BUEIRO
Karina Buhr/Revista
Continente
A tampa retangular em
cima do bueiro redondo, parecendo aquele brinquedo de criança, de
encaixar. Antes um monte de galho seco, feito um fauno emergindo das
profundezas, pra adiar um pouco a morte da pessoa que atravessa e dificultar a passagem
dos carros, que deveriam agradecer, mas xingam a ideia do cara do final da rua
que impede a queda num buraco desse e a pessoa de ir até o centro do inferno em
chamas. Um dia medíocre, nada bom nem ruim demais ao alcance dos olhos, vendo
daqui da borda da rede, os fios de algodão laranja histérico fazendo um
listrado desfocado na minha visão da calçada. Quem passa não desconfia que olho
e se olha de volta não me vê, mesmo dando impressão que sim e eu abaixo a cara
pra não aparentar vigia, algum interesse na vida alheia.
Hoje ia ser melhor se
fosse um dia de semana, ir pagar alguma coisa ou ganhar alguma coisa pra ir
pagar outras, ou só sair, pra realizar um verbo, somente ir. Ideia boa pra esse
exato momento também seria mais barulho de carro e menos de música, prefiro
zoada de martelete esgarçando viga do que não poder escolher o repertório e
esse pensamento parece encomendado pelo meu pai. As roupas estão secando
rápido, mas não adianta porque vem toda hora uma chuva passageira o suficiente
pra encharcar tudo de novo. O dia vai nessa, virando tarde da noite, a fome não
veio, nem a caneta se mexeu, ficou só de vez em quando balançando, trocando de
lado pra revezar o braço, segurando um livro que cai de tempo em tempo, das
adormecidas que dou, sem prestar atenção na história, só enxergando as letras
sem formar palavras, nem os óculos resolveria a falta de foco, ou foco
excessivo em outro assunto e aí o livro é vontade que não realiza.
O celular cai na cara, em
mais uma desmoralização da leitora. Na televisão as galinhas engordam, presas
no jornal matinal do agro, a pauta do ovo de páscoa caro, a conversa do
empreendedorismo na fabricação caseira e venda feliz pra quem é de felicidade e
novas receitas - esse ano tem um com dendê - a barreira que derreteu antes da
prefeitura chegar, o protocolo antigo nas mãos, desde uns dez desabamentos
atrás. Começou a falhar a transmissão do que já sei, as chuvas de abril, os
tempos se repetem, a inundação agora foi maior. A televisão piorou e perco as
novidades de sempre. Caiu um raio em alguma estação de energia, ou o
estardalhaço do pipoco foi caminhão batendo em poste, jamanta descarrilada
batendo nele e engavetando em cima da rede elétrica que dá vida às televisões
desse lado do bairro, pixels formando outras imagens, feito nuvem de dragão e
baleia, trazendo a inovação pro assunto páscoa. Desligo.
Já é tarde no meu corpo
preguiçoso ou desistido e ainda são oito e meia da noite. Queria essa
tecnologia de segurar ponteiro e calendário no dia de entregar trabalho, preciso
tentar desenvolver, domingar uma terça-feira esculhambada feito a que vai ser a
próxima. Um parabéns pra você esfuziante ecoa sozinho no quarteirão, as outras
trilhas desligadas. Precisamos aniversariar assim, contentes, comemorar a
proximidade maior da morte em grande estilo, agradecer por estar vivo, mesmo às
vezes preferindo nem ter vindo, ó! Começar pra ter que acabar sempre é um
problema e aí economizar nos começos pode ser um bom empreendimento. Avisar pro
pessoal da redação um mote pro próximo coelho da páscoa, pra aquela matéria que
quando acaba a seguinte vem anunciada por um "agora vamos falar de coisa
boa!". Conversas interiores desconexas, minha cabeça conversando com
cabeça minha, diálogo de umbigo de um domingo aparentemente tranquilo, num
tempo de fim de mundo, sem saber se abraço a dormência do meu dia ou o caos da
realidade. O choro é seco nas minhas cidades alagadas e não há bóia suficiente.
Guerreira da luta e da arte
https://bit.ly/3GwFhie
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