A magia da financeirização
Quatro décadas de dominância financeira paralisante e decadente
Márcio Pochmann/AEPET
O domínio parasitário das finanças, que esteriliza a economia real em benefício de uma minoria, cavou sepulturas para impérios e ameaça a própria soberania das nações periféricas
A financeirização, entendida como a crescente dominância de agentes, mercados, práticas e narrativas financeiras sobre a economia e a sociedade, tem sido um aspecto mais evidente na contemporaneidade, embora possuísse raízes históricas profundas. Trata-se de parte dos ciclos de longa duração do capitalismo que alternam fases de expansão e contração material valorizativa do capital pela de mercadorias com a amplificação financeira parasitária dominada pelas finanças em acumulação rentista.
Do ponto de vista histórico, cada ciclo de longa duração tem sido marcado pela existência de um centro dinâmico no interior do sistema capitalista mundial. Assim, por exemplo, a Inglaterra respondeu pela centralidade do ciclo de acumulação de longa duração no período da segunda metade do século XVIII à primeira Guerra Mundial (1914-1918). Após o auge de sua expansão material transcorrido até a Grande Depressão de 1873-1896, uma financeirização parasitária terminou marcando o fim do domínio do inglês no mundo.
Em seu lugar, um novo ciclo de acumulação centrado nos Estados Unidos percorreu o século XX, cujo auge da expansão material teria se esgotado na década de 1970. Com isso, a financeirização parasitária tendeu a sinalizar cada vez mais o termo do domínio mundial centrado nos Estados Unidos.
Em países como o Brasil que se encontram em posição periférica e dependente estrutural do sistema capitalismo mundial, o processo de financeirização adquire contornos especiais. Influência decisiva na sustentação do desenvolvimento diante do bloqueio ao dinamismo produtivo tecnológico, da degeneração da estrutura social, do comprometimento das instituições, entre outras dimensões importantes das esferas públicas e privadas.
Exemplificação disso se encontra nos dias de hoje na forma alienante da comunicação dominante a apontar que o problema das finanças públicas no Brasil situa-se nas despesas primárias como saúde, educação e outras. Enquanto o déficit total nas contas públicas em 2025 deve atingir cerca de 1 trilhão e 40 bilhões de reais, o foco termina sendo os R$ 40 bilhões de despesas primárias.
Dessa forma, os gastos públicos com juros que atingem RS 1 trilhão são escamoteados pela comunicação dominante, enquanto o processo de amplificação financeira parasitária segue praticamente intacto desde o final da década de 1990. Tudo isso porque o avanço das despesas públicas com juros segue enriquecendo o poderoso e minoritário “andar de cima” da população ao passo que a austeridade fiscal originada aos gastos primários serve mais ao desorganizado e majoritário “andar de baixo” no Brasil profundo.
Em síntese, o domínio da lógica financeira esteriliza recursos públicos com a elevada rentabilidade do setor financeiro e desestimula a produção interna no Brasil por força das altas taxas de juros sobre o endividamento público concomitantemente com o movimento geral da financeirização no centro do capitalismo mundial. Por ser um processo amplo e complexo, suas consequências sobre a decadência nacional têm sido evidentes do período monárquico aos dias de hoje, salvo entre as décadas de 1930 e 1970, quando o Brasil perseguiu o projeto nacional desenvolvimentista.
Quebra da Monarquia e República Velha
Uma análise da financeirização no Brasil monárquico e na República Velha permite revelar o cenário de constantes desafios econômico-financeiros e sociopolíticos. Por sua posição periférica e dependente estrutural no sistema capitalismo mundial centrado na Inglaterra, o país esteve exposto ao fim do ciclo de acumulação marcado pela expansão financeira parasitária desde a Grande Depressão de 1873-1896.
Em grande medida, as seis décadas de financeirização presentes entre os anos de 1870 e 1920 tiveram origem convergente no endividamento público decorrente da Guerra do Paraguai (1864-1870) concomitante com o esgotamento dos cafezais fluminenses. Assim, a expansão financeira na monarquia vendeu um conjunto de interesses no “andar de cima” ao reciclar a fortuna do baronato do café em decadência na província do Rio de Janeiro por meio dos títulos públicos que financiavam o público interno em conexão com banqueiros ingleses.
Também a participação dos banqueiros na abolição da escravatura procedida por maiores empréstimos obtidos junto aos bancos ingleses de todo o período imperial, em 1889, contribuições para selar o próprio fim da monarquia. Sem conseguir romper com a financeirização herdada do antigo regime, a República Velha avançou fraquejada, pois soldada pelos interesses do antigo e novo baronato cafeicultor, cujo desempenho econômico foi marcado pelo atraso da semi-estagnação na economia primária-exportadora.
Sem alçar uma fase de expansão material que valorizasse suficientemente o capital pela produção de mercadorias, as crises do endividamento obrigaram diante do descompasso das instituições liberais em relação à realidade social brasileira. Da crise do encilhamento (1890-1881) à política deflacionária ancorada nos empréstimos externos (Funding Loan de 1898) e na defesa da decadente produção de café, seja pelo Convênio de Taubaté (1906), seja pela Caixa de Estabilização (1926), a República Velha terminou também cavando a sua própria sepultura.
Desmonte da Nova República
Surgida na derrota da campanha das Diretas Já, a Nova República buscou se alicerçar na Constituição de 1988 que correspondia a uma espécie de simbiose entre o ressentimento com o período autoritário e a frágil projeção de futuro. Guardada a devida proporção, parece lembrar a Constituição de 1891 por seu formalismo desconectado da realidade gerada por uma sociedade em mudanças, seja da escravidão para o capitalismo no final do século XIX, seja da industrialização para os serviços hiperconetados da Era Digital desde o final do século XX.
Com isso, a financeirização parasitária emergida da crise da dívida externa passou a moldar a economia e a sociedade desde a década de 1980. A adoção do receituário neoliberal pelo Brasil desde então esteve em sintonia com o fim do ciclo longo de acumulação centralizada nos Estados Unidos, marcada pela amplificação financeira sucessora do esgotamento do expansionismo material valorizativo do capital pela produção de mercadorias.
O domínio da lógica financeira, impulsionado por altas taxas de juros e pelo endividamento público, compromete a sustentabilidade do desenvolvimento, bloqueia o dinamismo produtivo tecnológico e produz a degeneração da estrutura social, o enfraquecimento das instituições, as políticas públicas, entre outras dimensões das esferas públicas e privadas.
A superação dos desafios impostos pela financeirização exige um debate aprofundado e a formulação de um novo projeto nacional que priorize o investimento e a modernização do sistema produtivo, a distribuição da riqueza e constituições de novas instituições comprometidas com o futuro na era digital.
Sem isso, há quatro décadas que acumularam um domínio financeiro paralisante e decadente da nação concurso a obrigações. Uma excelente oportunidade para que seu rompimento aconteça, sendo possível reconstruir outra maioria política em novas bases econômicas e sociais para o segundo quarto do século XXI. Será possível?
* Marcio Pochmann , professor titular de economia da Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp). [ https://amzn.to/46jSkQk ]
Referências
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CARNEIRO, R. Financeirização e dinâmica produtiva-tecnológica: uma reflexão. Texto de discussão, 487; IE/Unicamp, 2025.
DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
POCHMANN, M. O próximo Brasil. São Paulo: Ideias & Letras, 2025.
SOARES, R. Entre oligarquias. Rio de Janeiro: FGV, 2024.
VIANA, F. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.
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