12 maio 2023

Inversão de valores nas redes

O que revela a compra do Twitter

Após três décadas de desenvolvimento espetacular da internet, a utopia libertária da rede mundial é a partir de agora reivindicada pela extrema direita norte-americana, em detrimento de uma esquerda – legitimamente preocupada em proteger os vulneráveis contra os ultrajantes discursos extremistas – que abandona às empresas capitalistas a tarefa de regulamentar as redes
Sébastien Broca/Le Monde Diplomatique


O dilúvio de condenações que acompanhou a compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk sugere que o interesse pela transação ultrapassou o debate sobre destino em si de uma rede social valorizada pelas elites. O desenrolar da plataforma de microblog representa um indicador do futuro do discurso on-line. Mais ainda, as controvérsias estimuladas pelo novo dono demonstram que a regulamentação da liberdade de expressão se tornou uma questão conflituosa, particularmente nos Estados Unidos.
Vamos rebobinar. Na primavera de 2022, Musk justificou a aquisição dessa empresa pouco lucrativa (US$ 270 milhões de déficit líquido no segundo trimestre de 2022) por sua vontade de proteger a liberdade de expressão, “fundamento de uma democracia que funciona”. Ele declarou querer limitar a moderação dos conteúdos ao mínimo exigido pela lei (dos Estados Unidos) e apresentou o Twitter como “a praça pública digital onde são debatidas questões vitais para o futuro da humanidade”.1 Quando comprou o Twitter, ele demitiu por e-mail metade dos assalariados e rompeu o contrato com mais de 4 mil prestadores externos de serviço, encarregados em especial da moderação de conteúdo. Musk restabeleceu em seguida numerosas contas desativadas, entre as quais a de Donald Trump, renunciou à política de luta contra a desinformação estabelecida durante a pandemia de Covid-19, suspendeu durante algumas horas as contas de jornalistas que lhe desagradavam e fez vazar documentos que expunham a maneira pela qual os executivos da empresa colaboravam, sob a antiga direção, com os serviços de inteligência dos Estados Unidos. 
Para além dessas decisões erráticas e brutais, a evolução do Twitter levanta uma questão intrigante: por que um bilionário autoritário pode, hoje em dia, fazer-se de campeão da liberdade de expressão, essa bandeira histórica da esquerda? Independentemente do que se pense da sinceridade do comprometimento de Musk, uma constatação permanece: doravante, a direita e a extrema direita norte-americanas dominam nessa causa, beneficiando-se do espaço vazio deixado por grande parte dos progressistas.
Para compreender essa reviravolta, é necessário retornar à maneira pela qual os Estados Unidos regulamentam a expressão on-line. A esse respeito, o texto crucial é a seção 230 do Communication Decency Act (CDA), votado em 1996 sob a presidência de Bill Clinton. O texto definiu as responsabilidades das plataformas. Ou, antes, sua ausência de responsabilidades, uma vez que, de acordo com a legislação, as empresas não podem ser consideradas autoras ou editoras dos discursos colocados on-line por seus usuários. Em resumo, se alguém realiza uma postagem ilegal, o Twitter não tem de responder por isso – salvo em casos específicos, como nas infrações que dizem respeito ao direito penal. A seção 230 torna claro em seguida que as plataformas tampouco podem ser questionadas pela postagem e filtragem de certos conteúdos, a partir do momento em que sua boa-fé é estabelecida. Em outras palavras, suas ações de moderação e de curadoria não colocam em questão sua irresponsabilidade em relação a conteúdos postados por terceiros. Mais ainda, essas ações editoriais são protegidas pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante os atores privados contra qualquer exigência de neutralidade imposta pelos poderes públicos. Com base nesse fato, as interfaces, as escolhas algorítmicas e as práticas de moderação das plataformas são em geral interpretadas como tendo uma dimensão expressiva, quer dizer, como “discursos” protegidos pela Primeira Emenda. Em suma, quando o Twitter suprime um conteúdo postado por um usuário, a empresa exerce seu próprio direito à liberdade de expressão.

