ARAGUAIA,
MEMÓRIAS DE LENDAS E SANGUE
Em seu novo livro, 'Araras
vermelhas', a poeta Cida Pedrosa faz um remonte da Guerrilha do Araguaia, com
um memorial das vítimas da violência do Estado brasileiro na ditadura
Romero Rafael/Revista Continente
Junto à revoada das Araras
vermelhas de Cida Pedrosa só se levanta voo de ida. Em toda
poesia em que a gente, de fato, embarca, talvez seja possível apenas partir e
jamais retornar – nesta, particularmente, a viagem não tem volta porque é feita
até um horizonte que, embora desenhado para ser alcançado, foi borrado pelo
Estado brasileiro. A Guerrilha do Araguaia é um lugar onde
só se faz resgates. De pessoas transformadas em lendas, movimentos convertidos
em vultos, sonhos vertidos em sangue.
Nesta obra, um (longo) poema-voo de 140
páginas, a autora nos leva à floresta amazônica, mais precisamente ao curso do
Rio Araguaia de quando araras vermelhas de espécie humana pousaram nas suas
margens, entre os anos finais da década de 1960 e os iniciais da seguinte. Para
voarem, e libertarem outros, da gaiola que detinha este país.
Um poema-voo para ser feito num bom
fôlego, preferencialmente sem paradas – senão curtas conexões em Bodocó, quando
a escritora puxa lembranças de criança na cidade sertaneja e também referências
culturais que se deitam naquele mesmo tempo, para embrenhar sua realidade
particular na coletiva, e assim dizer que, por mais que se voe, o mundo é todo
ele um só.
Araras vermelhas – que, no rastro de seu lançamento, pela
Companhia das Letras, conviveu com a vertigem da ameaça à Araguaia, a obra de Marianne Peretti que passou
raspando pela depredação na Câmara Federal, no inacreditável 8 de janeiro de
2023 –, é um contra-ataque à completa deterioração da pouco registrada e
evocada Guerrilha do Araguaia.
O trabalho de Cida é, então, um remonte
dessa história recente com um memorial das vítimas da violência do Estado
brasileiro nesse período da ditadura. Neste resgate, ela ressuscita mortes,
mortas memórias, de pessoas tornadas lendárias; seres encantados da floresta.
“as araras vermelhas chegaram ali para
ser parte misturar-se ao outro cultivar o campo caçar a comida por peixes à
mesa colher castanhas florir auroras”, escreve Cida Pedrosa, sempre em
minúscula, sem qualquer pontuação, jogando com a fluidez da palavra e da vida,
e, especialmente, descansando a guerrilha de seu predicado de uso mais
maniqueísta, que é a luta armada, termo já reescrito como resistência armada
contra a ditadura.
Para que serve a poesia de Cida? A poesia de Cida tem servido para dar ou devolver nomes, rostos, vidas; para que acontecimentos públicos e intimidades infiltrem-se mutuamente, neste momento em que a gente reivindica alteridade, a lembrança versus o esquecimento, as histórias laterais de vozes dissonantes e oprimidas, outros testemunhos. Assim ela fez em Solo para vialejo (Cepe Editora, 2019), vencedor nas categorias poesia e livro do ano do Jabuti em 2020, e faz no de agora, eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) o melhor de poesia de 2022.
***
Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão,
aquele que primeiro chegou ao Araguaia entre todas as araras vermelhas,
homenzarrão preto de 1,98 m de altura, comandante de um destacamento, conhecido
pelo carisma e o temor que igualmente emanava, é reafirmado pela escrita de
Cida, tanto pela sua delicadeza quanto pela força. Conta, em seu poema, que ele
“sonhava o outro” – e também que “os caboclos diziam que era capaz de sumir ao
vento desaparecer no verde transformar-se em pedra ou animal silvestre”. Assim
mitificando-se ao ser assassinado.
“Nunca acreditou na falta de vagas e
viandou e varou e volteou até vislumbrar outras verdades que pudessem verdejar
a vida”, poetiza, em outro trecho, atenta à racialidade para ler o comandante
que, em outras terras, jamais teria comando, porque lhe eram negados sonhos.
