A cabeça que falta
Em artigo ao Portal Vermelho, Luiz Eduardo Soares descreve a decapitação de um jovem no Alemão como símbolo de uma barbárie orquestrada. A violência vira espetáculo, a memória se perde e o Estado balbucia “guerra”.
Luiz Eduardo Soares/Vermelho 
Uma cabeça pendurada na árvore. O corpo intacto. Só a cabeça, o fruto estranho. No Sul dos Estados Unidos, pendiam das árvores os negros enforcados pela KKK. No Alemão, só a cabeça de Iago, 19 anos, trabalhador. Ornamento preservado. Iago Rodrigues era trabalhador. Policiais mantiveram seu corpo intacto. Só queriam a cabeça. Troféu de guerra. Foram mais de 120, quem se lembrará de Iago? Era uma operação policial. Quem perderá tempo com a cabeça que faltava?
Seu Robson viu outro rapaz levado ao beco, andando com dificuldade, apoiado no ombro do policial da Core. A caminhada seria curta. O policial deu alguns passos pra trás e fuzilou o número 93, ou seria o 84? Quem vai se lembrar? Seu Robson cobrou a covardia. Pediram seus documentos, anotaram a placa e arrebentaram seu carro. O recado está escrito com spray na lataria. Alguém vai denunciar à polícia a polícia? Quem vai compilar os relatos do massacre, a memória do horror?
Na mídia, o nome é operação, operação policial, segurança pública, governo do estado do Rio de Janeiro. Meus colegas, minhas colegas, nós somos ouvidos e denunciamos, vociferamos, criticamos. Educadamente, empilhamos, pela enésima vez, argumentos óbvios. Mas a mídia gosta de entretenimento e do chamado contraditório: há quem contra-argumente pra sugerir que haja controvérsia. Nós não percebemos que o falatório só aumenta o ruído e que o ruído apenas silencia o único som capaz de nos salvar: o sopro sem fim da brisa noturna no crânio do homem que pende da árvore.
As palavras voam pra lá e pra cá, ornadas com cifras e números, pra lá e pra cá, como o vento que balança a cabeça pendurada na árvore no Alemão. A cabeça de Iago resta como a peça que falta no jogo de armar, o detalhe, o pedaço do corpo, da lógica e da história que ficou de fora, sobrando na política do governador, o excedente em busca d’encaixe n’alguma explicação de autoridade, mas o que são os detalhes num banho de sangue magnífico, mais de 120 mortos, a joia da coroa da barbárie nacional?
O governador embutiu a carnificina na geopolítica trumpista. De caso pensado, falou em terror, promoveu o terror pra balbuciar “narcoterroristas”. Na véspera, membro da família real de nossa triste colônia clamou ao grande irmão do Norte que aspergisse uma gota de sua ira imperial na baía da Guanabara. O jogo está sendo jogado por caçadores de cabeça. Os fascistas precisam desesperadamente de uma saída política, e eles a buscam na morte e no medo.
[Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil]
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