Políticas sociais
mudam a cabeça do povo?
Frei Beto/Unisinos
"Imagina
o leitor ou a leitora toda essa rede voltada para o despertar da consciência crítica do público. Basta para isso mudar a chave
epistemológica, passar da lógica analógica, que apenas se foca nos efeitos dos
problemas sociais, à lógica dialética, centrada nas causas dos problemas sociais", escreve Frei Betto, escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco) e, com Paulo Freire, “Essa
escola chamada vida” (Ática), entre outros livros, em artigo
publicado por Le Monde Diplomatique, maio de 2023, e enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU pelo autor.
Eis o artigo.
Minha resposta à pergunta acima é
não. Em setenta anos de União
Soviética, o povo foi beneficiado com direitos que o Ocidente ainda não
conquistara. Homens e mulheres desempenhavam os mesmos trabalhos e tinham igual
remuneração. Já na década de 1920, 600 mulheres ocupavam cargos similares ao de
prefeita, enquanto na maioria dos países ocidentais elas nem tinham direito a
voto.
A União Soviética foi
o primeiro país da Europa a
apoiar direitos reprodutivos, em 1920. As mulheres detinham plena autoridade
sobre seu corpo[1]. O ensino escolar era gratuito, inclusive a pós-graduação.
Os estudantes recebiam do poder público livros didáticos e material escolar[2].
Também o sistema de saúde era inteiramente gratuito. O número de usuários de
drogas era extremamente baixo e os poucos que conseguiam entorpecentes o faziam
através de turistas que contrabandeavam para dentro do bloco[3]. Foram os
soldados que ocuparam o Afeganistão,
no fim da década de 1980, que infestaram de drogas os países do bloco
soviético.
Apesar de tudo, a União Soviética colapsou
sem que fosse disparado um único tiro. O povo deu boas-vindas ao capitalismo. Hoje,
a Rússia é
um dos países onde a desigualdade
social é mais alarmante.
O socialismo soviético não
fez a cabeça do povo em prol de uma sociedade solidária. Do mesmo modo, o
Estado de bem-estar social, predominante na Europa “cristã” até
ruir o Muro de Berlim,
não fez a cabeça do povo.
Antonio Candido dizia
que a maior conquista do socialismo não
se deu nos países que o adotaram, e sim na Europa Ocidental, onde o medo do comunismo levou
a burguesia a ceder os anéis para não perder os dedos.
Findo o socialismo, a burguesia
ergueu os punhos e revelou sua verdadeira face: prevalência dos privilégios
do capital sobre
os direitos humanos; repúdio aos refugiados; privatização dos
serviços públicos; alinhamento à política
belicista dos EUA.
Governos do
PT
O Brasil conheceu 13
anos de governos do PT que asseguraram
à população de baixa renda vários benefícios: Bolsa Família; salário
mínimo corrigido anualmente acima da inflação; Luz para Todos; Minha casa, Minha vida; Fies; cota nas
universidades; redução drástica da miséria, da pobreza e do desemprego; aumento
da escolaridade etc.
No entanto, Dilma Rousseff foi derrubada sem
que o povo fosse às ruas defender o governo. E Bolsonaro foi eleito
presidente em 2018. Em 2022, perdeu para Lula pela diferença de apenas 2 milhões
de votos, de um total de 156 milhões de eleitores.
Freud e
Chomsky
Segundo Freud, “a massa é
extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não
existe para ela. (...) Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito
exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza. Vai prontamente a extremos; a
suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível, um
germe de antipatia se torna um ódio
selvagem. Quem quiser influir, não necessita medir logicamente
os argumentos; deve pintar com imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a
mesma fala. (...) Ela respeita a força, e deixa-se influenciar apenas
moderadamente pela bondade, que considera uma espécie de fraqueza. Exige de
seus heróis fortaleza, até mesmo violência.
Quer ser dominada e oprimida, quer temer os seus senhores. No fundo,
inteiramente conservadora,
tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência
pela tradição[4]”.
Quem faz a cabeça do povo é
o capitalismo, que
exacerba nosso lado mais individualista e narcisista. E promove 24h
por dia a deseducação da sociedade ao estimular o consumismo, a
competitividade, a ambição de riqueza, o “salve-se quem puder”.
Noam Chomsky[5] enumera
os recursos do sistema para evitar a consciência crítica: o entretenimento
constante (vide a programação de TV); disfarçar os abusos como necessidades,
como o aumento das tarifas dos transportes (“Medidas que são, na verdade,
prejudiciais à população por favorecer os interesses escondidos de uma minoria,
passam a ser implantados como se fossem garantir benefícios em comum”); tratar
o público como criança e manter a consciência
infantilizada; fazer a emoção prevalecer sobre a razão; manter
o público na ignorância e
na mediocridade,
como a linguagem cifrada utilizada nas matérias sobre economia; autoculpabilização (sou
o único responsável por meu fracasso ou sucesso); convencer que a grande mídia
sabe mais do que qualquer pessoa etc. São o que Chomsky denomina as
“armas silenciosas para guerras tranquilas”.
O PT governou por
quatro vezes os municípios de Maricá (RJ) e Ipatinga (MG), assegurando grandes
benefícios às suas populações. Em 2022, Bolsonaro venceu nos dois turnos nas
duas cidades.
Isso significa que é real o risco
de a direita voltar
à presidência da República em 2026. Por mais benefícios que o governo Lula venha a
garantir ao povo brasileiro. Qual é, então, a saída? Como evitar que isso venha
a ocorrer?