Antes de chegar às bordas da Guerrilha
do Araguaia, a autora volteia a Amazônia e vai povoando a região. Recorda a
primeira vez em que viu a floresta, num álbum de figurinhas enviado do Recife a
Bodocó pela irmã mais velha; recupera a admiração da mãe ao ver a figurinha do
papagaio-verdadeiro; relembra os boatos misteriosos sobre a onça-pintada que
devorava os trabalhadores, sobretudo nordestinos, sumidos na construção da
estrada Belém-Brasília.
Reintegra à história os
suruís-aiqueuaras, da terra indígena sororó, povo oriundo de quando “a floresta
habitava no povo há centenas de anos”, até que outros povos foram chegando, com
desejos diversos – desde achar ouro, possuir terra ou, no caso das araras
vermelhas, “a busca por um tempo novo a busca por um templo em que a pluma
pudesse ter espaço igual ao espaço da pedra em que o arco-íris fosse apenas o
afã das cores e a botija de ouro fosse a sobremesa da mesa posta para todos”.
Identificada pelas nossas sinapses mais
velozes e rudes ao embate entre os membros do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) e o Estado ditatorial, a guerrilha encontrou naquele trecho da Amazônia
mais do que uma geografia ideal para a formação de uma resistência armada que
sustentasse o levante popular que planejou. Ainda que ali fosse só a partida
dos propósitos, a floresta foi também para aquelas pessoas a terra para gestar
o sonho de outra vida, fazer chão e conectar-se à natureza e ao povo.
Outra personagem mítica da guerrilha, Dinalva
Conceição Oliveira Teixeira, conhecida como Dina, subcomandante de um
destacamento, “comandante-ave”, “ave-comandante”, é ratificada pela escritora
pela lenda de que “era invisível aparecia e sumia sumia e aparecia”, “e que se
transformava em borboleta”.
É como se, ao recuperar essas
vidas/memórias/lendas, Cida reflorestasse não somente a história sobre o
Araguaia, mas também aquele pedaço da floresta, onde convivem horizontalmente
espécies e pessoas humanas e não humanas, das pedras aos bichos.
Mas o poema também sangra, ao relatar as violências executadas
pelo Estado brasileiro. Durante o processo de edição do livro, Cida Pedrosa me
disse que este seu trabalho “é muito doloroso” – “eu estou falando da morte de
muitas pessoas que foram executadas pelas forças de repressão entre os anos
1972 e 1974”. Período em que o movimento foi descoberto e, então, antes do
tempo ansiado, fez marchar a guerrilha, em reação aos ataques feitos pelos
militares.
***
Estamos agora há 51 anos da primeira investida militar, a Operação
Papagaio, iniciada em abril de 1972, com um efetivo que, se calcula, era de 50
homens para cada guerrilheiro (estes cerca de 80), considerada derrotada pelo
baixo número de alvos abatidos.
Da segunda investida, a Operação Sucuri, estamos há 50 anos,
quando em abril de 1973, agentes das Forças Armadas se misturaram entre os
moradores para colher informações, mapear a região e localizar guerrilheiros e
moradores vistos como aliados. Esse levantamento levou à terceira operação,
Marajoara, a mais sangrenta, em outubro de 1973. Durou um ano, até o
assassinato da última guerrilheira que resistia na floresta, Walkiria Afonso
Costa, em outubro de 1974. Toda a gente capturada com vida, mesmo em rendição,
foi morta.
A floresta adubada pela vida de seres diversos e sonhos muitos é
também floresta adubada de sangue. É “a amazônia barriga placentária do mundo
cortada por veias e vasos varizes (...) veias vasos valas velas e vultos”.
Nomear as forças de repressão, com seus instrumentos de tortura e
seu esmero em ser cruel, reuni-los agora, na nossa ressaca da recém-saída de um
governo afeito à ditadura e que se desfazia da floresta, dos seres e sonhos
dissidentes a ele, é fazer uma poesia que tem desejo de ser política. Araras
vermelhas, nesse sentido, poderia ser livro didático. A poesia de
Cida dá conta de instruir.
