Oceano
Pacífico, Nova Rota da Riqueza Global
Cláudio Carraly*
Após mais de 500 anos de hegemonia, o eixo econômico mundial está realizando sua mais profunda transformação desde as Grandes Navegações. O Oceano Atlântico, que desde o século XV serviu como a principal via de comércio e prosperidade global, gradualmente cede seu protagonismo ao Oceano Pacífico. Não se trata de uma mudança abrupta, mas de um movimento tectônico nas placas da geopolítica econômica mundial. E aqui reside o aspecto mais revelador: enquanto o Pacífico ascende, o Atlântico declina na mesma proporção, como vasos comunicantes da economia global.
Quando Cristóvão Colombo cruzou o
Atlântico em 1492 e Vasco da Gama contornou a África em 1498, inauguraram uma
era que definiria os contornos do poder mundial pelos cinco séculos seguintes.
O Atlântico tornou-se o grande lago comercial, conectando Europa, África e
Américas em uma rede de trocas que construiu impérios e definiu destinos de
nações. Foi através dessas águas que fluíram especiarias, metais preciosos,
produtos manufaturados e, tristemente, também o tráfico de pessoas
escravizadas.
O
Despertar do Pacífico e o Ocaso Relativo do Atlântico
Hoje, uma nova geografia econômica se
desenha, marcada por uma dinâmica de transferência sem precedentes. A região do
Indo-Pacífico concentra mais da metade da população mundial e uma parcela
crescente e acelerada do Produto Interno Bruto global. China, Índia, Japão,
Coreia do Sul, Indonésia, Vietnã e outros tigres asiáticos formam o que muitos
analistas já chamam de "o século asiático".
Os números revelam não apenas
crescimento, mas substituição. Os portos mais movimentados do mundo não estão
mais em Roterdã, Hamburgo ou Nova York, mas em Xangai, Cingapura, Shenzhen e
Busan. A Ásia já representa cerca de 60% do PIB global quando medido por
paridade de poder de compra, e esse percentual continua crescendo. Enquanto
isso, o comércio transatlântico tradicional entre Europa e América do Norte
cresce em ritmo anêmico ou simplesmente estagna. As dez rotas de contêineres mais
movimentadas do planeta são hoje majoritariamente no Pacífico e em seguida no Oceano
Índico.
A participação percentual do Atlântico
no comércio global cai consistentemente há décadas. Não é apenas que o Pacífico
está crescendo, é que está crescendo às custas da relevância relativa do
Atlântico. A ascensão de uma classe média asiática, com centenas de milhões de
novos consumidores, redefiniu os fluxos de demanda global, deslocando o centro
gravitacional da economia.
A China, com sua ambiciosa Iniciativa Cinturão
e Rota da Seda, investe trilhões de dólares na construção de uma nova
arquitetura de infraestrutura global, conectando Ásia, Europa e África por
terra e mar. Não é apenas comércio é a reconfiguração das artérias por onde
flui o sangue da economia mundial. Enquanto isso, os investimentos em
infraestrutura portuária atlântica crescem de forma modesta, refletindo uma
realidade econômica que se mostra inexorável.
África:
O Elemento que Acelera o Declínio Atlântico
E aqui surge um dos aspectos mais surpreendentes
dessa reconfiguração: a África, continente atlântico por excelência, tornou-se
um dos principais motores do crescimento do Pacífico. É uma ironia histórica de
proporções épicas. Durante 400 anos, a África foi violentamente integrada ao
sistema comercial atlântico através de uma brutal colonização europeia.
Suas costas ocidentais foram os portos
de onde partiram milhões de pessoas escravizadas. Suas riquezas alimentaram a
Revolução Industrial europeia. Sua economia foi estruturada para servir as
metrópoles do outro lado do Atlântico. Mas hoje, em uma virada histórica, a
África está se "descolonizando" comercialmente e sua nova orientação
não é para o Atlântico, mas para o Pacífico.
A China é hoje o maior parceiro
comercial do continente africano, ultrapassando tanto a Europa quanto os
Estados Unidos. Investimentos chineses em infraestrutura: estradas, ferrovias,
portos, hidrelétricas, superam em muito os ocidentais, não apenas em volume,
mas em velocidade de execução. Enquanto europeus oferecem "parcerias"
carregadas de memórias coloniais amargas e condicionadas a intermináveis
exigências, os asiáticos constroem pontes, figurativamente e literalmente
também.
Os minerais críticos da África,
cobalto do Congo, lítio do Zimbábue, terras raras essenciais para uso na
indústria de tecnologia, fluem majoritariamente para as indústrias asiáticas. O
petróleo e gás africanos encontram mercados crescentes no Leste. Commodities
agrícolas alimentam a classe média asiática em expansão. E a geografia, que
parecia favorecer o Atlântico, revela-se mais ambígua: rotas marítimas da
África Oriental conectam-se naturalmente à Ásia via Oceano Índico, e mesmo da
costa ocidental, as rotas para a Ásia são cada vez mais competitivas.
Os novos portos de águas profundas na
Tanzânia, Quênia, Djibuti e até mesmo na costa atlântica, muitos construídos
com capital chinês, não foram desenhados pensando em Liverpool ou Nova York.
Foram projetados olhando para Xangai e Cingapura. A África não oferece respiro
ao Atlântico, na verdade acelera sua perda de centralidade ao adicionar suas
vastas riquezas e mercados ao sistema econômico do Pacífico. O continente que
foi forçadamente integrado ao Atlântico por séculos de violência agora escolhe
voluntariamente o Pacífico por interesse próprio. É o fim de um ciclo histórico
que começou com as grandes navegações.