O tiro saiu pela culatra

Para as grandes plataformas, a seção 230 representou uma bênção. Em matéria de moderação, ela oferece imunidade em todos os casos, quando não fazem nada ou, ao contrário, quando agem vigorosamente. Ela as dispensou das responsabilidades que recaem classicamente sobre a mídia – sobre os editores de jornais, por exemplo. E não estabeleceu que se comportassem de maneira neutra, como simples operadores de telecomunicação. As plataformas ganharam assim o direito, mas não a responsabilidade, de moderar as postagens formuladas por seus usuários.2
Ainda que tal regime possa parecer desequilibrado, durante muito tempo ele não foi objeto de nenhuma contestação. Foi constantemente defendido pelo Silicon Valley, mas também pelas principais organizações de proteção das liberdades civis, como a American Civil Liberties Union (Aclu) e a Electronic Frontier Foundation (EFF). Seus argumentos? Tornar as plataformas responsáveis pelas mensagens postadas por terceiros as levaria a suprimir preventivamente numerosíssimos conteúdos, ao passo que impor-lhes uma obrigação de neutralidade violaria a Primeira Emenda. Dado que evita esses dois obstáculos que ameaçam a liberdade de expressão, a seção 230 pôde ser vista como “uma das únicas boas leis sobre tecnologia que o Congresso dos Estados Unidos adotou até hoje”.3
Em 2017, o início da presidência de Trump rompeu esse consenso e transformou a seção 230 em questão política nacional. A exaltação da liberdade de expressão tornou-se um leitmotiv dos republicanos. A “direita alternativa” (alt-right) criou suas próprias redes. Gab em 2016 e Parler em 2018 acolheram usuários majoritariamente adeptos das teses de Trump e se apresentaram como bastiões da liberdade de expressão, o que lhes permitiu difundir discursos abertamente racistas, misóginos e xenófobos. 
As grandes plataformas, por sua vez, são objeto de críticas constantes da parte dos republicanos, que as acusam de viés pró-democratas e censura abusiva. Trump ameaçou em diversas ocasiões suprimir a seção 230, sem que essas fanfarronices fossem seguidas por medidas efetivas. Em 2020, diante do Congresso, o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, resumiu a situação: “Os democratas nos acusam de não moderar o suficiente; os republicanos, de moderar em demasia”.4 A controvérsia conheceu o auge após o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O evento levou o Twitter, o Facebook e o Snapchat a fechar ou a suspender as contas do presidente em exercício e de numerosos partidários seus ligados ao movimento de extrema direita QAnon. Google e Apple removeram o aplicativo Parler de suas lojas on-line, enquanto os Amazon Web Services recusaram-se a continuar a abrigar a rede social alternativa, argumentando que ela representava um perigo para a ordem pública. 
Dois Estados republicanos, a Flórida e o Texas, responderam poucos meses depois adotando leis (Florida Senate Bill 7072 e Texas House Bill 20) que colocaram em xeque as disposições essenciais da seção 230. Esses textos visam dissuadir as grandes plataformas de suspender certas contas e de moderar conteúdos, expondo-as a processos judiciais da parte dos internautas que se considerarem “censurados”. O objetivo é obrigar as principais plataformas da web (as duas leis se aplicam exclusivamente àquelas com grande número de usuários) a veicular todos os conteúdos sem preconceito, submetendo-as a uma obrigação de neutralidade comparável à dos operadores de telecomunicações. A perspectiva é igualmente defendida na Corte Suprema pelo juiz ultraconservador Clarence Thomas, que lamenta que “o direito de censurar a expressão [seja] detido essencialmente por plataformas digitais privadas”.5
Na medida em que contradizem a seção 230, as leis da Flórida e do Texas foram rapidamente contestadas perante os tribunais pelas grandes empresas tecnológicas. Estas argumentaram que seria inconstitucional impor-lhes uma estrita obrigação de neutralidade, na medida em que a Primeira Emenda protege sua liberdade editorial.6 À espera de que a Corte Suprema se ocupe da questão, como permanece à espera a maior parte dos observadores, as leis da Flórida e do Texas ilustram a virada de 180 graus operada pelos republicanos. Até o fim dos anos 2010, a direita dos Estados Unidos sustentava que a liberdade de expressão dos indivíduos e a liberdade de expressão das empresas caminhavam de mãos dadas. Ela considerava que a mídia privada, em virtude de seus direitos de propriedade e da Primeira Emenda, devia ter toda a liberdade para escolher os discursos que difundisse. Ao tentar sujeitar as redes sociais a uma neutralidade maior, a direita tornada “trumpista” rompeu com uma herança ideológica, que passou a contestar. Ela admitiu implicitamente que as empresas privadas não deveriam ter a liberdade absoluta de decidir sobre os discursos que difundem – ou seja, uma posição historicamente associada aos democratas!
A reviravolta ideológica da direita norte-americana refletiu transformações do campo progressista. Durante os anos 2010, a desinformação e os discursos de ódio conduziram universitários, militantes e líderes políticos a fustigar a inércia das grandes plataformas. Eles exigiam que essas empresas reforçassem sua capacidade de moderação, com o objetivo de proteger os interlocutores vulneráveis. A luta pela máxima liberdade de expressão deixou então de ser uma causa progressista, passando a ser percebida como um meio de fazer calar as mulheres e as minorias por meio da perseguição on-line, de ameaças e da difusão em escala industrial de notícias falsas. O pesquisador universitário Tim Wu, que faz parte da administração Biden, salienta que “os zeladores dos canais abertos e não filtrados de expressão on-line (entre os quais me incluo) viram o tiro sair pela culatra, na medida em que esses canais são utilizados hoje em dia como armas contra os interlocutores desfavorecidos”.7 O liberalismo político clássico, encarnado pelas grandes organizações de defesa das liberdades civis, é acusado de reduzir os mais vulneráveis ao silêncio e de preparar a cama para a direita identitária. 
Essas transformações ideológicas apareceram à luz do dia após os distúrbios do Capitólio em janeiro de 2021. A Aclu e os republicanos denunciaram então, em termos semelhantes, o poder sem limites das Big Techs. Personalidades provenientes da esquerda encontraram-se associadas ao campo conservador. Foi o caso do jornalista Glenn Greenwald, que publicou as revelações de Edward Snowden sobre a atuação dos serviços secretos dos Estados Unidos. Crítico virulento da censura, da “cultura do cancelamento” e da complacência dos democratas para com o poder do Silicon Valley, ele tornou-se persona non grata da esquerda desde que multiplicou suas aparições nas transmissões do apresentador conservador-libertário e xenófobo Tucker Carlson na Fox News. Greenwald realizou em 2022 uma transmissão na plataforma Rumble, financiada pelo empresário libertário Peter Thiel.8 Essa trajetória dá testemunho tanto do interesse ostensivo da direita em “comprar” a liberdade de expressão como da “desmonetização” desse valor entre os progressistas.

