07 novembro 2023

O "Anjo da morte" no interior paulista

Um nazista na roça
A vida aprazível do médico Josef Mengele, o "Anjo da morte", no interior paulista
Betina Anton/Piauí


Em 1962, mesmo ano em que Adolf Eichmann foi morto em Israel, agentes do Mossad (o serviço israelense de inteligência) voltaram para a América do Sul determinados a pegar Josef Mengele. O pior pesadelo dele tinha se tornado realidade: os judeus estavam mesmo no seu encalço e, dessa vez, com algumas pistas quentes.

Uma equipe saiu de Israel para vasculhar a área de Hohenau, no Paraguai. Mengele era cidadão paraguaio, e esse era um lugar provável para ele se esconder por causa da grande colônia alemã que havia por lá. A premissa era válida, mas os agentes estavam atrasados. Mengele já não estava mais nessa região fazia uns dois anos. Outra equipe veio para o Brasil atrás de duas pistas: uma em Foz do Iguaçu e outra no estado de São Paulo. A primeira logo se mostrou falsa. A segunda estava corretíssima. Não era à toa. A informação foi obtida com um grande investimento do Mossad. O primeiro grande acerto foi a agência ter se aproximado do jornalista Willem Sassen, que fez parte do círculo de nazistas expatriados em Buenos Aires e tinha gravado horas de confissões de Eichmann sobre seu trabalho na Segunda Guerra Mundial. O material, originalmente pensad o para ser um livro, foi vendido às revistas Life, nos Estados Unidos, e Stern, na Alemanha.

Os agentes logo raciocinaram que, se Sassen tinha sido próximo de Eichmann na capital portenha, deveria saber onde estava Mengele.

Ele não sabia. No entanto, conhecia a única pessoa na Europa que mantinha contato direto com o médico nazista: o senhor X. Zvi Aharoni, o chefe de investigações do Mossad, foi designado para convencer Sassen a colaborar com os israelenses. Além de ser um interrogador experiente, Aharoni ofereceu ao jornalista um pagamento mensal de 5 mil dólares, se ele ajudasse. Dessa forma, o agente conseguiu arrancar dele a identidade do misterioso senhor X: era o piloto alemão Hans-Ulrich Rudel. Cerca de dez agentes começaram a seguir seus passos e descobriram que ele servia como um emissário que a cada seis meses viajava da Alemanha ao Brasil para trazer dinheiro.

No fim de junho de 1962, Sassen mandou um telegrama avisando o Mossad que Rudel chegaria a São Paulo. O jornalista também forneceu o nome e o telefone de um farmacêutico chamado Robert Schwedes. Era na casa dele que o ex-piloto costumava se hospedar. Depois que Rudel desembarcou na cidade, os agentes passaram a segui-lo e o viram pegar uma carona em um carro branco conversível. Pelo número da placa, chegaram a Wolfgang Gerhard. Foi a primeira vez que o Mossad teve conhecimento do nome do maior protetor de Mengele no Brasil, embora não soubesse ainda da proximidade entre os dois.

No dia seguinte, depois que Rudel embarcou para Assunção, os agentes passaram a seguir Gerhard. Aharoni descobriu que ele morava numa casa a 20 km do Centro de São Paulo, na zona rural e que visitava com frequência um sítio, cujo acesso era por uma estrada de terra que saía da Régis Bittencourt, a rodovia que leva ao Sul do país.

O planejamento da operação tinha começado pelo menos quatro anos antes. Assim que o primeiro-ministro David Ben-Gurion ordenou que o Mossad caçasse nazistas, em 1957, a agência recebeu informações de que os principais fugitivos estariam no Panamá, Guatemala, Argentina ou Brasil. O agente secreto Rafi Eitan, que comandava a divisão de operações, imediatamente entendeu a necessidade de recrutar agentes nesses países que falassem o idioma local fluentemente. Por isso, em torno de 1958, muito antes de Mengele cruzar a fronteira brasileira, Eitan já tinha começado a procurar em Israel alguém que pudesse ter um contato por aqui. Primeiro, encontrou o médico Samário Haychuk e, depois, o irmão dele, Yigal, que vivia em Israel havia algum tempo, no kibutz Bror Hayil, no Sul do país, com outros imigrantes brasileiros. Yigal Haychuk tinha 32 anos, nascera em Pres idente Venceslau, no interior de São Paulo, e tinha o português como língua materna. Parecia ser o candidato perfeito para a missão, com a vantagem adicional de ter sotaque paulista. Ao ser chamado, ele topou imediatamente. Foi assim que o Mossad contatou seu agente brasileiro.

