Em meio a polêmicas, Brasil retoma política
externa pragmática
País vive momento oportuno para se recolocar como
ator relevante nas relações internacionais
João Montenegro e Nathana Garcez/Le Monde Diplomatique
As últimas semanas foram palco de importantes
movimentações do governo brasileiro no cenário internacional. Os discursos do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus encontros com o presidente chinês Xi Jinping e o
ministro de negócios estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, sacramentaram um
novo momento para a política externa do país – o que, no entanto, foi recebido
com hesitação por parte da opinião pública.
Entre a polêmica em torno dos pronunciamentos de Lula
– sobre a hegemonia do dólar e a Guerra na Ucrânia – e as querelas políticas
internas que se desdobraram a partir daí, ficaram ofuscados aspectos relevantes
e coerentes da política externa que começa a ser traçada pela nova
administração federal.
Em primeiro lugar, o posicionamento diplomático brasileiro
retoma um caráter pragmático e de não alinhamento automático, em contraposição
ao vigente durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Esse é um princípio básico das boas práticas diplomáticas,
como observado por Henry Kissinger, um dos mais importantes diplomatas da
história dos EUA, em seu livro “Diplomacia”, considerado seminal para o campo
de estudos das Relações Internacionais.
Kissinger destaca, na obra, a decisão de Richard
Nixon, presidente norte-americano entre 1969 e 1974, de reestabelecer as
relações com a China, país com o qual os Estados Unidos haviam rompido relações
20 anos antes, após a vitória dos comunistas na Guerra Civil Chinesa.
Então secretário de estado de Nixon, o alemão radicado
nos EUA notou que o rompimento entre a União Soviética (URSS) e a China – como
reflexo da escalada de conflitos fronteiriços entre os países e à medida que a
última tentava conduzir uma política externa independente – minava a pretensão
soviética de liderar um movimento comunista único no mundo, abrindo espaço para
uma nova flexibilidade diplomática.
O momento era, portanto, propício para abrir um canal
de diálogo com os chineses a fim de enquadrar os russos, os quais teriam de
encarar desafios em dois fronts: a oeste, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan) e a leste, a China, uma potência com capacidade para afetar o
equilíbrio de poder na Ásia que seria, então, contida pela necessidade de
contar com a “boa vontade” dos EUA para limitar as pretensões soviéticas sobre
seu território.
Com isso, a administração Nixon gozaria de maior
flexibilidade para resolver questões práticas com a URSS por vias políticas, já
que, em situação delicada, os soviéticos seriam forçados a relaxar as tensões
com os EUA.
Hoje, a China é o maior parceiro comercial dos EUA e
grande detentor de títulos da dívida estadunidense.
De forma semelhante e há não muito tempo, o
conservador Donald Trump estava na também comunista Coreia do Norte apertando
as mãos do ditador Kim Jong-un.
No caso do Brasil, é digna de memória a política
externa praticada pelo general Ernesto Geisel, na década de 1970. Seu chamado
“pragmatismo ecumênico” contemplou uma intensificação das relações com a União
Soviética, o reconhecimento da China comunista, uma ampliação da representação
do Brasil na Europa Oriental e o abandono tácito do país à política de Lisboa
na África.
O segundo aspecto a ser destacado está relacionado ao
aparente estabelecimento de uma nova ordem geopolítica mundial marcada por uma
bipolaridade (EUA + China) ou mesmo tripolaridade (EUA + China + Rússia). Se
confirmada, essa possível mudança representaria um enorme impacto na balança de
poder global se comparada ao período de inquestionável hegemonia
norte-americana desde a dissolução da União Soviética (URSS), em 1991.
Conforme apontado em artigo publicado
no Le Monde
Diplomatique Brasil, em março de 2022, tal mudança pode gerar
oportunidades para o Brasil alavancar sua posição no sistema internacional, uma
vez que o poder de barganha de potências emergentes tende a crescer em um
cenário em que o hegemon é
efetivamente desafiado.
Não é incidental que o período pós-Segunda Guerra
Mundial seja considerado a época de ouro do capitalismo: o aumento da
prosperidade em diferentes regiões do planeta guarda relação direta com uma
política externa “benevolente” praticada pelos EUA a fim de conter o avanço
comunista sobre o então chamado Terceiro Mundo.
Por fim, temos o terceiro aspecto: a crítica à
hegemonia do dólar não é de agora e tampouco tem origem no Brasil. E, o que é
mais importante, ela é absolutamente legítima.
O dólar se tornou oficialmente a moeda internacional
no apagar das luzes da Segunda Guerra, quando a Europa Ocidental recebia
crescentes influxos da moeda norte-americana para ser reconstruída por meio do
Plano Marshall.
