Plataformização do acesso a serviços aprofundou
desigualdades históricas
Na área das políticas sociais, dos serviços de saúde e até
mesmo na identificação civil, priorização do digital impactou com mais
gravidade segmentos já vulnerabilizados
Paulo Victor Melo/Le Monde Diplomatique
Dentre as parcelas mais empobrecidas da população brasileira
– aquelas que estão nas chamadas classes D/E – quase 40% não têm conexão
regular à internet e apenas 10% dispõem de computador nos locais em que vivem,
conforme revelado na mais recente edição da TIC Domicílios,
pesquisa que mapeia o acesso às tecnologias digitais de informação e
comunicação nos domicílios urbanos e rurais do país e as suas formas de uso por
indivíduos a partir dos 10 anos de idade.
Pouco mais de três anos após o início de uma pandemia
que teve a transferência do acesso a diversas políticas públicas para o
ambiente digital dentre as suas principais consequências, quais as implicações
na obtenção de direitos, e no exercício da cidadania, por esses grupos? Ao
final de um ciclo de governo – e início de outra gestão, que constantemente se
afirma preocup ada com a redução das desigualdades – esse é um questionamento
que deve ser feito.
Um anúncio oficial, em 13 de maio de 2021, segundo ano de
pandemia de Covid-19, foi revelador de uma lógica que estruturou algumas das
ações da última gestão presidencial. Naquele dia, em discurso no estado de
Alagoas, Jair Bolsonaro publicizou a pretensão de determinar a inclusão das
famílias candidatas ao recebimento do Bolsa Família exclusivamente
por meio de um aplicativo digital. Se a mudança não foi concretizada, a emenda
foi pior que o son eto: além de acabar com um dos maiores programas de
transferência de renda do mundo (recriado pela gestão atual), a gestão
Bolsonaro conseguiu concretizar essa prática em outras áreas.
Dois exemplos nessa direção foram a criação do
aplicativo Meu INSS e a Lei 14.176/2021, que, dentre outras mudanças,
estabeleceu novos critérios para acesso ao Benefício de Prestação Continuada
(BPC). “Desde a implantação do aplicativo Meu INSS, por meio do qual é feito o
agendamento e atendimento digital na instituição, o acesso ao BPC tem se
tornado cada vez mais di fícil, em razão da desigualdade e do precário acesso à
internet pela população”, foi o alerta feito pelo Conselho Federal de Serviço
Social (CFESS), em nota pública divulgada em julho de 2021.
Uma das alterações da nova lei do BPC foi a
autorização, em caráter excepcional, da teleavaliação como forma de atendimento
para fins de avaliação psicossocial. Se na aparência a medida foi apresentada
como solução para agilizar a longa fila de solicitações de benefício que
aguardam decisão do INSS, na essência, para o Conselho, há uma série de
problemas, desde a eficácia em relação ao problema das filas até a questão da
proteção dos dados dos usuários.
Também em nota pública, o CFESS enfatizou que “a
teleavaliação não vai diminuir a fila de solicitações repre sadas, não garante
o sigilo e a privacidade no atendimento, compromete a qualidade da avaliação
social, podendo resultar na negação de um direito, e sem contar que enfraquece
o serviço social do INSS”.
A assistente social Emilly Marques, 1ª secretária do
CFESS, chama a atenção para um duplo obstáculo na relação entre públicos
potencialmente beneficiários do Benefício de Prestação Continuada e o digital:
ausência de conectividade e dificuldades de uso. “Pessoas requerentes do BPC,
cuja renda per capita é inferior a ¼ do salário mínimo e em situa&cce
dil;ão de extrema pobreza, podem não ter recursos para possuir um celular ou
computador com internet. Muitas utilizam somente algumas redes sociais ou
aplicativos de mensagens. Ademais, tem a barreira da informação, as próprias
habilidades para mexer nessas plataformas, e até mesmo um reforço de barreiras
geracionais, considerando que pessoas mais idosas podem não ter facilidade com
essas tecnologias e por vezes dependem do apoio de alguém para garantir esse
acesso. Nem todos contam com esse ‘alguém’”, lembra.
A preocupação expressa por Emilly tem, inclusive, um
exemplo bastante recente na história brasileira, considerando que, de acordo
com um levantamento realizado pela Universidade de São Paulo, mais
de sete milhões de pessoas elegíveis para receber o auxílio emergencial, no
início da pandemia de Covid-19, não tinham como acessar o aplicativo da Caixa
Econômica Federal por viverem em domicílios sem conectividade digital.