Rafi Eitan embarcou para o Brasil como chefe da operação para sequestrar Mengele e levá-lo a Israel, em modo similar ao que tinha sido feito com Eichmann dois anos antes. Apesar do mal-estar causado com os argentinos,[1] os israelenses descartaram a possibilidade de contatar as autoridades brasileiras para prender Mengele. A avaliação era de que ele era protegido por europeus fiéis e qualquer aviso serviria apenas para que fugisse e desaparecesse mais uma vez. Mesmo com o risco de criar uma nova crise diplomática, dessa vez com o Brasil, o Mossad preferiu conduzir a operação à sua maneira, sem informar o governo brasileiro. Além de Eitan, a equipe contava com Aharoni, que tinha participado da Ope ração Eichmann, e o novato brasileiro Yigal Haychuk.

Os agentes rodavam de carro as estradas de terra nas redondezas de São Paulo, se passando por compradores de imóveis. Haychuk ficou encarregado de falar com as pessoas em português. Mesmo sem nenhuma experiência prévia em espionagem, sua função era fundamental, caso contrário os agentes israelenses, com cara de gringos, teriam que fazer as perguntas em inglês para brasileiros que dificilmente entenderiam alguma palavra. Além de infrutífera, essa atitude seria altamente suspeita e poderia servir de alerta para o fugitivo. O Mossad não sabia, mas, naquela época, Mengele morava em Serra Negra com a família Stammer.

A equipe passou cerca de dez dias circulando nos arredores de São Paulo, até que, de repente, deu de cara com Mengele dentro de um carro. O médico nazista mais procurado do mundo estava na companhia de outras pessoas e não tinha seguranças. Eitan achou que poderiam tê-lo matado ali, naquele momento, se quisessem. Mas preferiram apenas fotografá-lo para disporem de uma prova de que tinham achado a pessoa certa. Aharoni era um policial especializado e sabia como tirar fotos para comparar com as dos arquivos. Já tinha feito isso com Eichmann.

O fato de encontrar Mengele não implicava que ele devesse ser sequestrado na mesma hora. Depois de localizar o alvo, o Mossad tinha um modus operandi, com um passo a passo bem definido. O primeiro estágio da operação consistia em coletar todo tipo de informações sobre a pessoa. O segundo, em armar um plano com base nesses dados, incluindo o posicionamento exato de cada agente em campo e uma maneira de levar Mengele até Israel. Na terceira etapa seriam feitos os preparativos para a realização do plano. E a última fase era colocar a missão em prática, ou seja, capturá-lo. Eitan estava convencido de que poderiam pegar Mengele, pois nunca haviam estado tão perto dele. Só precisavam de tempo.

