Solo no sertão
No site da vereadora Cida Pedrosa https://bit.ly/3vYxpRh
Foram duas emoções. A primeira, no dia 26 de novembro do ano
passado, quando o seu Solo para Vialejo foi anunciado vencedor, na categoria
Livro do Ano, de um dos principais prêmios literários do país, o Jabuti. A
poeta Cida Pedrosa, que assistia à cerimônia de premiação pelo computador, em
sua casa no Recife, demorou a entender o que estava acontecendo. Foi preciso
que seu filho, Vladimir, que acompanhava o evento pela tevê, na sala, com o
resto da família, gritasse: “Mãinha, você ganhou!”
Cida Pedrosa
se diverte ao relembrar aquele momento. “Eu saí gritando ‘Jabuti, Jabuti’ pela
casa, feito criança, seguida dos meus dois filhos, minhas noras e meu
companheiro, que faziam coro com a minha alegria”, contou, perguntando-se, até
agora incrédula: “Como imaginar que um livro de poesia, a mais marginal das
artes literárias, seria escolhido o livro do ano?”
A segunda e
talvez mais intensa emoção foi a homenagem que Pedrosa recebeu dos músicos de
sua cidade natal, Bodocó, no sertão de Pernambuco, a 640 km do Recife, quando
lá esteve para o lançamento do livro, em 3 de dezembro.
Bodocó é o
tema de Solo para Vialejo, que começa com a diáspora de índios, negros, judeus
e holandeses do litoral para o sertão, para escaparem da perseguição dos
brancos, da Igreja e da Coroa portuguesa, e se mescla com as memórias afetivas
de Pedrosa, que viveu na cidade até os 14 anos. As lembranças são entrelaçadas
pela música e os músicos que povoaram o imaginário da menina e da cidade.
A música dá
nome ao livro – Solo para Vialejo significa solo para gaita. E a Jazz Band
União Bodocoense, que existiu na cidade entre os anos 1940 e 1970, é uma das
referências recorrentes da obra. O sax de seu miguel/o sax de otacílio
rodrigues/o clarinete de raimundo maciel/os negros tocavam banjo, os negros
tocavam banjo/os negros tocavam os negros sem nome tocavam banjo/jazz band/jazz
band/jazz band/jazz band união bodocoense o símbolo delicado escrito/no bombo
indicava que a borboleta azul pousou ali, escreve Pedrosa no livro, cuja capa
traz uma foto da banda.
Pois a Jazz
Band União Bodocoense saiu da memória para se materializar na noite de
autógrafos de Pedrosa em Bodocó. Não com os músicos originais, que já morreram,
mas com seus descendentes, que se juntaram para homenagear a poeta. Entre eles
o filho de Seu Miguel, o maestro da banda desde a fundação até o fim. “Foi
emocionante ver o Miguel Filho e uma mocinha de voz linda, neta de outro músico
da banda, se apresentarem para mim”, disse a poeta.
Os músicos
tiveram ainda o cuidado de selecionar para a apresentação todas as canções
citadas no livro, como Negro Amor – a versão de Caetano Veloso para It’s All
Over Now, Baby Blue, de Bob Dylan –, além das de Etta James, Pixinguinha e
Wanderléa. “Foi muito lindo, muito delicado”, recordou Pedrosa, comovida. “A
cidade se preparou para me receber. As pessoas vinham falar comigo na rua, me
cumprimentar. Até os mais jovens. Nunca vou esquecer aquele dia.”
Embora tenha
deixado Bodocó há 43 anos, Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, 57 anos, não
abandonou suas raízes. Alguns de seus irmãos ainda vivem na cidade, que ela
visita quatro vezes ao ano. “Tudo lá me emociona”, afirmou. Mas como uma banda
de jazz pôde florescer no sertão pernambucano? “Simples”, ela disse. “No fim da
Segunda Guerra, as rádios passaram a tocar jazz, que era a música dos
vencedores. E Bodocó, com histórico de músicos talentosíssimos, se encantou
pelo ritmo.” Depois da Jazz Band União Bodocoense, outros grupos, com outros
ritmos, surgiram para animar as festas no clube da cidade.
A poeta não
tem dúvida de que seu processo criativo está relacionado às lembranças que
guarda da cidade e às histórias que lhe foram contadas na época em que lá
viveu. “Eu morava em um sítio. Não tinha energia elétrica. Eu tinha boneca de
sabugo de milho. Acho que a imaginação ajuda no processo de criação. Você não
deseja o que não conhece. A desgraça do capitalismo é isso: te bombardeiam com
possibilidades, e a juventude passa a desejar todas elas”, disse Pedrosa, que é
assumidamente comunista – no ano passado foi eleita vereadora no Recife pelo
PCdoB (Partido Comunista do Brasil). “Nós não tínhamos televisão e, portanto,
não tínhamos desejos de consumo.”
Ela
continuou: “Na verdade, desejávamos ouvir histórias que meus pais contavam. Nós
sonhávamos também com a chegada de Seu Zé Pedro, porque ele era o melhor
contador de história da região e, quando nos visitava, era a maior festa das
nossas vidas. Nós desejávamos a chegada do inverno para tomar banho de chuva e
correr na estrada com a água batendo na bunda. Nós desejávamos subir no pé de
umbu. Eram esses os nossos desejos. Como não tinha banheiro na casa, eu fazia
xixi no terreiro. Era tão bom fazer xixi na madrugada, no friozinho, olhando
para aquele céu estrelado e vendo a estrela-d’alva às quatro da manhã. O mundo
era todo seu.”
O encanto
pela poesia, que Pedrosa descobriu aos 14 anos, ao escrever seu primeiro poema
para o jornal da escola, já no Recife, vem de tudo isso. E vem ainda da
influência dos pais. A mãe, Isabel Pedrosa Bezerra, descendente de indígenas,
apesar do português machucado escrevia lindas cartas. A poeta me falou de uma,
em especial, enviada quando teve o primeiro filho. “Minha mãe comparava a
maternidade com as andorinhas. Porque as andorinhas só andam juntas. Ela fez a
metáfora de que, ao ter meu filho, eu não era mais uma pessoa, e sim uma
andorinha. Porque, tendo filho, você nunca fica só. Mesmo distante dele, o
filho está dentro de você.”
Seu pai,
Francisco de Assis Bezerra, de “lindos olhos azuis”, só frequentou o primeiro
ano da escola, mas fez questão de que os filhos estudassem (a poeta é formada
em direito). “Ele era muito mulherengo, mas era maravilhoso e tocava gaita
lindamente”, contou. “É dele que vem este meu lado bluseiro. Do meu pai, que fazia
solo para vialejo.”
Fonte : Piauí
O mosaico da vida que segue https://bit.ly/3Ye45TD
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