18 janeiro 2023

Golpismo persistente

O golpe em dois atos

O golpe foi abortado, mas a rede fascista, em especial o seu cérebro, continua intacta.
Jorge Gregory/Vermelho www.vermelho.org.br

 

Ascendendo ao poder em 2018, por meio da eleição de Bolsonaro, o consórcio reacionário, capitaneado em especial por militares, tinha em mente o resgate e o restabelecimento do regime militar ou a instalação de um estado de exceção semelhante. Instigadas incialmente pelo general Heleno, ainda em 2020, quando sugeriu colocar o povo na rua para emparedar o Congresso, sucederam-se várias tentativas, por meio da convocação de atos antidemocráticos, de se criar um clima de instabilidade institucional que justificasse a intervenção das Foças Armadas com o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. O ápice desse movimento se deu no 7 de Setembro de 2021. O ato em Brasília, que reuniu milhares de pessoas, em especial de caminhoneiros que ocuparam os gramados da Esplanada com seus veículos, tinha por objetivo a ocupação do Congresso e do Supremo. O forte esquema de segurança e a reação dos poderes legislativo e judiciário, assim como da sociedade, inviabilizou a tentativa bolsonarista.

Derrotada a investida golpista, a alternativa era obter um segundo mandato. Uma vitória eleitoral seria a legitimação do discurso autoritário e a pavimentação para a instauração do sonhado regime autoritário, que perpetuaria os militares no poder. Para alcançar tal objetivo, o governo associou-se ao Centrão, cedendo cargos e abrindo os cofres para satisfazer a ganância dos parlamentares centristas. Porém, se, de um lado, Bolsonaro ganhava fôlego, por outro, a ideia de uma frente ampla antifascista em torno da candidatura de Lula começava a ganhar corpo.

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O fantasma de uma possível derrota começou a assombrar Bolsonaro. Voltou então a atacar as urnas eletrônicas e a colocar sob suspeição o sistema eleitoral. Não só afirmou categoricamente que não aceitaria outro resultado que não a sua vitória, como começou a envolver as Forças Armadas em um eventual golpe, no caso de derrota. A contragosto do Centrão, escolheu o general Braga Neto para seu vice e determinou ao general Paulo Nogueira que simulasse a realização de uma auditoria nas urnas e no processo eleitoral. Seguraram o “resultado” da tal auditoria até o pós segundo turno, pois o objetivo era exatamente o de, em caso de derrota, colocar em dúvida o resultado para justificar um golpe de Estado.

Imediatamente após o anúncio do resultado das eleições, bolsonaristas, de forma orquestrada, passaram a interditar rodovias em todo o país e a bloquear ruas urbanas nos grandes centros. Poucos dias depois, o general Paulo Sergio Nogueira entregou o relatório do arremedo de auditoria. Obviamente não haviam encontrado argumentos técnicos para questionar a lisura da eleição, então resolveram colocar uma ponta de dúvida levantando uma suposta fragilidade não explicitada no código fonte. Foi a deixa para o gado bolsonarista passar a questionar o resultado eleitoral. Não faziam sequer ideia do que era um código fonte, mas todos passaram a se dizer especialistas em tal tema. “A eleição foi adulterada pelo código fonte”. Muito provavelmente nesse momento já estava pronta a minuta do decreto de instalação do Estado de Defesa no TSE encontrado na casa de Anderson Torres.

A consecução do golpe dependia então de um levante civil que justificasse a intervenção das Forças Armadas, garantindo a aplicação de tal decreto pela força. A reação dos governadores, no entanto, impediu que os bloqueios evoluíssem e os mesmos começaram a ser desmobilizados. Os fanáticos bolsonaristas passaram então a ser orientados a acampar em frente aos quarteis do Exército. Aqui se explicita o mais forte indício do envolvimento dos militares no projeto golpista, pois os espaços dos acampamentos, em especial o do QG em Brasília, são áreas de segurança militar onde, provavelmente, se um simples mendigo tentar dormir em algum banco, será escorraçado sob a justificativa de colocar a segurança em risco. No entanto, o Exército passou a dar guarida a centenas de fanáticos sob a justificativa de respeito à liberdade de manifestação. Impressionante como as Forças Armadas se tornaram democráticas de uma hora para outra.

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O movimento, no entanto, não acumulou a força necessária para caracterizar um levante civil, ainda que tenha promovido um verdadeiro quebra-quebra, com incêndio de carros e ônibus no dia da diplomação de Lula e Alckmin no dia 12 de dezembro. Nenhum vândalo foi preso, o que demonstrava, já naquele momento, tanto a complacência da Polícia Militar do Distrito Federal, como principalmente do Exército, que sequer esboçou alguma atitude para identificar e expulsar os vândalos que estavam acampados no seu quintal. Ao final de dezembro, Bolsonaro mantinha absoluto silêncio, esperando que o tal levante acontecesse. Nas vésperas do Natal foi desbaratada uma tentativa de explosão de considerável proporção próximo ao aeroporto de Brasília.

Em 29 de dezembro, em live, Bolsonaro encerrou o primeiro ato do golpe afirmando, entre outras coisas, que “Alguns acham que é o pega BIC e assine, faça isso, faça aquilo, está tudo resolvido”, ou seja, muito provavelmente estava se referindo ao tal decreto de Estado de Defesa. Tentou justificar o fracasso de tal tentativa afirmando que “certa medida tem que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos, de outras instituições. A gente não pode acusar apenas um lado, ou acusar a mim. Você, que quer resolver o assunto, por vezes você pode até ter razão, mas o caminho não é fácil”. No dia seguinte, embarcou para Miami e no dia primeiro, Lula e Alckimin tomaram posse. Parecia que a possibilidade de golpe estava enterrada.