E isso era exatamente o que os agentes não teriam mais. Quando estavam no primeiro estágio da operação, eles receberam ordens para voltar. No dia 22 de julho de 1962, jornais do Egito – o maior inimigo de Israel na época – divulgaram uma notícia bombástica: o país havia testado com sucesso quatro mísseis capazes de atingir qualquer ponto ao Sul de Beirute. Isso significava que todo o território israelense estava em perigo. Algumas semanas depois veio a público que cientistas alemães tinham ajudado a desenvolver esses mísseis, reavivando memórias e medos dolorosos entre os judeus. O projeto era liderado por dois ex-nazistas que tinham trabalhado na criação das bombas V1 e V2, precursoras dos mísseis de longo alcance. Tudo isso aconteceu debaixo do nariz do Mossad, que foi pego de surpresa. Isser Harel, comandante do serviço de inteligência, colocou todos os agentes em alerta. E usou de vários subterfúgios para deter o projeto egípcio: assassinato, cartas-bombas, intimidação. A gota d’água foi plantar na imprensa a informação de que os alemães estavam construindo uma bomba atômica. A notícia levou pânico à população, e o resultado teve um enorme custo político. Harel entrou em conflito com Ben-Gurion e acabou tendo que renunciar. O próprio primeiro-­ministro, fundador do Estado de Israel, perdeu apoio dentro de seu partido e também deixou o cargo. O novo governo decidiu que os serviços de inteligência teriam outras prioridades que caçar nazistas. O entendimento entre as autoridades era de que não se deveria buscar vingança, pois não havia punição suficiente para quem mata crianças pequenas. O julgamento de Eichmann já t inha sido suficiente. O novo comandante do Mossad, Meir Amit, que tinha sido chefe da inteligência militar, ordenou aos agentes: “Deixem Mengele em paz, tenho outro trabalho para vocês.” Era o fim da caçada a Mengele pelo Mossad. Por enquanto.

A missão para capturar Mengele não vingou, mas as poucas semanas que Eitan e Haychuk passaram juntos no Brasil renderam uma amizade para a vida toda. Em 2017, quando entrevistei Rafi Eitan em seu escritório em Tel Aviv, ele estava com 90 anos e ainda era uma pessoa ativa (morreu em 2019, aos 92 anos). Guiga, como Eitan chamava Yigal Haychuck, por sua vez, estava com 85 anos e há muito se aposentara, depois de uma longa carreira como comerciante de carnes e peixes congelados. Eitan me contou que abandonou o mundo da espionagem em 1985 e enveredou pelo empreendedorismo, sempre mantendo uma veia aventureira. Abriu uma empresa de projetos agrícolas que conseguiu um contrato com o governo de Fidel Castro para administrar uma grande fazenda de cítricos em Cuba. Em 2006, deu uma nova guinada na carreira e virou líder de um partido político inédito em Israel, o GIL (sigla em hebraico de Aposentados de Israel na Assembleia). Par a tratar de assuntos que interessavam a esses cidadãos, chegou a ser ministro dos Aposentados. O ex-caçador de nazistas se surpreendeu ao descobrir que havia 53 organizações de sobreviventes do Holocausto em Israel e decidiu centralizar o atendimento a todas elas – obtendo até um orçamento especial para isso. Em 2018, sua atuação no sequestro de Eichmann foi contada no filme Operação final, com Ben Kingsley encarnando Eichmann e Nick Kroll, o jovem Rafi Eitan.

A mente afiada daquele velhinho risonho guardava detalhes dos acontecimentos distantes. Ele só não lembrava uma informação importante: a localização do sítio em que Mengele estava escondido quando o Mossad fez sua missão nos arredores de São Paulo, em 1962. Pelos relatos de Aharoni, chefe de investigações da operação, o local onde avistaram Mengele ficava a cerca de 40 km da capital paulista, à beira de uma estrada de terra que saía da rodovia Régis Bittencourt, no sentido São Paulo-Curitiba. Por essa indicação e depoimentos prestados posteriormente na Polícia Federal, o mais provável é que o local ficasse no município de Itapecerica da Serra. Era lá que ficava o sítio de Wolfgang Gerhard, o homem que recebeu Mengele no Brasil e que o fugitivo frequentaria durante quase duas décadas. Na época da missão fracassada do Mossad, Mengele já vivia no Brasil havia quase dois anos.

Mas como ele veio parar aqui? A resposta para essa pergunta começa no Paraguai, onde o médico nazista esquematizou os passos seguintes da sua fuga com o apoio de amigos. O piloto Rudel passou o contato de Wolfgang Gerhard, que era o representante em São Paulo do Kameradenwerk, serviço criado por ele em Buenos Aires para ajudar nazistas recém-chegados à América Latina. Essas conexões mostram que o ás da Força Aérea de Hitler mantinha uma boa rede de relacionamentos entre os simpatizantes do Terceiro Reich na Argentina, no Paraguai e também no Brasil.