Se, à época do auxílio emergencial, o resultado foi
inúmeras filas nas portas de agências bancárias da Caixa de pessoas em busca de
informações sobre como utilizar o aplicativo, no caso das mudanças no BPC,
segundo Emilly, “as dificuldades de acesso podem sobrecarregar outros serviços
presenciais, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), ou
ainda empurrar para contr atação de intermediários para ter orientações. Com
isso, o INSS deixa de fazer sua função de orientar sobre os direitos
previdenciários e benefícios que operacionaliza e a população fica à mercê de
estratégias individualizadas para alcançar o que seria direito garantido”.
dentificação
Civil Nacional: entre a visibilidade e a exclusão
Outra iniciativa relativa à plataformização,
inaugurada ainda no período Michel Temer e aprofundada na gestão Bolsonaro, foi
a Identificação Civil Nacional, estabelecida pela Lei nº 13.444/2017, que tem a
sua base de dados como principal fonte para autenticação de usuários na
plataforma gov.br, portal do Governo Federal, no acesso a serviços públicos.
Sem desconsiderar a importância de universalização do
registro de identificação civil, enquanto mecanismo de afirmação da cidadania,
organizações da sociedade civil atentam para os riscos à privacidade e à
exacerbação de desigualdades históricas. Em relatório divulgado
no ano passado, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa conclui que
“diante de um contexto brasileiro marcado por profundas desigualdades
socioeconômicas e regionais, a formulação de políticas públicas que tenham por
objetivo a universalização do registro civil e a ampliação do acesso a serviços
públicos – ou, em outras palavras, que tornem todos os cidadãos visíveis ao
Estado –, é essencial. Ao mesmo tempo, se exacerbada, tal visibilidade pode
recair em práticas vigilantistas e potencialmente discriminatórias. E não apen
as: experiências internacionais mostram que iniciativas de centralização de
sistemas de identificação civil, atreladas à plataformização de serviços
públicos, ao contrário do que se propõem, podem aprofundar a exclusão de
pessoas e grupos já vulnerabilizados”.
No que diz respeito a abusos na utilização dos dados
pessoais, a Data Privacy identifica como possíveis riscos, dentre outros: usos
secundários e compartilhamentos das informações constantes na base de dados da
Identificação Civil Nacional com órgãos que possuem finalidades distintas;
incidentes de segurança, visto que há, atualmente, dados biométricos
(sensíveis), de mais de 110 milhões de brasileiros e brasileiras; e
inviabilização do exercício dos direitos dos titulares, considerando não haver
um canal direto e adequado em que os cidadãos possam solicitar o acesso aos
seus dados tratados e a retificação de dados incorretos ou desatualizados.
Já a exclusão de cidadãos e cidadãs do acesso a
políticas e serviços públicos pode ocorrer, de acordo com a Data Privacy, nas
seguintes situações: pessoas que não possuem qualquer documento de identidade;
pessoas que possuam algum tipo de inadequação em seus documentos de identidade;
públicos de sujeitos hipervulneráveis, como crianças, adolescentes, idosos e
pessoas com deficiência; e pessoas sem acesso à internet.
Saúde como
área prioritária da digitalização
Um setor que, inegavelmente, mais tem sido
transformado pela digitalização dos serviços é a saúde. Atendimentos médicos,
consultas psicológicas e prescrição de receitas mediadas por tecnologias
digitais são procedimentos cada vez mais comuns, além da existência de uma
profusão de aplicativos para controle e monitoramento de glicemia, ciclos
menstruais e até qualidade do sono . Essas e outras mudanças, que seguem uma
tendência global, exigem uma série de cuidados com a privacidade, tanto dos
usuários quanto dos profissionais envolvidos na prestação dos serviços.
Ao entrevistar gestores públicos, trabalhadores(as) da
saúde e usuários, a pesquisa Prote&cc edil;ão de Dados em
Serviços de Saúde Digital, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e Instituto de
Defesa do Consumidor (Idec) forneceu importantes apontamentos sobre esse
cenário.
“Muitos serviços de saúde digital acabam sendo
oferecidos através de plataformas já utilizadas pelas pessoas, como Zoom e
WhatsApp, de maneira informal. Inclusive para os mais velhos, o uso das
ligações de WhatsApp parecia ser uma opção mais viável. Isso está mais presente
no serviço privado. Os aplicativos de celular são outras ferramentas muito
utilizadas”, relata Mariana M artins, coordenadora-geral da pesquisa.