O
Brasil e a Visão Estratégica
Diante dessa realidade incontornável,
o Brasil demonstra visão estratégica ao projetar sua entrada nessa nova ordem
econômica. O projeto da Ferrovia Bioceânica, que busca conectar o território
brasileiro ao Oceano Pacífico através da Bolívia, chegando a portos no Peru ou
Chile, representa mais do que uma obra de infraestrutura. É uma declaração de
que o país compreende o movimento da história e não quer ficar ancorado no lado
que perde relevância.
Historicamente voltado para o
Atlântico, com suas principais cidades, portos e centros econômicos na costa
leste, o Brasil reconhece que seu futuro pode estar na costa oeste. A ferrovia
transcontinental, cujos estudos estimam investimentos entre 10 e 15 bilhões de
dólares, permitiria que a produção agrícola do Centro-Oeste brasileiro, uma das
regiões mais produtivas do planeta, alcançasse os mercados asiáticos de forma
mais rápida e econômica. O que hoje leva semanas contornando o continente
sul-americano poderia ser reduzido em 10 a 15 dias.
Mais do que isso, o Brasil se
posicionaria como ponte entre dois oceanos, um hub logístico sul-americano
capaz de articular fluxos comerciais em múltiplas direções. Não está sozinho
nessa empreitada: o Chile desenvolveu sua própria infraestrutura portuária no
Pacífico, a Colômbia explora conexões bioceânicas, e até a Argentina estuda
rotas através dos Andes. É a América do Sul inteira buscando não ficar à margem
quando a história vira sua página mais importante em cinco séculos.
Desafios
da Transição
Essa transição não é simples nem
isenta de desafios. A construção de ferrovias atravessando a Cordilheira dos
Andes exige investimentos colossais e superação de obstáculos técnicos
formidáveis. A coordenação entre países com agendas políticas distintas
adiciona camadas de complexidade. Questões ambientais são particularmente
delicadas: a rota atravessaria ecossistemas frágeis como a Amazônia e áreas de
preservação nos Andes, gerando debates legítimos sobre o custo ambiental do
desenvolvimento.
Há também críticas quanto à viabilidade
econômica. Céticos argumentam que o custo por tonelada transportada pode não
compensar diante das alternativas marítimas existentes, especialmente
considerando os desafios de manutenção em terreno montanhoso. Outros questionam
se os países envolvidos têm capacidade política e financeira para sustentar um
projeto de décadas em meio a instabilidades regionais. Porém, essas dúvidas
precisam ser pesadas contra o custo de não agir. Ficar preso a uma
infraestrutura voltada exclusivamente para um oceano em declínio relativo pode
significar marginalização econômica no médio prazo.
A beleza e o perigo dessa
transformação residem justamente em seu caráter gradual. Mudanças tectônicas
assim não acontecem de uma hora para outra, mas são um ponto de inflexão. É
como assistir o sol se pôr no Atlântico enquanto nasce no Pacífico, lento, mas
inevitável. Ano após ano, os números confirmam a tendência, participação
asiática subindo, participação atlântica descendo. Fluxo de capitais migrando
para o leste. Rotas comerciais se reorganizando, esse já é o futuro.
Há algo de ironia histórica nisso
tudo. Para as potências ocidentais, o Pacífico surge como "nova
fronteira". Mas para as civilizações asiáticas, esse oceano sempre foi o
centro. O que muda não é a geografia, mas quem detém o poder de nomear o centro
do mundo. E essa mudança de poder é, talvez, o aspecto mais profundo da
transformação em curso. A gradualidade pode gerar complacência, há quem olhe
para o Atlântico ainda movimentado e pense que há tempo. Mas é justamente essa
lentidão aparente que torna o processo irreversível. Quando a mudança se torna
óbvia para todos, já é tarde demais para se reposicionar estrategicamente.
Uma
Nova Era
O que testemunhamos não é o fim da
importância do Atlântico, mas sua redução a uma posição secundária em um mundo
multipolar onde o Pacífico assume centralidade crescente e incontestável. As
grandes cidades do futuro podem estar em suas margens. Os acordos comerciais
mais relevantes podem cruzar suas águas. As inovações que moldarão o século XXI
podem emergir de seus países costeiros.
Para o Brasil e para a América do Sul,
a questão não é se essa mudança vai ocorrer, ela está ocorrendo gradualmente,
ano após ano, transação após transação, investimento após investimento. A
África já fez sua escolha, não por ideologia, mas por pragmatismo econômico. A
Ásia consolida sua posição como novo centro. A questão é como se posicionar
diante dessa realidade. A Ferrovia Bioceânica é um símbolo dessa consciência,
um reconhecimento de que a geografia do poder está se redesenhando e que ficar
ancorado exclusivamente no passado atlântico significa aceitar a marginalização
no futuro pacífico.
Após 500 anos, o mundo vira seu olhar
para o poente. E nessa virada, há riscos mas também oportunidades imensuráveis
para aqueles que souberem navegar essas novas águas com visão, coragem e
estratégia. A nova rota da riqueza não está apenas sendo traçada, está
substituindo gradualmente a antiga. E o Brasil, construindo sua ferrovia
transcontinental, buscará garantir seu lugar nesse mapa do amanhã, consciente
de que o sol que se põe sobre o Atlântico nasce sobre o Pacífico, iluminando
não uma nova era, mas o retorno da Ásia ao centro do mundo, posição que ocupou
por milênios antes que a europeia redesenhasse temporariamente a geografia do
poder, e logicamente, o temporário um hora se finda.
Cláudio Carraly, advogado,
ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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Leia também: Geopolítica da inteligência artificial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/inteligencia-artificial-na-cena-global.html

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