Wolfgang Gerhard venerava Hitler e sua ideologia, a ponto de decorar o topo da árvore de Natal da família com uma suástica. Talvez a sua maior demonstração de amor ao Führer tenha sido dar o nome de Adolf ao filho primogênito. O austríaco, que nasceu em 1925 na cidade de Leibnitz, entrou para a Juventude Hitlerista aos 12 anos de idade, antes mesmo de a Áustria integrar o Reich. Assim que completou 18 anos, tornou-se membro do Partido Nazista. Com o fim da Segunda Guerra, não suportou viver em seu país ocupado pelas Forças Aliadas e emigrou para o Brasil em 1949. Chegou a São Paulo quando estava com 23 anos, trazendo a mãe e a mulher, que era brasileira. Ruth aparentemente compartilhava com o marido o mesmo apreço pelo nazismo. Uma conhecida dela contou que Ruth a presenteou com duas barras de “sabão de judeu” em embalagens originais do tempo da guerra. O sabone te tinha esse nome porque diziam que era feito dos corpos das vítimas do Holocausto. Além de Adolf, o casal teve mais três filhos: Erwin, Karoline e Sieglinde.

No início dos anos 1960, a família morava em uma chácara na Estrada do Campo Limpo, uma região de terrenos baratos na Zona Sul de São Paulo, onde não havia nem linha de ônibus. Mesmo nessas circunstâncias, Wolfgang Gerhard escreveu uma carta a Rudel dizendo que receber o “dr. Mengele” em sua casa era mais que uma prova de confiança – para ele era um prêmio pessoal. O hóspede também estava totalmente satisfeito com seu anfitrião. Mengele escreveu em seu diário que sempre desejou encontrar alguém para conversar que entendesse de astronomia e astrofísica mais do que o básico habitual. Ele e Gerhard rapidamente se tornaram amigos. Rudel tinha providenciado uma falsa carteira de identidade brasileira para Mengele: ele passou a se chamar Peter Hochbichler em sua nova vida no Brasil. A irmã de Ruth, Thea, fez uma visita aos Gerhard nessa époc a e se lembra de ter conhecido um homem que falava espanhol fluentemente, mas com sotaque alemão. Ela contou que o homem morou na casa de sua irmã por alguns meses. Depois disso, não voltou a vê-lo.

Por mais disposto que estivesse a ajudar os companheiros nazistas, Wolf­gang Gerhard dispunha de poucos recursos financeiros. Como não tinha ensino superior, só arrumava trabalho como técnico industrial, soldador ou autônomo. Quando virou proprietário de uma estamparia têxtil no Campo Limpo, seu maquinário era bastante obsoleto e precário. Isso se traduzia em uma vida modesta e parecia até, aos olhos de conhecidos, que os Gerhard passavam por privações. Ele, porém, era bem conectado. O austríaco circulava pelas rodas de europeus expatriados em São Paulo, onde era conhecido como “Lange”, comprido em alemão. Sua presença se empunha aos outros não apenas por sua estatura de 1,92 metro de altura, mas também por causa de suas opiniões fortes. Nas conversas, não escondia ser nazista e exaltava abertamente a volta do regime, soando &agr ave;s vezes até mentalmente desequilibrado. Além disso, ele distribuía no Brasil o Reichsruf, o jornal do Partido Socialista do Reich, criado na Alemanha no pós-­guerra e que reuniu ex-nazistas, entre eles o piloto Rudel. O partido foi proibido em 1952 pelo Tribunal Constitucional Federal, da Alemanha. Em São Paulo, Gerhard também costumava frequentar as festas promovidas pela colônia austríaca e húngara, e foi em uma delas que conheceu , em 1957, os Stammer, a família que daria abrigo a Mengele no Brasil por mais de uma década.

Geza e Gitta Stammer não eram nazistas, mas queriam escapar do comunismo. Depois da Segunda Guerra, os dois deixaram a Hungria e, por razões políticas, se mudaram para a Áustria. As duas nações, que compunham o Império Austro-Húngaro, tomaram rumos completamente diferentes na Guerra Fria. Enquanto a Hungria ficou atrás da Cortina de Ferro e virou um país comunista, a Áustria conseguiu escapar desse destino e permaneceu neutra.

