DA MENTIRA À VIOLÊNCIA
No Brasil e nos Estados Unidos, atos violentos se alimentam de
rede de desinformação; defesa da democracia exige estratégia jurídica contra
fake news
Pedro Abramovay
e Heloísa Griggs, revista Piauí
A profecia era óbvia demais para que não se realizasse. Quantos de nós não alertamos para a possível repetição de cenas como as da invasão do Capitólio no Brasil. Exatos dois anos e dois dias após as lamentáveis cenas na América do Norte, o Congresso – além do Planalto e do STF– foi invadido na América do Sul.
Em junho do ano passado,escrevemos, aqui para o site da revista piauí, um artigo comentando as investigações que o Congresso dos Estados Unidos estava fazendo sobre a invasão de 6 de janeiro. Comentamos que as palavras da então deputada republicana Liz Cheney sobre os fatos passados lá pareciam prever o futuro no Brasil. Ela disse, à época:
“Centenas de nossos compatriotas enfrentaram processos criminais. Muitos estão presos porque acreditaram no que Donald Trump estava dizendo sobre as eleições e atuaram a partir disso.”
Claro que há diferenças entre o Capitólio e o Planalto. Duas principais, Lula já tomou posse, Trump ainda era presidente em 6 de janeiro de 2021. E Trump incitou diretamente seus apoiadores à invasão, enquanto Bolsonaro foi mais discreto. Mas a própria fala de Liz Cheney evoca o fato de que a principal responsabilidade de Trump não foi incitar diretamente os atos, e sim o fato de alimentar constantemente a mentira de que a eleição não havia sido limpa. E, nesse ponto, Bolsonaro é tão ou mais responsável que seu modelo do Norte.
As semelhanças, em compensação, são inúmeras. Na violência, no desrespeito às instituições democráticas e suas representações simbólicas, no patriotismo falso que ama a bandeira e odeia a Constituição e, principalmente na sustentação das manifestações violentas em uma rede de mentiras sofisticada e bem articulada, capaz de mobilizar eleitores e criminosos de maneira espetacularmente poderosa.
Claro que a metáfora mais bem acabada das semelhanças entre os dois países se materializa na figura de George Santos, filho de brasileiros eleito para o Congresso norte-americano. Republicano, trumpista e bolsonarista, ele conseguiu se eleger a partir de uma quantidade cavalar de mentiras a ponto de o jornal The New York Times publicar um artigo com a seguinte manchete: “George Santos está alargando a tolerância a mentiras na política dos Estados Unidos.”
A rede de produção
e propagação de mentiras como principal arma política não é exclusividade de
Estados Unidos e Brasil. Mas há algo de específico na situação desses dois
países. São os dois únicos casos que elegeram líderes autoritários a partir
dessas redes de desinformação, mas que viram uma resistência cidadã se
articular e derrotar esses líderes nas urnas. Em todos os outros casos, os
líderes foram reeleitos e iniciaram um processo até agora sem volta de
destruição gradual da democracia.
É como se Brasil e
Estados Unidos tivessem ganhado uma segunda chance da democracia. Não sabemos
quantos países ganharão essa segunda chance. Nem se a democracia nos dará
alguma outra. Portanto, há que pensar como aproveitá-la. E há que aprender com
erros e acertos dos dois países.
Tanto o caso do
Capitólio quanto o caso de George Santos têm mostrado uma dificuldade enorme
dos Estados Unidos em atuar para responsabilizar as redes de mentira, seus
articuladores, financiadores e beneficiários. O que vemos é um país que se
notabilizou por utilizar a força de seu aparato estatal para enfrentar formas
novas de criminalidade (guerra às drogas e guerra ao terror são dois exemplos)
atuando de forma tímida quando a vítima é o processo democrático.
A escala do desafio
exige novas instituições e novas formas de se empreender o esforço estatal para
enfrentar o autoritarismo extremista nessa que pode ser a última oportunidade
que a democracia nos confere.