Educação
política
Só há uma alternativa: intenso e
imenso trabalho de educação
popular, pelo método Paulo Freire, utilizando
dois recursos preciosos que o governo dispõe, a capilaridade e
o sistema de
comunicação. Capilaridade seria adotar a pedagogia
paulofreiriana na formação dos agentes federais em contato com os segmentos
mais vulneráveis da população, como saúde, IBGE, Embrapa etc.
Por que não incluir no Bolsa Família, que atende
mais de 21 milhões de famílias, uma terceira condicionalidade, além da
escolaridade e da vacina? Seria a capacitação
profissional. Além de propiciar qualificação aos beneficiários,
de modo a que possam produzir a própria renda, as oficinas de capacitação
seriam pelo método Paulo
Freire. Mulheres que se inscreverem para se capacitarem em
oficinas de culinária e costura, por exemplo, aprenderiam esses ofícios segundo
o método que desperta consciência
crítica.
A rede de
comunicação do governo federal
O outro recurso é a EBC – Empresa Brasileira de Comunicação -,
poderoso sistema de comunicação em mãos
do governo federal, desde a “Voz
do Brasil”, ouvida diariamente por 70 milhões de pessoas.
A TV Brasil, Canal 2, rede de
televisão pública, conta com 50 afiliadas em 21 estados. Em 2021, ficou entre
as 10 emissoras mais assistidas do país. O sistema de rádio EBC engloba 9
emissoras próprias em 2 estados e no Distrito Federal. A EBC dispõe do maior
sistema de cobertura nacional de rádio, com 14 rádios afiliadas.
A Rádio Nacional é uma
rede de emissoras da EBC.
É formada pelas seguintes emissoras: Rádio Nacional do Rio de Janeiro (alcance
em todo o território nacional por transmissão via satélite); Rádio Nacional de Brasília; Nacional FM (Brasília); Rádio Nacional da Amazônia (sede
em Brasília,
mas programação voltada para a região Norte); Rádio Nacional do Alto Solimões (Tabatinga, AM); e as Rádios MEC e MEC FM (Rio de Janeiro).
A comunicação do governo federal
dispõe ainda da Radioagência
Nacional, agência de notícias que distribui áudios produzidos
pelas emissoras próprias da EBC e
emissoras parceiras. Segundo a estatal, mais de 4.500 emissoras de rádios
utilizam os conteúdos da Radioagência.
E a Agência Brasil,
focada em atos e fatos relacionados a governo, Estado e cidadania, alcança 9,19
milhões de usuários por mês.
Há ainda o Portal EBC, plataforma na
internet que integra conteúdos dos veículos (Agência Brasil, Radioagência Nacional, Rádios EBC, TV Brasil, TV Brasil Internacional)
da Empresa Brasil de
Comunicação e da sociedade em um único local.
A EBC, além de gerenciar as
emissoras públicas federais, também é responsável pela formação da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP). A RNCP visa
estabelecer a cooperação técnica com as iniciativas pública e privada que
explorem os serviços de radiodifusão pública. Atualmente, a rede conta com 38
emissoras espalhadas por todo o país.
Dentro da política da RNCP, a EBC pode solicitar a
qualquer tempo canais para execução de serviços de radiodifusão sonora (rádio
FM), de sons e imagens (televisão) e retransmissão de televisão por ela própria
ou por seus parceiros. São as chamadas Consignações da União. Atualmente, 13 veículos
são operados dessa forma em todo o país: TV Brasil Maranhão, com o Instituto Federal do Maranhão; TV UFAL, com a Universidade Federal de Alagoas; TV UFPB, com a Universidade Federal da Paraíba; TV UFSC, com a Universidade Federal de Santa Catarina; TV Universidade, com
a Universidade Federal
do Mato Grosso; e TV
Universitária, com a Universidade Federal de Roraima.
Imagina o leitor ou a leitora toda
essa rede voltada para o despertar da consciência crítica do
público. Basta para isso mudar a chave epistemológica, passar da lógica
analógica, que apenas se foca nos efeitos dos problemas sociais, à lógica dialética,
centrada nas causas dos
problemas sociais.
Quando vemos na TV campanhas em
favor de quem tem fome,
em geral aparecem indicações de locais de coleta de alimentos e doações de
cestas básicas. Em nenhum momento o noticiário levanta as perguntas: por que há pessoas
com fome? Por que não têm acesso aos alimentos? É natural que haja abastados e
famintos? Como superar essa desigualdade?
Há muito a fazer para
conscientizar, organizar e mobilizar o povo brasileiro.
Recursos existem. E há vontade
política por parte de Lula e da Secretaria Geral da Presidência da
República, monitorada pelo ministro Márcio Macedo. Faltam
apenas maior empenho, produção de material para os veículos de comunicação
social e verba para que o governo disponha de uma rede de educadores populares de,
no mínimo, 50 mil pessoas!
Notas
[1] Abortion, Contraception, and
Population Policy in the Soviet Union, David M. Heer.
[2] A Geography of Russia and its
Neighbors", do geógrafo Mikhail S. Blinnikov
[3] Arquivo da CIA: The USSR and
Illicit Drugs: Facing Up to the Problem.
[4] Psicologia das massas e
análise do eu, 1921.
[5] Mídia – propaganda política e
manipulação, São Paulo, Martins Fontes, 2013.
A luta
política na base da sociedade https://bit.ly/3FZNuve
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