Em 1948, os Stammer vieram para o Brasil e se estabeleceram em São Paulo. Formado em engenharia pela Universidade de Budapeste, Geza logo conseguiu emprego em grandes empresas, como Volkswagen e Aços Villares. Logo nos primeiros anos no Brasil, tiveram dois filhos, Robert Peter e Miklos Geza. Aqui conheceram outras famílias de imigrantes que se apoiavam. Tudo corria muito bem, mas o clima chuvoso da capital paulista incomodava Gitta, que não conseguia se adaptar. O casal decidiu se mudar para o interior. Visitou vários sítios e não gostou de nenhum. Um dia, uma austríaca chamada Martha, inquilina da família Stammer no bairro de Santo Amaro, comentou que seu tio tinha voltado para a Áustria e deixara uma propriedade no interior para o pai dela vender. Gitta se interessou e fez uma visita ao local. Foi assim que a família Stammer decidiu se mudar, em 1959, para Nova Europa. A cidade, que surgiu no iní ;cio do século XX e recebeu esse nome em homenagem aos imigrantes europeus recém-chegados, fica a cerca de 300 km da capital, na região de Araraquara, e tem clima quente – no verão chega a ser insuportável. O casal Stammer adquiriu a pequena fazenda vendida pelo pai de Martha, onde plantou frutas, café, arroz e criou algumas cabeças de gado. Como Geza não podia ficar lá durante a semana, porque trabalhava em São Paulo como agrimensor, foi Gitta que se encarregou da administração de tudo.

Alguns meses após sua chegada ao Brasil, Mengele começou a reclamar da vida. Tinha arrumado emprego na estamparia de Wolfgang Gerhard e registrou em seu diário, em janeiro de 1961, que o trabalho não era muito agradável. O que mais o incomodava, no entanto, era a própria existência naquele lugar, que lhe causava sensações de monotonia, primitivismo, inquietação e nenhuma garantia de segurança. Nessa época, não se sabe se já com segundas intenções, Gerhard fez algumas visitas aos Stammer em Nova Europa. Em um dos encontros, propôs que um conhecido de origem suíça, chamado Peter Hochbichler, trabalhasse para o casal como administrador do sítio. Geza parou para pensar e concluiu que poderia ser um bom negócio: ajudaria um amigo e, em contrapartida, teria alguém para tocar o sítio, já que passava a maior parte do t empo fora. Geza aceitou a proposta. Por volta de agosto ou setembro de 1961, Peter foi apresentado à família Stammer e, naquele mesmo ano, mudou-se para a fazenda.

Peter começou a trabalhar no sítio, mas não aceitava dinheiro por isso. Pelo contrário, fazia questão de pagar por seus alimentos e pela roupa lavada, o que causou estranheza em Gitta. A chegada do suíço no sítio foi especialmente marcante para um dos funcionários, Francisco Assis de Souza, que fazia de tudo por lá, desde ordenhar as vacas até cuidar da lavoura. Ele descreveu Peter como uma pessoa autoritária, de temperamento nervoso e que discutia muito. Para o funcionário, Peter contou, com seu português arrastado e forte sotaque castelhano, que tinha vivido um longo período no Uruguai. Francisco percebeu que Peter não saía da propriedade, no máximo andava nas imediações. Impressionado mesmo ele ficou ao vê-lo operando um bezerro que tinha uma hérnia. A operação foi rápida e o animal ficou curado. Qualquer ad ministrador comum teria chamado um veterinário, não faria ele mesmo uma cirurgia, ainda mais com tanta destreza. O comportamento daquele “suíço” desconhecido era esquisito e causava preocupação a Gitta. Discreto e calado, Peter evitava ser fotografado. Quando o casal recebia visitas, assim que elas iam embora ele sempre perguntava quem eram. Gitta estranhava essas atitudes e, desconfiada, chegou a indagar qual a verdadeira identidade de Peter. Ele sempre desconversava e nunca dizia quem realmente era.

