“É preciso desenvolver a economia complementar na América Latina”.
Entrevista com Pepe Mujica
Unisinos
Pepe
Mujica se descreve como um lutador social e político.
Multidões de correligionários, jornalistas e intelectuais o visitam em sua
casa, em Montevidéu, para realizar consultas. É também um assíduo visitante de
Buenos Aires. O ex-presidente uruguaio chegou à capital argentina acompanhado
de Lucía Topolansky. O líder recebe o jornal Página 12 na casa da ex-cônsul Lilian Alfaro, no bairro Colegiales, após um encontro com o
ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera.
Referência histórica da Frente Ampla, sempre tem à mão alguma palavra interiorana, que brota de sua vida no rural muito antes de ser guerrilheiro, quando aos 14 anos vendia flores para ajudar sua mãe. Mujica fala da crise do Estado-nação, dos cantos de sereia ouvidos por um eleitor desesperado e do antídoto que encontrou para o povo latino-americano: a integração.
“Argentina, Chile, Bolívia e Peru precisam se unir e estabelecer uma política comum para
defender o lítio”, defende. O veterano político de esquerda, ávido leitor, há
meses estuda a história da China e as ideias de Confúcio, consciente da importância geopolítica do gigante asiático.
A
entrevista é de Mercedes
López San Miguel, publicada por Página/12, 16-05-2023. A
tradução é do Cepat.
Eis a
entrevista.
Neste ano,
há eleições na Argentina. Por que depois da má experiência de Mauricio Macri, o
macrismo mais extremo e a ultradireita de Javier Milei têm chances de vencer?
Não sou sociólogo, apenas um
lutador social e político. Penso que o povo argentino sofreu muito e vive uma
crise de esperança muito forte. Tem gente que sonha com soluções mágicas,
porque assim tem sido o comportamento humano na história. Lembremo-nos do que
aconteceu na Alemanha, nos anos 1930, quando Hitler enganou uma
parte importante de um povo desesperado, porque as condições impostas com
o Tratado de Versalhes eram
insuportáveis. O mesmo aconteceu com outros povos.
As pessoas se apaixonam por cantos
de sereia. Eu sei que na vida o impossível custa um pouco mais. Sei que a Argentina avançará
porque o prêmio e a desgraça é a abundância de recursos naturais. Mas o
que aconteceu com a França revolucionária? Toda uma série de velhos partidos
estiveram à beira do desaparecimento, chegou Emmanuel Macron e,
logo a seguir, surgiram os coletes amarelos.
Amanhã mudará, porque há uma crise civilizatória na
base, o Estado-nação está
em crise e esta é uma mudança
de época brutal que está nos sacudindo. Pedimos contas,
mas este Estado tem cada vez menos poder porque apareceram poderes
internacionais que são cada vez mais importantes.
E que
querem um Estado menor...
Tiraram o poder do Estado e agora
com a civilização digital,
mais ainda. Qualquer monstro, como o Facebook ou as multinacionais, tem mais
poder que o Estado. Os grandes circuitos
financeiros, os bancos internacionais e os grupos comerciais
lhe tiram poder. Nós cobramos de nosso Estado, ao qual passamos o serrote.
Alguns acreditam que esta é a última etapa da história. Eu não. Isso vai
ter mudanças
institucionais.
No momento, a democracia parlamentar que
conhecemos é a melhor porcaria que pudemos inventar, concordo com Churchill. Mas está cheia
de falhas e não são só as instituições, somos nós, humanos, que falhamos. Nós,
humanos, não somos deuses, temos que lidar com nossos defeitos. Isso vai mudar.
A sociedade do futuro tem
uma crise de
representação. O mundo da educação, da indústria, do direito,
penso que os governos no futuro serão compostos por muitos outros governos e os
governos centrais serão moderadores, decidindo o que não se deve fazer. Esse
panorama ainda está muito verde.
Como
alcançar uma integração regional, se cada país está lidando com tormentas
internas? Lula da Silva sofreu uma tentativa de golpe de Estado. No Chile, a
ultradireita ficou a cargo do processo constituinte...
Não vejo a integração. Estou
pensando no que vai acontecer daqui a 25 ou 30 anos e temos que aprender a nos
suportar, os de esquerda e
os de direita.
Temos que aprender a cooperar para poder competir com o mundo. Se começarmos a
pensar em termos de direita ou esquerda, jamais vamos
nos juntar. Temos que unir interesses e defendê-los. As cúpulas são exageradas.
É preciso construir outras coisas lentamente.
Você
concorda com a promoção de uma moeda comum?
Sim, mas a longo prazo. Antes,
temos que começar a comercializar com as moedas fracas que temos e que os bancos centrais façam
a arbitragem. E se não pudermos fazer isso com as moedas, fazer trocas de
valor. Não depender de moedas que são do outro lado.
Temos que uniformizar as
exigências de aduana que temos para os alimentos, ter os mesmos parâmetros em
toda a América para
facilitar. Devemos construir atividades complementares. Não vamos ter uma
indústria automotiva, mas podemos fazer pastilhas de freio. Para isso, temos
que garantir que eles comprem de nós e garantir que também compremos, em vez de
comprar carros na Coreia.