Porém, o segundo ato do golpe, o do tudo ou nada, já se iniciou no dia 2. Nas redes sociais começou uma intensa mobilização para os bolsonaristas se deslocarem a Brasília no final de semana imediato. Como que fazendo coro com a mobilização, de Miami, Bolsonaro seguiu se apresentando nas redes sociais como se ainda fosse o presidente do Brasil. Não entendendo que tal apresentação fazia parte da instigação do golpe, a grande imprensa fez chacota de tais publicações.

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A ideia era reunir uma multidão, nas proporções ou ainda maior do que a mobilizada no 7 de Setembro de 2021 e, desta vez, realmente ocupar o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto. A pressa de mobilizar em uma semana decorria da necessidade de executar a ação antes que o novo governo assumisse totalmente o controle do GSI e outros órgão responsáveis pela segurança palaciana. Ocupadas as sedes dos três poderes por um turbilhão de centenas de milhares, com as forças de segurança incapazes de retomar o controle, as Forças Armadas entrariam em cena restabelecendo a “ordem” e assumindo o controle do país, destituindo o governo democraticamente eleito. Se havia consenso ou não no Alto Comando quanto a esse desfecho, são outros quinhentos, que a história revelará, mas não restou absolutamente nenhuma dúvida de que esse era o objetivo dos golpistas.

Havia outra questão a ser resolvida pelos golpistas, a neutralização das forças de segurança do Distrito Federal. Estas não poderiam oferecer resistência, o que poderia comprometer os objetivos dos fascistas. A resposta a este problema também veio no dia 2 de janeiro, com a nomeação, pelo governador Ibaneis Rocha, de Anderson Torres para a Secretaria de Segurança Pública do DF, mesmo enfrentando questionamentos de vários setores políticos em razão de seu extenso histórico de colaboração com atos antidemocráticos e por ter sido o Ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro. No dia seguinte à nomeação, Torres promoveu total reformulação na cúpula da segurança pública do DF sem que houvesse um único questionamento por parte de Ibaneis. Na sequência, Torres embarcou para Miami, em “férias”, onde coincidentemente também se encontrava Bolsonaro, mais uma vez sem nenhuma objeção de Ibaneis. Muito provavelmente a ideia era os dois voltarem juntos assim que as Forças Armadas assumissem o controle.

Mesmo diante de todo o histórico das manifestações bolsonaristas, das convocações descaradas de tomada do poder e intervenção militar nas redes sociais, do alto risco que a situação apontava, Ibaneis se comportou até o fatídico dia como se nada estivesse acontecendo. Portanto, me desculpem aqueles que ainda acreditam que o governador foi enganado ou meramente conivente. Foi parte ativa e consciente da tentativa de golpe, pois o mais ingênuo cidadão, na posição dele, teria previsto o que estava por vir. Ibaneis foi peça chave para os acontecimentos e seria peça chave para o golpe que estaria por vir.

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Os objetivos golpistas só não foram atingidos por dois elementos determinantes. O primeiro, foi a mobilização muito aquém do que os articuladores do golpe esperavam. A ideia era levar à Esplanada 100 a 150 mil manifestantes, incluindo caminhões e outros veículos. O resultado final é que não mais que 5 a 6 mil pessoas vindas de outras regiões do país se juntaram aos 2 ou 3 mil que ainda restavam no acampamento que havia se instalado na área de segurança militar há dois meses. Dos bolsonaristas brasilienses, também ocorreu pouquíssima adesão. Diferente do dia 7 de Setembro de 2021, quando cedinho já se verificava intensa movimentação de carros de todas as regiões do DF se dirigindo à Esplanada, neste 8 de janeiro, exceto nos arredores do QG, a vida candanga parecia absolutamente normal. Nas proximidades do quartel, não mais de uma centena de carros de passeio estavam estacionados. Em resumo, o ato não reuniu mais que 7 a 10 mil manifestantes, muitíssimo aquém do que os organizadores do golpe esperavam. Mesmo com a baixa adesão, o plano precisava ser levado em frente, pois provavelmente não haveria outra oportunidade.

O segundo elemento que impediu o golpe foi a rápida e precisa reação do governo Lula. A imediata intervenção na segurança pública do DF permitiu a reorganização do comando da Polícia Militar e a imediata mobilização da tropa para expulsar os baderneiros da sede dos três poderes e da Esplanada, efetuando desta vez inúmeras prisões em flagrante. Mesmo com a baixa adesão, mas com a complacência dos efetivos da PM e da segurança do Planalto, os eventos poderiam levar a outro desfecho.

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Infelizmente, mais uma vez, a cumplicidade do Exército impedindo a PM de adentrar na área militar e efetuar as prisões e desmantelamento do acampamento naquela noite, permitiu que muitos vândalos se evadissem e não me admiraria se viermos a descobrir que alguns deles se refugiaram nas próprias instalações do Exército para não serem presos no dia seguinte.

O golpe foi abortado, mas a rede fascista, em especial o seu cérebro, continua intacta. No fundamental, as prisões que ocorreram até agora dizem respeito a massa de manobra. É necessário que as investigações sigam em frente e especialmente, que a CPI a ser instalada no Congresso revele os verdadeiros responsáveis pela baderna promovida no Brasil, mostrando a dimensão do envolvimento das Forças Armadas e dos empresários, assim como, que a CPI da Câmara Legislativa revele o real envolvimento de Ibaneis Rocha com a tentativa de golpe. E mais importante de tudo, manter a frente ampla antifacista, pois as ameaças golpistas não desaparecerão da noite para o dia.

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