O que revela a compra do Twitter
Após três décadas de desenvolvimento espetacular da internet,
a utopia libertária da rede mundial é a partir de agora reivindicada pela
extrema direita norte-americana, em detrimento de uma esquerda – legitimamente
preocupada em proteger os vulneráveis contra os ultrajantes discursos
extremistas – que abandona às empresas capitalistas a tarefa de regulamentar as
redes
Sébastien Broca/Le Monde Diplomatique
O dilúvio de condenações que acompanhou a compra do Twitter
pelo bilionário Elon Musk sugere que o interesse pela transação ultrapassou o
debate sobre destino em si de uma rede social valorizada pelas elites. O
desenrolar da plataforma de microblog representa um indicador do futuro do
discurso on-line. Mais ainda, as controvérsias estimuladas pelo novo dono
demonstram que a regulamentação da liberdade de expressão se tornou uma questão
conflituosa, particularmente nos Estados Unidos.
Vamos rebobinar. Na primavera de 2022, Musk justificou
a aquisição dessa empresa pouco lucrativa (US$ 270 milhões de déficit líquido
no segundo trimestre de 2022) por sua vontade de proteger a liberdade de
expressão, “fundamento de uma democracia que funciona”. Ele declarou querer
limitar a moderação dos conteúdos ao mínimo exigido pela lei (dos Estados
Unidos) e apresentou o Twitter como “a praça pública digital onde são debatidas
questões vitais para o futuro da humanidade”.1 Quando comprou o Twitter,
ele demitiu por e-mail metade dos assalariados e rompeu o contrato com mais de
4 mil prestadores externos de serviço, encarregados em especial da moderação de
conteúdo. Musk restabeleceu em seguida numerosas contas desativadas, entre as
quais a de Donald Trump, renunciou à política de luta contra a desinformação
estabelecida durante a pandemia de Covid-19, suspendeu durante algumas horas as
contas de jornalistas que lhe desagradavam e fez vazar documentos que expunham
a maneira pela qual os executivos da empresa colaboravam, sob a antiga direção,
com os serviços de inteligência dos Estados Unidos.
Para além dessas decisões erráticas e brutais, a evolução do
Twitter levanta uma questão intrigante: por que um bilionário autoritário pode,
hoje em dia, fazer-se de campeão da liberdade de expressão, essa bandeira
histórica da esquerda? Independentemente do que se pense da sinceridade do
comprometimento de Musk, uma constatação permanece: doravante, a direita e a
extrema direita norte-americanas dominam nessa causa, beneficiando-se do espaço
vazio deixado por grande parte dos progressistas.
Para compreender essa reviravolta, é necessário retornar à
maneira pela qual os Estados Unidos regulamentam a expressão on-line. A esse
respeito, o texto crucial é a seção 230 do Communication Decency Act (CDA),
votado em 1996 sob a presidência de Bill Clinton. O texto definiu as
responsabilidades das plataformas. Ou, antes, sua ausência de
responsabilidades, uma vez que, de acordo com a legislação, as empresas não
podem ser consideradas autoras ou editoras dos discursos colocados on-line por
seus usuários. Em resumo, se alguém realiza uma postagem ilegal, o Twitter não
tem de responder por isso – salvo em casos específicos, como nas infrações que
dizem respeito ao direito penal. A seção 230 torna claro em seguida que as
plataformas tampouco podem ser questionadas pela postagem e filtragem de certos
conteúdos, a partir do momento em que sua boa-fé é estabelecida. Em outras
palavras, suas ações de moderação e de curadoria não colocam em questão sua
irresponsabilidade em relação a conteúdos postados por terceiros. Mais ainda,
essas ações editoriais são protegidas pela Primeira Emenda da Constituição dos
Estados Unidos, que garante os atores privados contra qualquer exigência de
neutralidade imposta pelos poderes públicos. Com base nesse fato, as
interfaces, as escolhas algorítmicas e as práticas de moderação das plataformas
são em geral interpretadas como tendo uma dimensão expressiva, quer dizer, como
“discursos” protegidos pela Primeira Emenda. Em suma, quando o Twitter suprime
um conteúdo postado por um usuário, a empresa exerce seu próprio direito à
liberdade de expressão.