Devemos unificar nossas
universidades, não pode acontecer que um engenheiro argentino não possa ir
trabalhar no Uruguai ou
no Brasil.
Estamos loucos! A Europa e os Estados Unidos capturam a nossa inteligência.
Temos que conectar nossas energias elétricas em todos os circuitos
fronteiriços, conectar nossos serviços de saúde para certos tipos de
enfermidades. Temos que ter um mecanismo próprio.
A integração é uma política de
longo prazo. Com um nome, um símbolo e uma data, para que todas as escolas
da América Latina ensinem
que acima dos países formamos uma comunidade com interesses comuns. Não temos um
dia no qual celebramos a coletividade
latino-americana.
No ensino tem que entrar o
português e, no Brasil,
o espanhol. Temos que nos entender. Se vamos a uma conferência internacional,
primeiro temos que conversar entre nós e chegar a uma posição conjunta. Se um
latino-americano se move para algo, temos que apoiá-lo entre todos. Não ser
carneiros, que nos pisamos na mangueira! Tem coisas que são relevantes, como
o lítio.
Acredito que Argentina, Chile, Bolívia e Peru têm que se unir
e estabelecer uma política comum para defender o mineral sem se deixar
controlar. Não importa se o governo é de esquerda ou de direita. A chave é nos
defender, não competir. Juntar a pesquisa e as universidades. É preciso vontade
política para isso. Em Montevidéu, temos o Banco de Desenvolvimento da América Latina e
está funcionando.
Então,
aposta no fortalecimento do Mercosul e da Unasul?
Claro. É preciso desenvolver os
circuitos de economia
complementar. Os países menores intervêm em coisas pequenas que
servem para alimentar as cadeias industriais de coisas mais complexas, de
países maiores. Mas, por sua vez, compramos. Nós podemos fabricar algumas
coisas para Argentina e Brasil, mas depois temos
que comprar deles, juntar os interesses. É preciso ganhar e ganhar.
No
Uruguai, o partido de ultradireita Cabildo Abierto faz parte do governo de Luis
Lacalle Pou. Ou seja, já existe uma versão local que foi lançada...
É um partido conservador
nacionalista. Não é como Milei,
acredito que pode se parecer mais ao bolsonarismo.
Cabildo
Abierto apoiou iniciativas do Partido Nacional, como a lei de aposentadoria.
Considera que representa um retrocesso de direitos?
Do ponto de vista da distribuição
social, sim, é um retrocesso. Os salários não se equiparam aos de 2019. Durante
os 15 anos de governo da Frente
Ampla, os salários se ajustavam à inflação e um pouquinho mais,
sobretudo os mais baixos. As aposentadorias são corrigidas pela evolução do
índice médio. Se os salários sobem, as aposentadorias também. Havia um pretexto:
a pandemia.
Mas, a partir de 2022, as exportações foram brilhantes e nada foi feito.
A longo prazo, a reforma previdenciária é
grave. Nós pensamos que é preciso mudá-la. O presidente usou uma frase
interessante, disse que com os últimos barulhos que ocorreram para aprová-la,
acrescentaram água ao leite. Nós pensamos que é necessário colocar muito leite,
mas de vaca jersey. É preciso obter mais tributação, mais recursos.
No próximo
ano, há eleições presidenciais no Uruguai. O presidente da Frente Ampla,
Fernando Pereira, falou em recuperar a alma da Frente. Concorda? Por que apoia
o candidato Yamandú Orsi?
Conheço Yamandú há pelo
menos 25 anos. Era quase um garoto. A cidade de Canelones é como um pequeno
resumo do Uruguai.
Tem todos os problemas e possibilidades, tem pecuária, muitas chácaras, hortas,
vinhedos, indústrias, balneários, bairros marginais e cidades. Durante 10 anos,
ele foi secretário-geral da intendência e intendente de Canelones. Gerou
capacidade de governar. Veremos qual candidato a Frente Ampla escolherá.
Vamos acompanhar quem for o escolhido. Depende de nós mesmos recuperarmos o
entusiasmo. Mas o impossível custa um pouco mais, é preciso continuar lutando.
O dia 27
de junho marca os 50 anos do golpe de Estado no Uruguai. Qual é a sua reflexão
a partir de sua própria história?
São 50 anos em que uma sociedade
busca construir seu destino e sofre os problemas de uma longa dependência. Nós
somos descendentes de dois países feudais, conquistamos a independência
política, mas pagamos com o preço da dependência econômica e cultural.
Estamos lutando para sermos nós
mesmos. Sofremos a história. Somos países muito jovens. Há alguns meses, estou
estudando a história
da China, são 5.000 anos de história não escrita e 5.000 anos
de história escrita. Temos que lidar com esse mundo que está vindo sobre nós.
Considera
que é preciso avançar mais na Memória, Verdade e Justiça?
Sim, avançou-se pouco. Há um pacto de silêncio dos militares e
também da sociedade
civil. Temos que criar as condições materiais, espirituais e
ideológicas para sustentar o nunca mais.
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