Assinados em 1944, os acordos de Bretton Woods
estabeleceram uma paridade fixa do dólar em relação ao ouro que logo viria a
ser questionada.
Já na década de 1960, o então presidente francês,
Charles de Gaulle, denunciava que os EUA detinham um “privilégio exorbitante”,
tendo em vista seu poder de financiar déficits internos em sua própria moeda e
sua capacidade ilimitada de endividamento e de investimento.
Em 1971, os Estados Unidos decidiram acabar com o
lastro obrigatório ao metal, implementando o que ficou conhecido como padrão
dólar-flexível.
Nesse sistema, o valor da moeda internacional passou a
ser fundamentalmente avalizado pelo poder político e militar dos EUA[1], cujo
banco central têm a liberdade de variar unilateralmente a paridade em relação a
outras moedas por mudanças em suas taxas de juros, inclusive para desvalorizar
o dólar, sem medo de haver fuga para o ouro, já que o sistema é totalmente
fiduciário. Afinal, “One dollar is as good as one dollar”[2].
“O dólar vai se tornando referência obrigatória nas
operações financeiras à medida que a dívida pública americana de expande,
convertendo-se em ativo internacional utilizado nas carteiras de quase todas as
instituições financeiras”, assinalou Maria da Conceição Tavares[3].
Foi justamente pensando em reduzir sua dependência do
dólar que os BRICS anunciaram, em 2013, a intenção de criar um banco de
desenvolvimento próprio – o que, claro, incomodou profundamente os EUA.
Importa notar que os norte-americanos também usam sua
posição de detentor da moeda internacional para enquadrar países considerados
rivais. Um exemplo é o das sanções econômicas aplicadas pelos EUA à Venezuela.
Há anos elas impedem o refinanciamento da dívida da petroleira estatal PDVSA em
dólares, o que afeta diretamente a economia do país sul-americano, a qual é
extremamente dependente das exportações de petróleo.
Por sua vez, a Rússia vem ampliando suas operações
internacionais em rublos desde que os EUA baniram bancos do país do SWIFT,
sistema internacional de compensações financeiras.
Enquanto isso, a China mantém acordos com a própria
Rússia, além de países como o Paquistão, Laos e Cazaquistão, realizando
transações em Renminbi (RMB), e discute tal possibilidade com a Arábia Saudita,
tradicional parceiro dos EUA.
No plano ocidental, a petroleira francesa TotalEnergies vendeu,
recentemente, 65 mil toneladas de gás natural liquefeito dos Emirados Árabes
Unidos para a estatal chinesa CNOOC, com mediação da Bolsa de Petróleo e Gás
Natural de Xangai.
Essas movimentações nos remetem, novamente, à questão
do pragmatismo. As relações internacionais não devem ser norteadas por quesitos
ideológicos ou mesmo éticos e axiológicos, mas pelo interesse nacional,
seguindo os preceitos de Nicolau Maquiavel (1469-1527), que fundou uma moral
própria da política.
Portanto, nesta conjuntura, talvez a pergunta que se deve
fazer para analisar os posicionamentos brasileiros é quais os benefícios que
eles podem trazer ao país. Neste caso, o Brasil tem uma rara chance de se
recolocar como um país relevante nas relações internacionais e se tornar peça
fundamental no processo de transição hegemônica que parece estar em curso.
Dessa forma, cabe ao governo brasileiro buscar o
melhor para sua população, enquanto, para nós, fica a responsabilidade de
entender esse processo pragmático que tem raízes históricas na política externa
nacional.
João Montenegro, jornalista especializado
em energia e mestre em Economia Política Internacional pelo PEPI-UFRJ.
Nathana Garcez, mestre em Economia
Política Internacional pelo PEPI-UFRJ e doutoranda em Relações Internacionais
pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Santas (UNICAMP/UNESP/PUC-SP).
[1] FIORI, J. L. (1999). “Estados,
moedas e desenvolvimento”. Em J.L. Fiori (org), Estados e Moedas no
desenvolvimento das nações, Editora Vozes, 1999.
[2] MEDEIROS & SERRANO (1999). “Padrões
monetários internacionais e crescimento”. Em J.L. Fiori (org), Estados e
Moedas no desenvolvimento das nações, Editora Vozes, 1999.
[3] TAVARES, Maria da Conceição & MELIN,
Luiz Eduardo. “Pós-escrito 1997: A reafirmação da hegemonia norte-americana”.
Em M.C. TAVARES & J.L. FIORI, Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização.
Pressão midiática sobre o governo Lula https://bit.ly/3LhuREL
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