” ou “repolho”.
[2] Na região de Mosa (Meuse, em francês)
ocorreu um dos principais confrontos da Primeira Guerra Mundial. A Batalha de
Verdun foi também uma das mais longas (de 21 de fevereiro a 18 de dezembro de
1916) e mais sangrentas, com um saldo estimado de cerca de 250 mil mortos e
desaparecidos do lado francês, e 300 mil do lado alemão. A cidade de Verdun e
seus arredores foram devastados pelos bombardeios.
Texto originalmente publicado na revista The Atlantic. ©2023
The Atlantic Monthly Group, Inc. Todos os direitos reservados. Distribuído por
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Valentine
Faure
A luta política na base da sociedade https://bit.ly/3FZNuve
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