Poder privado

A esquerda dos Estados Unidos encontrou-se então em um impasse. Sua vontade legítima de proteger os interlocutores desfavorecidos foi paga pela renúncia a contestar o poder das grandes plataformas. Os progressistas encorajaram os gigantes do digital a intervir mais para proteger as minorias e garantir a qualidade do debate público, mas não analisaram verdadeiramente a fundo a escolha de confiar essa missão essencial a um oligopólio capitalista. Assim, “os liberais, em sua pressa em agir contra a desinformação, transformaram-se nos advogados do poder das plataformas, pelo menos quando esse poder serve para colocar off-line discursos percebidos como perigosos”.9 O debate público nos Estados Unidos assumiu assim aspectos confusos: enquanto, a partir de agora, a direita quer submeter pela lei as empresas que controlam a expressão on-line, a esquerda aceitou delegar a estas os cuidados com a proteção dos interlocutores desfavorecidos. Desse modo, os progressistas perderam nos dois tabuleiros. Eles permitiram a seus adversários se apropriar a um só tempo da defesa da liberdade de expressão e da exigência de uma regulamentação mais vigilante do Silicon Valley pelos poderes públicos. 
O que nos diz finalmente o Twitter de Musk? Para começar, ele coloca em evidência quanto três décadas de inércia na regulamentação favoreceram a exacerbação do poder privado sobre a expressão on-line. A compra da rede do pássaro azul é igualmente emblemática da recuperação pela extrema direita norte-americana da utopia da internet enquanto espaço em que triunfaria uma liberdade máxima de expressão. Essa aliança entre o hiperliberalismo e o hiperconservadorismo é, no entanto, minada pela contradição entre o puritanismo moral da direita religiosa e a promoção de um espaço público desregulamentado, onde todos os discursos poderiam circular: a utopia libertária da internet não é totalmente solúvel nos valores conservadores. Finalmente, os debates em torno do Twitter enfatizam quanto é difícil conciliar a defesa da liberdade de expressão e a proteção dos interlocutores desfavorecidos enquanto a expressão on-line permanecer controlada por um punhado de atores capitalistas.
 
*Sébastien Broca é professor e pesquisador em Ciência da Informação e da Comunicação da Universidade Paris 8. Autor de L’Utopie du logiciel libre [A utopia do software livre], Le Passager Clandestin, Paris, 2018.
 
1 Twitter, 25 abr. 2022.
2 Cf. Tarleton Gillespie, Custodians of the Internet. Platforms, content moderation, and the hidden decisions that shape social media [Vigias da internet. Plataformas, moderação de conteúdo e as decisões ocultas que moldam a mídia social], Yale University Press, New Haven, 2018.
3 Cory Doctorow, “Zuckerpunch”, Pluralistic, 25 mar. 2021.
4 Mark Zuckerberg, citado por Damien Leloup, “Devant le Sénat américain, les patrons de Google, Twitter et Facebook ont dû répondre aux accusations de biais anticonservateur” [Perante o Senado dos Estados Unidos, os donos do Google, Twitter e Facebook são obrigados a responder às acusações de viés anticonservador], Le Monde, 28 out. 2020. 
5 Citado por Bobby Allyn, “Justice Clarence Thomas Takes Aim at Tech and Its Power ‘To Cut Off Speech’” [O juiz da Corte Suprema Clarence Thomas mira nas techs e em seu poder de “cortar o discurso”], National Public Radio (NPR), 5 abr. 2021.
6 Cf. Corte de Apelação dos Estados Unidos para o 11º circuito, NetChoice LLC v. Attorney General, Estado da Flórida, n.21-12355, 8 nov. 2021.
7 Tim Wu, “Is the First Amendment Obsolete?” [A Primeira Emenda está obsoleta?], Michigan Law Review, Ann Arbor, v.117, n.3, 2018.
8 Cf. Zeeshan Aleem, “How the populist left has become vulnerable to the populist right” [Como a esquerda populista tornou-se vulnerável para a direita populista], MSNBC, 9 jan. 2023. 
9 Evelyn Douek e Genevieve Lakier, “Rereading the First Amendment” [Relendo a Primeira Emenda], Knight First Amendment Institute, 18 maio 2022.
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