O tiro saiu pela culatra
Para as grandes plataformas, a seção 230 representou
uma bênção. Em matéria de moderação, ela oferece imunidade em todos os casos,
quando não fazem nada ou, ao contrário, quando agem vigorosamente. Ela as
dispensou das responsabilidades que recaem classicamente sobre a mídia – sobre
os editores de jornais, por exemplo. E não estabeleceu que se comportassem de
maneira neutra, como simples operadores de telecomunicação. As plataformas
ganharam assim o direito, mas não a responsabilidade, de moderar as postagens
formuladas por seus usuários.2
Ainda que tal regime possa parecer desequilibrado,
durante muito tempo ele não foi objeto de nenhuma contestação. Foi
constantemente defendido pelo Silicon Valley, mas também pelas principais
organizações de proteção das liberdades civis, como a American Civil Liberties
Union (Aclu) e a Electronic Frontier Foundation (EFF). Seus argumentos? Tornar
as plataformas responsáveis pelas mensagens postadas por terceiros as levaria a
suprimir preventivamente numerosíssimos conteúdos, ao passo que impor-lhes uma
obrigação de neutralidade violaria a Primeira Emenda. Dado que evita esses dois
obstáculos que ameaçam a liberdade de expressão, a seção 230 pôde ser vista
como “uma das únicas boas leis sobre tecnologia que o Congresso dos Estados
Unidos adotou até hoje”.3
Em 2017, o início da presidência de Trump rompeu esse
consenso e transformou a seção 230 em questão política nacional. A exaltação da
liberdade de expressão tornou-se um leitmotiv dos
republicanos. A “direita alternativa” (alt-right) criou suas próprias
redes. Gab em 2016 e Parler em 2018 acolheram usuários majoritariamente adeptos
das teses de Trump e se apresentaram como bastiões da liberdade de expressão, o
que lhes permitiu difundir discursos abertamente racistas, misóginos e
xenófobos.
As grandes plataformas, por sua vez, são objeto de
críticas constantes da parte dos republicanos, que as acusam de viés
pró-democratas e censura abusiva. Trump ameaçou em diversas ocasiões suprimir a
seção 230, sem que essas fanfarronices fossem seguidas por medidas efetivas. Em
2020, diante do Congresso, o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, resumiu a
situação: “Os democratas nos acusam de não moderar o suficiente; os
republicanos, de moderar em demasia”.4 A controvérsia conheceu o auge após
o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O evento levou o Twitter, o
Facebook e o Snapchat a fechar ou a suspender as contas do presidente em
exercício e de numerosos partidários seus ligados ao movimento de extrema
direita QAnon. Google e Apple removeram o aplicativo Parler de suas lojas
on-line, enquanto os Amazon Web Services recusaram-se a continuar a abrigar a
rede social alternativa, argumentando que ela representava um perigo para a
ordem pública.
Dois Estados republicanos, a Flórida e o Texas,
responderam poucos meses depois adotando leis (Florida Senate Bill 7072 e Texas
House Bill 20) que colocaram em xeque as disposições essenciais da seção 230.
