Rio: Quando o “mercado” é o arquiteto da cidade
Sem diálogos, vereadores planejam mercantilizar áreas ambientais, praças e parques – e permitir que especuladores violem parâmetros de construção, desde que paguem a Prefeitura. Sociedade precisa se articular contra estes retrocessos
Um manifesto do Observatório das Metrópoles
A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro colocou para votação nesta semana um pacote de emendas normativas que, no conjunto, desrespeita os parâmetros urbanísticos de construção na cidade, derruba a função social da propriedade e abre as portas para a mercantilização de praças, áreas verdes e jardins. Na ordem do dia, que começou nesta terça-feira (11 de junho), foram colocadas na pauta duas diretrizes que alteram, de forma alarmante, os parâmetros urbanísticos da cidade do Rio de Janeiro.
A primeira surge através de projeto de autoria do vereador Pedro Duarte (Novo), que altera concretamente o artigo 235 de Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, para deixar explicitamente a redação de que “as áreas verdes, praças, parques, jardins e unidades de conservação são patrimônio público inalienável, sendo permitida a concessão de serviços e de uso, desde que preservadas suas características originais”.
A nova redação não apenas elimina a versão original que proíbe a alienação destas áreas “bem como qualquer atividade ou empreendimento público ou privado que danifique ou altere suas características originais”, como claramente permite mercantilizar áreas ambientais, praças e parques, abrindo as comportas para modelos de Parceria Público-Privadas (PPP) com privatização dos espaços públicos.
Com efeito, diversos experimentos já estão sendo realizados nessa direção, mesmo antes da votação. A título de exemplo, o Jardim de Alah, parque tombado como patrimônio da cidade, cercando as águas do canal que conecta a Lagoa Rodrigo de Freitas à praia (divisa dos bairros Ipanema e Leblon) foi objeto de uma concessão de 35 anos para alteração e gestão por parte da iniciativa privada. O empreendimento concedido pela gestão de Eduardo Paes ao Consórcio Rio + Verde, integrado por quatro empresas, planeja construir no local um shopping a céu aberto, área lounge, praça de alimentação, palco para espetáculo e um estacionamento.
A concessão foi contestada de imediato pelo Ministério Público com o apoio de um movimento de moradores, mas todos os esforços para paralisar a concessão foram derrotados em duas instâncias. Mesmo com a luta na justiça, o Consórcio Rio + Verde assumiu a área e resolveu cercar o parque com tapumes desde começo de maio, decisão que motivou uma nova luta na justiça para a retirada do cercado. Frente a impossibilidade da Prefeitura derrubar o tombamento, o movimento na Câmara de Vereadores para mercantilizar parques e praças será uma pá de cal que daria espaço ao início das obras no Jardim de Alah sem nenhum constrangimento.
Como se não fosse suficiente, a segunda diretriz colocada na pauta desta semana é a Proposta de Lei Complementar (PLC) 163/2024, enviada pelo Poder Executivo para, segundo o texto, “regulamentar os instrumentos urbanísticos” para o licenciamento de construções e acréscimo das edificações na cidade. Contudo, como já demonstrado pela profunda análise do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), trata-se de um conjunto de diretrizes que burla abertamente as normas urbanísticas do próprio Plano Diretor (PD) recém-aprovado.
Através de 23 artigos, o PLC 163/2024 permite que parâmetros urbanísticos de construção sejam excedidos, inclusive contrariando as diretrizes já flexibilizadas do próprio PD, desde que sujeito ao pagamento de contrapartidas. As permissões para exceder de forma absurda e aberrante os parâmetros de construção, sem limites de nenhum tipo, são aplicadas a retrofit de edifícios já existentes (permitindo explicitamente as demolições dos mesmos), pavimentos de coberturas, jiraus e varandas, acréscimos horizontais, volumetria das unidades habitacionais, etc., desde que alguém pague por eles.
A própria seção das “Condições Gerais” do PLC 163/2024 institucionaliza a prática de “não há limites, desde que pagando” ao estabelecer explicitamente: “Na hipótese de utilização de parâmetros urbanísticos que excedam aqueles definidos pela legislação em vigor, incidente sobre o imóvel, será cobrada contrapartida”.
A prática da regularização de construções feitas sem licença existe, na cidade do Rio de Janeiro, desde 1946. No entanto, o seu sentido original era a punição do infrator, não permitindo em hipótese alguma a construção fora dos parâmetros estabelecidos pela legislação. No entanto, a Lei Complementar nº 31 de 1997 instituiu que “as obras de construção, modificação ou acréscimo, comprovadamente existentes até à data da publicação desta Lei Complementar, executadas sem o devido licenciamento, e que contrariem normas urbanísticas e edilícias vigentes, poderão ser legalizadas (…) com pagamento ao Município de uma contrapartida.”
Esse é o sentido atualmente vigente da famigerada mais valia, cujo âmbito foi ampliado pela Lei Complementar nº 192 de 18 de julho de 2018, que estabelece a possibilidade de que a transgressão da legislação seja antecipada, ou seja, o proprietário pode fazer um projeto fora da legislação desde que pague a contrapartida. É a extensão da mais valia ao “mais valerá”. Chegou-se ao ponto de o Governo Marcelo Crivella ter proposto e aprovado na Câmara de Vereadores, em 2020, um projeto de Lei Complementar em que a mais valia tinha claro sentido arrecadatório, razão pela qual foi posteriormente considerada inconstitucional e revogada. A consolidação dessa tendência faz com que parte expressiva das construções na cidade sejam feitas sem licença, contribuindo para a deslegitimação do planejamento.
Não é por acaso que, na atual gestão, a Secretaria de Urbanismo, existente desde a década de 1980, tenha sido relegada a mero departamento da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Inovação e que a Secretaria de Habitação, completamente fragilizada, tenha tido seis diferentes secretários nos últimos anos. A deslegitimação do planejamento ao mesmo tempo em que aumenta o poder discricionário dos legisladores e do prefeito, frequentemente a serviço de interesses escusos, ainda estabelece cada vez mais o “mercado” como princípio de organização da cidade, em detrimento das diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Cidade e pelo Plano Diretor: o desenvolvimento sustentável, a função social da cidade e da propriedade, a valorização, a proteção e o uso sustentável do meio ambiente.
O INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro condena veementemente a inclusão desse pacote de normativas na pauta da Câmara Municipal. Observamos que está sendo prática rotineira do Estado o uso de instrumentos auxiliares como emendas, revisões e projetos de lei para sujeitar os interesses coletivos aos do mercado no processo de produção da cidade. Mercantiliza-se diretrizes de construção, normativas urbanas, áreas ambientais e espaços públicos, desde que existam agentes que paguem para usufruir. Consideramos esse pacote um desserviço ao já obstaculizado processo de deliberação sobre o Planejamento Urbano nas cidades.
Unimos nossas vozes às demandas de arquitetos e especialistas que exigem o arquivamento de ambas as iniciativas e a interrupção de sua tramitação. É urgente instaurar um espaço de diálogo com os atores da sociedade civil, parar de ignorar o Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR), como bem reclama o IAB-RJ, e deliberar sobre os processos de implementação do PD para a próxima década. Como temos reivindicado em diversas ocasiões, existe um enorme repertório de propostas e análise da sociedade civil que necessita ser levado em conta para a formação de uma cidade justa, sustentável e equitativa, sujeitando os interesses do mercado ao do coletivo.
Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/alexandre-ramos-opina.html
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