“Para mim, a memória é revolucionária, como iluminação do presente
e do futuro”, disse, recentemente, José Genoino, em entrevista ao site Revista
Ópera, ressaltando sua dedicação na contribuição de livros sobre a
Guerrilha do Araguaia. Genoíno era um dos membros, preso logo no início da
ação, tendo ficado no cárcere até 1977, condenado pela Lei de Segurança
Nacional por ser filiado ao PCdoB – naquele momento, o governo não fazia ideia
do que propunha aquele grupo; imaginava que se dedicava apenas a uma formação
socialista.
A poesia de Cida, então, clareia, se não os apagamentos, os
vazios. Ajuda a iluminar o arquivo obscuro das Forças Armadas, onde não se
encontram registros; ajuda a preencher caixões esvaziados, porque os corpos
desapareceram (em 1975, já exterminada a guerrilha, a Operação Limpeza
desenterrou e queimou restos mortais, tendo antes arrancado partes que dariam
reconhecimento aos mortos, como arcadas dentárias, para afundá-las no mais
profundo do rio).
Embora seja sobre uma memória coletiva,
esta poesia jorra também de um afeto particular da autora. Não é
autobiográfica, mas dá registro ancestrais seus; dá registro àqueles que vieram
antes no partido político a que é filiada, PCdoB, e pelo qual foi eleita
vereadora do Recife nesta legislatura. É, ainda, uma homenagem ao centenário da
sigla, completado no ano passado junto com a Semana de Arte Moderna.
***
Rica em aliterações e numa escrita
concreta das palavras, verbivocovisual, para ter um leitor cúmplice dos sons e
das imagens que evoca, Cida Pedrosa elastece o poema ao beliscar outros gêneros
literários e textuais. Pratica uma prosa poética, espalha informações até mais
do que alguns jornalismos, bebe de fontes
diversas, inclusive da Wikipédia, e
portanto é enciclopédica.
“Eu gosto de misturar. É tanto que eu
abro e fecho (o livro) com poesia metrificada, depois vêm os cantos em prosa,
às vezes até ‘jornalística’; e depois, eu construo um poema bem visual,
moderno, bebendo até da poesia concreta, na desconstrução total do verso. Acho
que nesse eu radicalizo mais do que no ‘Solo para Vialejo’”, me disse,
recentemente.
“Mas, acho, que, para dizer dessa
tortura toda, dessa dor toda, se eu fosse escrever um poema mais linear,
tradicional, talvez caísse no cru da realidade ou numa coisa piegas. Eu queria
que o leitor se sentisse cúmplice de cada guerrilheira e guerrilheiro; que ele
os colocasse no colo, mas também desse ombro a ombro e se instigasse para a
revolta também.”
As referências de pesquisa estão todas
listadas nas últimas páginas. São consultas realizadas entre 22 de janeiro e 12
de fevereiro de 2022, os 21 dias que ela levou para escrever a obra, num jorro
de palavras que ficaram represadas durante todo o ano de 2021, o primeiro de
seu mandato parlamentar, logo após o Jabuti, quando alguma angústia ou bloqueio
a visitou.
Entre este e o premiado Solo para Vialejo, ela lançou no ano passado Estesia (Editora Cepe, 2022), uma reunião de
haicais e fotografias criadas durante passeios com seu cão lhasa apso, Bob Marley, na fase mais rígida da
pandemia, como registros de um tempo da vida em exceção. Mais do que fazer
sentir, a poesia de Cida tem diversificado o gênero literário e registrado
histórias.
ROMERO RAFAEL, jornalista e ex-editor-assistente de Cultura
do Jornal do Commercio.
Foto: Roberto Jaffier
A literatura latino-americana apoiada em contribuições éticas e
estéticas dos africanos e afrodescendentes bit.ly/3y45vUY
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