O Brasil conseguiu
em grande medida sobreviver à crise democrática dos últimos quatro anos não
porque suas instituições funcionaram normalmente, mas sim porque, cientes dos
ataques constantes à democracia vindos diretamente do presidente da República e
de seus sustentáculos econômicos e militares, o Poder Judiciário assumiu
funções e exerceu uma força no limite de sua autoridade Constitucional. Isso
foi necessário principalmente pela cumplicidade da Procuradoria-Geral da República
que silenciou o Ministério Público, afetando o equilíbrio dos freios e
contrapesos da República.
Esse modelo, de uma
hipertrofia do Judiciário como única instituição de defesa da democracia, não é
desejável e nem sustentável a longo prazo. É por isso que é fundamental que o
Estado brasileiro se reformule para estar preparado para enfrentar a maior
ameaça à democracia desde a promulgação da Constituição de 1988.
Claro que um dos
elementos centrais para a construção da resistência republicana aos ataques
antidemocráticos é a reconstrução do papel do Ministério Público. Não
surpreendeu a resposta tardia e ínsipida do Procurador-Geral da República
Augusto Aras, que após atravessar esse período tenebroso de nossa história de
braços dados com o autoritarismo, cravou o último prego em sua reputação inerte
enquanto a República exigia força.
A indicação do
próximo procurador-geral deve ter como foco uma pessoa com um programa para
transformar o Ministério Público Federal em uma instituição apta a defender a democracia
dos ataques a que ela vem sendo submetida.
Mas o Poder
Executivo também deve se estruturar para isso. E, nesse sentido, além da
postura firme do ministro Flávio Dino mesmo antes da posse, vários passos
positivos já foram dados. No Ministério da Justiça, a indicação da advogada
Estela Aranha, com ampla experiência no debate sobre direitos digitais é um
ótimo prenúncio. Na Secretaria de Comunicação Social da Presidência, a criação
da Secretaria de Políticas Digitais demonstra a necessidade de se pensar uma
comunicação ativa contra o extremismo nas redes, como forma de proteger a
democracia.
Mas talvez a
principal medida tenha sido a criação, pelo ministro Jorge Messias, da
Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia no âmbito da Advocacia-Geral da
União. Esse órgão, visto com ceticismo por alguns na primeira semana de
governo, mostra-se um grande acerto depois dos ataques do dia 8. É necessário
compreender que, no Brasil, em que a rede de mentiras age constantemente no
ambiente político, não é possível implementar políticas públicas sem uma
estratégia jurídica de combate à desinformação. A política de vacinação, de
combate ao desmatamento, a oferta de benefícios sociais aos mais vulneráveis,
são exemplos de alvos claros dessas redes de mentiras, e cabe à Advocacia de
Estado, exercida pela AGU, tomar as medidas cabíveis para que a desinformação
não afete a implementação de políticas públicas. Também cabe à AGU a defesa de
servidores federais e agentes políticos que sejam vítimas de discurso de ódio e
ameaças. E, finalmente, cabe à AGU atuar para proteger o patrimônio público ou
empreender todos os esforços para recuperar os danos ocorridos, como foi o caso
da destruição do último domingo. A ação rápida do Advogado-Geral da União na
noite do dia 8 de janeiro mostra a necessidade de tal estrutura.
É claro que essa
reformulação de órgãos estatais para equipar a democracia brasileira para a
defesa de ataques autoritários deve ser acompanhada com atenção pela sociedade
civil, pela imprensa e pelos órgãos de controle. É sabido que pode ser nebulosa
a fronteira entre discurso de ódio e liberdade de expressão, entre
desinformação e a crítica legítima a políticas públicas. Mas com estruturas
independentes para fiscalizar e com a imprensa livre para apontar excessos,
pode-se criar, no Brasil, um modelo eficiente para enfrentar o
autoritarismo.
O que aprendemos olhando para os Estados Unidos e para o Brasil é que o sistema de freios e contrapesos montado pela Constituição norte-americana há mais de duzentos anos já não é suficiente para proteger a democracia. O enfrentamento do autoritarismo vai exigir um esforço coletivo de todos que se considerem democratas.
Importa fincar os pés na realidade concreta https://bit.ly/3Ye45TD
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