A ameaça à hegemonia do dólar
O economista marxista indiano Prabhat Patnaik explica que a
desdolarização é a expressão da crise atual do capitalismo.
Publicado originalmente no Resistir.info/Portal
da Fundação Grabois
Janet
Yellen, a secretária do Tesouro dos EUA, finalmente reconheceu o que tem sido
óbvio para a maior parte das pessoas desde a tempos, nomeadamente que a
imposição de sanções contra países a que os EUA são hostis leva ao risco de
comprometer a hegemonia do dólar como a divisa de reserva do mundo. Se as
sanções fossem impostas só sobre um ou dois países, então o caso seria
diferente. Mas hoje os EUA usam sanções para atingir dúzias de países e, quando
isto acontece, tais países tendem a congregar-se a fim de formar arranjos
alternativos de modo a contornar as sanções. Estes arranjos alternativos têm o
efeito de minar a ordem mundial dominada pelos EUA, caracterizada pela
hegemonia do dólar.
Ironicamente,
mas não surpreendentemente (pelo que é expectável de um alto membro da
administração Biden), apesar de admitir isto Janet Yellen pronunciou-se a favor
das sanções que atualmente os EUA estão a impor. Ela também admitiu que quando
são impostas sanções contra países cujos governos seguem políticas mal vistas
pelos EUA, estas são ineficazes para mudá-las; no entanto provocam grandes
dificuldades para os povos dos países visados. O exemplo do Irão foi por ela
mencionado: apesar de anos de sanções as políticas do governo iraniano mal
vistas pelos EUA não foram alteradas, embora o povo iraniano tenha sofrido
grandemente. Como ela própria disse: “Nossas sanções ao Irão criaram uma crise
económica real naquele país e o Irão está a sofrer muito economicamente por
causa das sanções… Será que isto o forçou a uma mudança de comportamento? A
resposta é: muito menos do que idealmente gostaríamos”. Contudo, mesmo este
reconhecimento não a impediu de apoiar a imposição de sanções pelos Estados
Unidos. Ao contrário, no caso do Irão os EUA, diz ela em tom aprovativo, está a
examinar meios de fortalecer as sanções ainda mais.
O
facto de países visados pelas sanções fazerem arranjos alternativos que minam a
ordem mundial dominada pelos EUA é óbvio atualmente. A Rússia, que tem sido
visada por sanções, está em processo de recriar arranjos bilaterais com um
certo número de países, da espécie que a União Soviética costumava ter
antigamente, em que o comércio seria efetuado em termos de rublo e da divisa
local, com a taxa de câmbio entre eles permanecendo fixada, ao invés do dólar.
O
que faz um arranjo assim é remover o dólar do seu papel como meio de circulação
sobre uma grande parte do comércio mundial; e é isto que coloca uma ameaça à
hegemonia do dólar. O papel do dólar como a unidade de conta do comércio
mundial, isto é, o facto de que os preços são denominados em termos de dólares,
não tem grande consequência – não é aí que repousa a sua hegemonia. Ela está no
facto de que são necessários dólares para realmente executar transações que dão
à moeda estado-unidense a sua posição única.
Naturalmente,
o dólar também atua como uma forma de entesouramento; mas este papel do dólar
decorre do facto de ser meio de circulação. O dólar, ao contrário de qualquer
commodity, não tem valor intrínseco, no sentido de que muito pouco trabalho é
gasto na sua produção. Ele comanda valor porque este valor é fixado em relação
alguma commodity e é afirmado quando usado como um meio de circulação. Segue-se
portanto que a hegemonia do dólar é baseada sobre o seu papel como um meio de
circulação em transações internacionais. Qualquer deslocamento do dólar deste
papel implicaria uma contestação desta hegemonia. E é precisamente isto o medo
quando são impostas sanções sobre um grande número de países, que então começam
arranjos alternativos.
Na
verdade, as sanções não são a única razão pela qual o dólar pode ser deslocado
do seu papel hegemónico. Muito países desejosos de se livrarem desta hegemonia,
ou simplesmente desejosos de expandir suas oportunidades comerciais, podem
voluntariamente entrar em arranjos em que o dólar é excluído do seu papel como
meio de circulação. Nos tempos da União Soviética o acordo bilateral de
comércio que a Índia tinha com os soviéticos não era devido a qualquer
compulsão induzida por sanções para ultrapassar o regime de hegemonia do dólar.
Era motivado simplesmente pelo desejo de expandir o comércio para além do que
era possível dentro do regime de hegemonia do dólar. Não surpreendentemente,
ideólogos neoliberais travaram uma luta ideológica implacável contra tais
acordos bilaterais, a fim de remover quaisquer potenciais desafios à hegemonia
do dólar. Eles, em resumo, tinham uma agenda ideológica ao passo que os acordos
de comércio bilateral não tinham. Mesmo agora, a China e o Brasil estabeleceram
um acordo em que o comércio mútuo será efetuado nas suas respectivas divisas,
embora nenhum dos dois tenha quaisquer sanções americanas impostas contra si.