Esses textos visam dissuadir as grandes plataformas de suspender certas contas
e de moderar conteúdos, expondo-as a processos judiciais da parte dos
internautas que se considerarem “censurados”. O objetivo é obrigar as
principais plataformas da web (as duas leis se aplicam exclusivamente àquelas
com grande número de usuários) a veicular todos os conteúdos sem preconceito,
submetendo-as a uma obrigação de neutralidade comparável à dos operadores de
telecomunicações. A perspectiva é igualmente defendida na Corte Suprema pelo
juiz ultraconservador Clarence Thomas, que lamenta que “o direito de censurar a
expressão [seja] detido essencialmente por plataformas digitais privadas”.5
Na medida em que contradizem a seção 230, as leis da
Flórida e do Texas foram rapidamente contestadas perante os tribunais pelas
grandes empresas tecnológicas. Estas argumentaram que seria inconstitucional
impor-lhes uma estrita obrigação de neutralidade, na medida em que a Primeira
Emenda protege sua liberdade editorial.6 À espera de que a Corte Suprema
se ocupe da questão, como permanece à espera a maior parte dos observadores, as
leis da Flórida e do Texas ilustram a virada de 180 graus operada pelos
republicanos. Até o fim dos anos 2010, a direita dos Estados Unidos sustentava
que a liberdade de expressão dos indivíduos e a liberdade de expressão das
empresas caminhavam de mãos dadas. Ela considerava que a mídia privada, em
virtude de seus direitos de propriedade e da Primeira Emenda, devia ter toda a
liberdade para escolher os discursos que difundisse. Ao tentar sujeitar as
redes sociais a uma neutralidade maior, a direita tornada “trumpista” rompeu
com uma herança ideológica, que passou a contestar. Ela admitiu implicitamente
que as empresas privadas não deveriam ter a liberdade absoluta de decidir sobre
os discursos que difundem – ou seja, uma posição historicamente associada aos
democratas!
A reviravolta ideológica da direita norte-americana
refletiu transformações do campo progressista. Durante os anos 2010, a
desinformação e os discursos de ódio conduziram universitários, militantes e
líderes políticos a fustigar a inércia das grandes plataformas. Eles exigiam
que essas empresas reforçassem sua capacidade de moderação, com o objetivo de
proteger os interlocutores vulneráveis. A luta pela máxima liberdade de
expressão deixou então de ser uma causa progressista, passando a ser percebida
como um meio de fazer calar as mulheres e as minorias por meio da perseguição
on-line, de ameaças e da difusão em escala industrial de notícias falsas. O
pesquisador universitário Tim Wu, que faz parte da administração Biden,
salienta que “os zeladores dos canais abertos e não filtrados de expressão
on-line (entre os quais me incluo) viram o tiro sair pela culatra, na medida em
que esses canais são utilizados hoje em dia como armas contra os interlocutores
desfavorecidos”.7 O liberalismo político clássico, encarnado pelas grandes
organizações de defesa das liberdades civis, é acusado de reduzir os mais
vulneráveis ao silêncio e de preparar a cama para a direita identitária.
Essas transformações ideológicas apareceram à luz do
dia após os distúrbios do Capitólio em janeiro de 2021. A Aclu e os
republicanos denunciaram então, em termos semelhantes, o poder sem limites das
Big Techs. Personalidades provenientes da esquerda encontraram-se associadas ao
campo conservador. Foi o caso do jornalista Glenn Greenwald, que publicou as
revelações de Edward Snowden sobre a atuação dos serviços secretos dos Estados
Unidos. Crítico virulento da censura, da “cultura do cancelamento” e da
complacência dos democratas para com o poder do Silicon Valley, ele
tornou-se persona non grata da esquerda desde que multiplicou
suas aparições nas transmissões do apresentador conservador-libertário e
xenófobo Tucker Carlson na Fox News. Greenwald realizou em 2022 uma transmissão
na plataforma Rumble, financiada pelo empresário libertário Peter
Thiel.8 Essa trajetória dá testemunho tanto do interesse ostensivo da
direita em “comprar” a liberdade de expressão como da “desmonetização” desse
valor entre os progressistas.
