O vulto do salão nobre
Gilberto
Freyre
Dizem de certas casas encantadas que suas
assombrações têm um ciclo parecido com o do chamado “espectro” — espectro
retórico e não psíquico — das secas do Nordeste. As quais têm aparecido com uma
regularidade terrível na paisagem e na vida desta infeliz região pastoril do
Brasil.
Quando uma assombração cíclica aparece é
que a casa — isto é, a família que habita a casa assombrada — vai sofrer morte
ou desgraça. Ou então outra experiência que lhe revolucionará a vida, não só
para pior como para melhor. Ou num e noutro sentido como é próprio dos
acontecimentos que revolucionam a vida dos homens.
Um especialista no assunto, A. T. Baird,
no seu livro One
hundred cases for survival after death, chama de “assombração
premonitora” aquela que anuncia morte, desgraça ou revolução, lembrando que
estão nesse caso várias aparições por que se têm tornado famosos alguns dos
velhos castelos da Europa. E não poucas das casas referidas por Ingram,
em The haunted houses and family
traditions of Great Britain, têm suas “assombrações premonitoras”
que uma vez por outra cumprem o seu fado de anunciar acontecimentos graves: a
“mulher cinzenta” do castelo de Windsor, por exemplo; ou a “mulher de preto”,
do outro castelo real da Inglaterra.
No Brasil, consta de algumas casas
antigas, uma delas o palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, que vivem em estado
de permanente desgraça ou azar. Não que algum fantasma de mulher de preto ou de
homem pardo — do escravo que dizem ter amaldiçoado o Guanabara, ainda em
construção, no tempo do Império — anuncie as desgraças que vão acontecer aos
habitantes desses solares ou às casas azarentas, em geral (como aquelas casas
de esquina de que diz o povo: “casa de esquina, triste sina”). O que se diz do
Guanabara é que as desgraças se sucedem a seus sucessivos habitantes, com
terrível frequência: pior do que com a regularidade anunciada por fantasmas
como que rítmicos.
Do Palácio do Governo do estado de
Pernambuco se conta que quando estão para acontecer desgraças a Suas
Excelências seus moradores, aparece um vulto escuro e alto — “eminência parda”?
— no salão nobre, que é o grande e dourado que abre janelas antes cívicas do
que festivas para a praça da República. Essa crença, recolhi-a de velhos
empregados no palácio — que como Palácio do Governo, datando apenas do século
XIX, não chega a ser velho, pelo menos para uma cidade do passado já longo e
provecto do Recife — no tempo em que, governador de Pernambuco, “o último
fidalgo autêntico que governou um estado brasileiro” (como não se cansava de
repetir o perspicaz Edmundo da Luz Pinto), fui, com o nome, mas não com as
funções, de “oficial-de-gabinete”, uma espécie de secretário particular do
ilustre pernambucano, ajudando-o não só a receber e cumprimentar estrangeiros ilustres
de passagem pelo Recife (como o dr. Eckner, do Zeppelin, o infante dom Afonso
de Espanha, almirantes ingleses, o urbanista Agache, lorde Dundonald, Rudyard
Kipling) como — o outro extremo — a tratar com a plebe nas audiências públicas
das sextas-feiras, nas quais fazia meu socialismo moderado mas constante,
contra os ricos que abusavam dos pobres. Diziam então os empregados velhos do
palácio, a mim e a Júlio Belo, cunhado e tio de Estácio Coimbra e que foi, ele
próprio, por algum tempo, na qualidade de presidente da Câmara e na ausência do
governador, chefe do governo, que o tal vulto — talvez alma de algum morto do
tiroteio de 18 de Dezembro, no tempo de Floriano — não tinha hora para
aparecer: até com dia claro podia ser visto. Sua constância era de lugar: o
salão nobre. Sua insistência, a de dar sinal de desgraça próxima. E ultimamente
vinha aparecendo. Não se esquivara nem à luz do meio-dia recifense, que é,
talvez, a mais clara luz de cidade do litoral do Brasil. Pelo menos assim
pensava Eduardo Prado, entendido tanto em luzes como em sombras: pois segundo
Eça de Queirós frequentou em Paris ocultistas, penumbristas e espiritistas.
Estávamos no meado do ano de 1930.
Ninguém mais céptico quanto a revolução ou insurreição que o afastasse
sangrenta e violentamente do governo de Pernambuco do que Estácio de
Albuquerque Coimbra. A situação nacional, esta, há muito que o inquietava. A da
Paraíba, doía-lhe como uma dor que à sua sensibilidade de velho político
anunciasse tempestade grande para aqueles lados. Mas a situação estadual, não,
tais as adesões de políticos oposicionistas que vinha recebendo.