Da
mesma forma, Dilma Rousseff, a ex-presidente do Brasil que acaba de ser nomeada
presidente do banco dos BRICS, anunciou que entre 2022 e 2026, 30 por cento dos
empréstimos a serem concedidos por este banco aos países membros será nas
divisas locais. Isto com o objetivo geral de desdolarizar estas economias, não
por causa de quaisquer compulsões específicas.
Convém
aqui recordar as vantagens que a hegemonia do dólar confere aos Estados Unidos.
Há duas vantagens óbvias: primeiro, com o dólar como a divisa de reserva, os
EUA não têm de se preocupar acerca de quaisquer problemas de balança de
pagamentos, ao contrário dos demais países. Assim, pode liquidar seus
pagamentos pela emissão de compromissos de dívida (IOU, I owe you) para outros
países que os manteriam, uma vez que estes IOUs denominados em dólares são uma
forma segura de manter riqueza. Por esta razão, consegue estimular, e estimula,
a economia mundial. Em segundo lugar, e também por esta mesma razão, a
atividade dos bancos americanos aumenta muito. É verdade que as transações em
dólares não se limitam apenas a bancos americanos; mas não há dúvida de que os
bancos dos EUA são os maiores beneficiários quando o dólar é o meio de
circulação no comércio mundial.
Mas,
para além destes factores óbvios, há uma vantagem mais básica que beneficia o
mundo capitalista metropolitano no seu conjunto devido à hegemonia do dólar, a
saber: permite ao sistema impor uma compressão do rendimento – e portanto da
procura – aos países produtores de bens primários do terceiro mundo a fim de
assegurar uma oferta crescente de commodities primárias para atender a procura
metropolitana sem quaisquer aumentos dos seus preços – mesmo quando a produção
dessas commodities não aumenta em medida significativa.
Este
processo funciona da seguinte forma. Quando há um excesso de procura por uma
commodity primária produzida no terceiro mundo, o seu preço aumenta em termos
de moeda local. Isto cria expectativas de uma depreciação da sua taxa de câmbio
em relação à divisa de reserva mundial, precisamente porque esta divisa é
diferente da divisa de reserva. Isto desencadeia uma fuga de capitais daquela
economia particular do terceiro mundo para a metrópole, provocando uma
desvalorização efetiva da divisa, em resposta à qual o país aumenta a sua taxa
de juro e adota medidas de “austeridade”. Estas medidas provocam uma diminuição
dos rendimentos locais e portanto na absorção local daquela commodity
particular e também de outras commodities das quais a terra possa ser desviada
rumo àquela commodity específica. Assim, a commodity primária escassa é tornada
disponível para a metrópole em quantidades adequadas, eliminando o excesso de
procura original e restabelecendo o preço original.
Conclui-se
que o arranjo de divisas que prevalece no mundo capitalista alcança o mesmo
objetivo que o exercício da coerção direta no período colonial, ou seja,
extorquir matérias-primas do terceiro mundo a preços não crescentes através da
compressão da absorção local. O arranjo monetário contemporâneo é, em suma, uma
expressão do imperialismo. Daqui também decorre que a divisa de qualquer país
do terceiro mundo que produz uma commodity primária, ou um grupo deles, não
pode ser a divisa hegemónica, sem prejudicar toda esta estrutura imperialista
e, portanto, a estabilidade do capitalismo contemporâneo nela assente. A
hegemonia do dólar é uma parte crucial deste arranjo monetário.
O
movimento rumo à desdolarização que testemunhamos atualmente ataca, portanto,
as raízes desta hegemonia metropolitana. Não se trata apenas de uma questão de
ter um arranjo de divisas substituindo outro. Trata-se de uma questão da
estabilidade de todo o sistema o qual está baseado na hegemonia metropolitana e
é executado às expensas dos povos do terceiro mundo. Eis porque serão feitas
tentativas furiosas – não só pelos Estados Unidos mas por todo o mundo capitalista
metropolitano – para impedir a desdolarização. E estas tentativas podem mesmo
envolver a utilização de coerção não económica contra regimes que trabalham
para essa desdolarização.
A
tentativa de desdolarização é, em suma, a expressão da crise atual do
capitalismo e, por esta mesma razão, faz ressaltar a sua absoluta crueldade.
Prabhat Patnaik é um economista indiano de
orientação marxista-leninista. Entre seus livros estão Accumulation and
Stability Under Capitalism (1997), The Value of Money (2009), e Re-envisioning
Socialism (2011).
As pedras se tocam, tudo se relaciona https://bit.ly/3Ye45TD
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