Poder privado
A esquerda dos Estados Unidos encontrou-se então em um
impasse. Sua vontade legítima de proteger os interlocutores desfavorecidos foi
paga pela renúncia a contestar o poder das grandes plataformas. Os
progressistas encorajaram os gigantes do digital a intervir mais para proteger
as minorias e garantir a qualidade do debate público, mas não analisaram
verdadeiramente a fundo a escolha de confiar essa missão essencial a um
oligopólio capitalista. Assim, “os liberais, em sua pressa em agir contra a
desinformação, transformaram-se nos advogados do poder das plataformas, pelo
menos quando esse poder serve para colocar off-line discursos percebidos como
perigosos”.9 O debate público nos Estados Unidos assumiu assim aspectos confusos:
enquanto, a partir de agora, a direita quer submeter pela lei as empresas que
controlam a expressão on-line, a esquerda aceitou delegar a estas os cuidados
com a proteção dos interlocutores desfavorecidos. Desse modo, os progressistas
perderam nos dois tabuleiros. Eles permitiram a seus adversários se apropriar a
um só tempo da defesa da liberdade de expressão e da exigência de uma
regulamentação mais vigilante do Silicon Valley pelos poderes públicos.
O que nos diz finalmente o Twitter de Musk? Para começar,
ele coloca em evidência quanto três décadas de inércia na regulamentação
favoreceram a exacerbação do poder privado sobre a expressão on-line. A compra
da rede do pássaro azul é igualmente emblemática da recuperação pela extrema
direita norte-americana da utopia da internet enquanto espaço em que triunfaria
uma liberdade máxima de expressão. Essa aliança entre o hiperliberalismo e o
hiperconservadorismo é, no entanto, minada pela contradição entre o puritanismo
moral da direita religiosa e a promoção de um espaço público desregulamentado,
onde todos os discursos poderiam circular: a utopia libertária da internet não
é totalmente solúvel nos valores conservadores. Finalmente, os debates em torno
do Twitter enfatizam quanto é difícil conciliar a defesa da liberdade de
expressão e a proteção dos interlocutores desfavorecidos enquanto a expressão
on-line permanecer controlada por um punhado de atores capitalistas.
*Sébastien Broca é professor e pesquisador
em Ciência da Informação e da Comunicação da Universidade Paris 8. Autor
de L’Utopie du logiciel libre [A utopia do software livre], Le
Passager Clandestin, Paris, 2018.
1 Twitter, 25 abr. 2022.
2 Cf. Tarleton Gillespie, Custodians of the
Internet. Platforms, content moderation, and the hidden decisions that shape
social media [Vigias da internet. Plataformas, moderação de conteúdo e
as decisões ocultas que moldam a mídia social], Yale University Press, New
Haven, 2018.
3 Cory Doctorow, “Zuckerpunch”, Pluralistic, 25 mar.
2021.
4 Mark Zuckerberg, citado por Damien Leloup, “Devant
le Sénat américain, les patrons de Google, Twitter et Facebook ont dû répondre
aux accusations de biais anticonservateur” [Perante o Senado dos Estados
Unidos, os donos do Google, Twitter e Facebook são obrigados a responder às
acusações de viés anticonservador], Le Monde, 28 out. 2020.
5 Citado por Bobby Allyn, “Justice
Clarence Thomas Takes Aim at Tech and Its Power ‘To Cut Off Speech’” [O
juiz da Corte Suprema Clarence Thomas mira nas techs e em seu poder de “cortar
o discurso”], National Public Radio (NPR), 5 abr. 2021.
6 Cf. Corte de Apelação dos Estados Unidos para o 11º
circuito, NetChoice LLC v. Attorney General, Estado da Flórida,
n.21-12355, 8 nov. 2021.
7 Tim Wu, “Is the First Amendment Obsolete?” [A
Primeira Emenda está obsoleta?], Michigan Law Review, Ann Arbor,
v.117, n.3, 2018.
8 Cf. Zeeshan Aleem, “How the populist left has become
vulnerable to the populist right” [Como a esquerda populista tornou-se
vulnerável para a direita populista], MSNBC, 9 jan. 2023.
9 Evelyn Douek e Genevieve Lakier, “Rereading the
First Amendment” [Relendo a Primeira Emenda], Knight First Amendment Institute,
18 maio 2022.
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