Entretanto, foi Pernambuco um dos poucos
recantos do Brasil onde a revolução de 30, antes de tornar-se, como nas ruas do
Rio, “carnaval contra o Barbado”, fez correr sangue brasileiro. Das janelas do
salão nobre do Palácio do Governo, vi os soldados fiéis ao governador repelirem
corajosamente, da ponte de Santa Isabel, ataques a tiros de revoltosos mais
bravos ou afoitos. Bravura de lado a lado. Jantamos em palácio debaixo de
tiros, mas como se fosse um jantar de dia comum: nenhum pânico. Os tiros
quebrando vidraças e nós comendo o rosbife e bebendo o vinho dos dias normais.
Só depois do jantar, o governador decidiu deixar o Palácio do Governo, não
fugido, como se tem dito maliciosamente ou por ignorância, mas para aguardar no
edifício das Docas, no bairro do Recife, o combate que, ainda à noite ou de
madrugada, deveria travar- se entre a tropa federal fiel ao governo e a
revoltosa, vinda da Paraíba. Esse combate, disse na minha presença ao
governador Estácio Coimbra o então comandante da tropa federal do Recife que
parecia, ainda, fiel ao governo, ou simulava essa fidelidade, deveria travar-se
na descida da ponte de Santa Isabel. A tropa federal precisava, assim, ocupar o
Palácio do Governo para fins militares e era urgente que o governador o
deixasse. Só assim, e confiante na palavra do militar, que parecia, aliás,
homem sincero e sério, o governador constitucional de Pernambuco concordou em
passar a noite — a noite da pequena Itararé, anunciada pelo homem d’armas com
absoluta segurança — fora do palácio: no edifício das Docas. De que não saiu
fugido, prova-o o fato de que o quase Fradique, havendo tempo para preparativos
de viagem, apenas levou consigo uma maleta com sabonete, escova-de-dente e
água-de-colônia. Mais nada. Nem mesmo chinelos ou pijama.
Tudo, porém, se passaria de modo
diferente do anunciado com ênfase militar pelo comandante — talvez ele próprio
iludido — da tropa federal. Estácio Coimbra e os que o acompanhavam foram
obrigados a deixar, nessa mesma noite, o edifício das Docas, num simples
rebocador e este quase sem combustível. A Itararé às margens do Capibaribe
fora, como a outra, batalha só de boca. Não houve. O Exército, talvez
acertadamente do ponto de vista político, isto é, do ponto de vista do
interesse nacional, decidira confraternizar com o movimento revolucionário
sustentado, de resto, por três estados, dois deles ricos e fortes — Rio Grande
do Sul e Minas Gerais — e um, abusado na sua fraqueza pela política
espantosamente inepta que, em face da inquietação paraibana e pelo estado de
espírito brasileiro — um estado de espírito mais ou menos revolucionário —
tornara-se a política do então presidente da República. Mas em Pernambuco, o
representante do Exército, para proceder de modo nacional ou politicamente
certo, tivera que iludir o homem de boa-fé que confiara na sua palavra; e que
por ter confiado na palavra firme de um militar, decerto bem- intencionado e
talvez — repita-se — ele próprio iludido por terceiro — ficaria com a fama de
fujão e de covarde.
Nem fujão nem covarde. Estácio de
Albuquerque Coimbra, em face da insurreição de 30, portou-se varonil e
dignamente.
Mas que tem que ver tanta história
política com a história sobrenatural do Recife? Que tem revolução com
assombração?
Simplesmente isto: ao descer Estácio
Coimbra do seu quarto para deixar o palácio e passar a noite — a noite
decisiva, dissera-lhe o tal militar — no edifício das Docas, ainda que a
escuridão fosse quase completa, o tiroteio de revoltosos contra o pequeno grupo
de legalistas aumentou terrivelmente. Era grande o risco que ia correr cada um
de nós. Já havia mortos. Desde a madrugada que se combatia em redor do palácio.
Um carro blindado do governo fora feito em pedaços. Eu próprio vira partir
contra os revoltosos, com um grupo de soldados jovens aos quais quase me
juntara, não por heroísmo mas por curiosidade e fiado em que o tal carro fosse
na verdade inexpugnável, o suposto carro blindado que se revelara um carro de suicidas
e se despedaçara como se fosse um brinquedo grande, todo feito de latas de
doces de goiaba.
No instante em que nos aproximamos do
portão do lado da casa do mordomo para deixar, não por uma noite, como
supúnhamos, mas para sempre, o Palácio do Governo, velho empregado da casa — um
dos que desde junho me garantiam vir avistando o vulto do salão nobre que
anunciava desgraça — segredou-me, de certo modo, triunfante: “Eu não lhe dizia
que o vulto do salão nobre vinha anunciando desgraça? Quando ele aparece é para
anunciar desgraça. Não falha. Apareceu a Zé Bezerra que morreu logo depois.
Apareceu a Barbosa antes do cozinheiro de Zé Mariano espalhar veneno na fritada
que quase mata mais de cem cascudos de uma vez. E há meses que vinha
aparecendo, aparecendo, como quem quisesse dizer alguma coisa de muito
importante a dr. Estácio. Era isso que está aí.”
[Ilustração: Remedios Varo]
A luta
política na base da sociedade https://bit.ly/3FZNuve
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