A vida em Nova Europa não durou muito. Como a região era um forno, a família Stammer decidiu se mudar para outro sítio, em uma cidade com um clima mais agradável: Serra Negra, a cerca de 260 km dali, também no estado de São Paulo. Francisco não quis ir junto, mas Peter foi. Embora temesse mudanças, essa logo se mostrou vantajosa para ele. Depois de quase quatro semanas no novo sítio, escreveu em seu diário: “Por mais feroz que fosse minha resistência interior para me mudar para cá, agora me sinto em casa neste lugar, que rejeitei com tanta veemência. Mas ele também tem tudo para poder dar um lar e um lugar onde possa viver uma pessoa sem paz.” Apesar de mais adaptado, Peter continuou a ter um comportamento estranho, até que um acaso revelou o motivo de sua atitude. Um homem que comprava frutas do sítio dos Stammer deixou com eles um jornal, algo que n&at ilde;o era muito comum naquele lugar. Uma reportagem falava sobre executores nazistas e estampava a foto de um jovem de 30 e poucos anos. O rosto do fotografado pareceu familiar a Gitta: um sorriso com diastema, com os dois incisivos centrais bem separados um do outro. A mulher decidiu confrontar Peter: “Você é tão misterioso, vive com a gente, por favor, seja honesto e nos diga se é você ou não.” Na hora, Peter não respondeu nada. Só depois do jantar, ele se manifestou. Disse que Gitta estava certa. “Eu vivo com vocês e, portanto, vocês têm o direito de saber que, infelizmente, sou eu mesmo”, afirmou Mengele.

Depois que os Stammer souberam que Peter Hochbichler era Josef Mengele, Geza procurou Wolfgang Gerhard e exigiu explicações. A recepção não foi calorosa, pelo contrário. O austríaco deixou claro que eles não deveriam comunicar às autoridades o que haviam acabado de descobrir. Em tom de ameaça, avisou que amigos de Mengele não aceitariam uma denúncia e poderiam prejudicar a família Stammer. Embora ele não tenha explicado quem seriam esses amigos, Geza logo entendeu que não deveria falar nada, apenas pediu a Gerhard para afastar Mengele de sua família.

O problema não era tão fácil de resolver. Hans Sedlmeier, representante da empresa da família Mengele, teve que vir da Alemanha para acalmar os ânimos e arrumar um novo local para o médico nazista morar. Na memória de Geza, Sedlmeier viajou ao Brasil pelo menos três vezes. Na primeira, trouxe 2 mil dólares, que Geza trocou por cruzeiros, a moeda brasileira na época. O dinheiro aparentemente ajudou a pacificar a situação. Um registro do diário de Mengele afirma que ele entrou com 25 mil dólares na compra do sítio em Serra Negra e, com isso, tornara-se sócio da propriedade. Os Stammer jamais mencionaram à polícia ter recebido qualquer quantia de Mengele. Sempre justificaram que a razão para terem abrigado o criminoso por tantos anos foi o medo. A PF nunca investigou a questão do dinheiro, porque seu foco era outro: determinar se o “Anjo da M orte” de Auschwitz tinha realmente vivido e morrido no Brasil. As declarações de pessoas próximas e os diários de Mengele mostram que o aporte financeiro provido pela família do nazista teve, sim, um papel importante para o sucesso da vida clandestina que ele levou durante quase três décadas na América do Sul. O único filho de Mengele, Rolf, disse que não sabe ao certo quanto o pai recebeu, mas calcula que a ajuda mensal que lhe era enviada girava em torno de 300 a 500 marcos alemães. Em todo caso, não importa o motivo, o fato é que Mengele permaneceu com os Stammer até 1974.[2]


Trecho do livro Baviera tropical, a ser lançado em novembro pela Todavia

[1] Adolf Eichmann, responsável pela logística do envio de judeus para campos de concentração, foi capturado pelo Mossad em Buenos Aires, sem autorização do governo argentino, o que provocou uma crise diplomática. (N.R.)

[2] Mengele morreu em 1979, aos 67 anos, em Bertioga, no litoral paulista, vítima de um avc. (N.R.)

As dores do parto da História https://bit.ly/3Ye45TD

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