Ainda que esse não tenha sido o foco do estudo,
Mariana frisa que não foram negligenciadas as assimetrias de conectividade
digital, já que, no entendimento dela, “as desigualdades de acesso à internet
de qualidade ainda são muito grandes, tanto entre as áreas urbanas e as áreas
rurais quanto entre as diferentes classes sociais. E isso não pode ser ignorado
quando falamos de acesso aos serviços digitais de uma forma geral”.
Nas entrevistas do projeto, muitos dos usuários
expressaram uma preocupação com a proteção dos seus dados, mas, ao mesmo tempo,
manifestaram um sentimento de impotência frente a uma espécie de naturalização
do uso indevido dos dados, que vai desde a pergunta “CPF na nota?”, feita em
caixas de farmácias, até o compartilhamento com grandes plataformas digitais,
operadoras de planos de saúde e redes de farmácias.
Geografias
(e outras dimensões) da desigualdade
Uma questão presente nas mudanças em políticas
sociais, na Identificação Civil Nacional e na Saúde Digital, é que a
plataformização das políticas públicas não afeta de modo igual todas as
brasileiras e brasileiros. Ao contrário, os locais de moradia, o gênero, a raça
e a condição de deficiência – além da classe socioeconômica, co mo já apontado
no início do texto – incidem diretamente sobre o grau de dificuldades na
conexão à internet e, por conseguinte, na garantia de direitos que têm o acesso
assentado em aplicativos. Números da TIC Domicílios confirmam isso:
considerando a população usuária de internet que vive em áreas rurais, apenas
57% utilizaram o chamado “governo eletrônico” e somente 27% compraram produtos
e serviços pela internet, nos 12 meses anteriores à pesquisa. Dentre as pessoas
que vivem nas zonas urbanas e têm internet, os índices foram de 72% e 49%,
respectivamente.
Uma pesquisa realizada por três organizações da
sociedade civil – Intervozes – Coletivo Brasil de
Comunicação Social, Coordena ção Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (CONAQ) e Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste
(MMTR/NE) – apresenta resultados também relevantes para a observação do
cruzamento entre desigualdades e internet: 41,24% das famílias quilombolas e
rurais que têm acesso à internet gastam entre R$ 51 e R$ 200 por mês com o
serviço, sendo que 56,2% possuem renda mensal inferior a um salário mínimo e
outras 16% não têm qualquer remuneração fixa.
A professora Ivonete Lopes, do Departamento de
Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa (UFV), que desenvolve
trabalhos de pesquisa e extensão junto a comunidades rurais e quilombolas,
traduz algumas dessas problemáticas: “nos territórios rurais a internet chega
com preço mais elevado e com qualidade inferior ao serviço prestado na área
urbana. Isso foi verificado sobretudo na comunidade quilombola [particip ante
de um dos projetos coordenados por ela], que fica a menos de 15 km do centro da
cidade. As moradoras têm renda que as colocam em situação de pobreza e ainda
assim precisam pagar mais caro para ter internet em casa”, diz.
Confirmando a relação direta entre raça, gênero e
outras categorias sociais com as desigualdades de conectividade digital,
Ivonete narra que “entre as assentadas e as agricultoras de Viçosa, as mulheres
negras (pretas e pardas) eram as que tinham acesso mais precarizado às TICs.
Isso mostra a relevância de pesquisas com abordagem interseccional para captar
as diferenças que podem existir dentro do mesmo grupo s ocial. Raça e faixa
etária são duas variáveis que se destacam e sobrepõem para aumentar a
desigualdade digital”.
Ao mencionar um outro projeto, intitulado “Dos
quilombos às favelas: mulheres negras, interseccionalidade e acesso às TICs”,
com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), Ivonete qualifica como “geografia da desigualdade” a
existência de disparidades na conexão à internet mesmo dentro de uma única
cidade. “Temos como hipótese que embor a essas mulheres estejam inseridas em
diferentes territórios rurais (quilombolas) e urbanos (mulheres de favela), há
uma relação entre território, renda, classe, raça e exclusão digital que as
colocam em situação de similaridade em relação à desigualdade de acesso e
apropriação das TIC. Essa hipótese é baseada em pesquisas, como as do CGI
[Comitê Gestor da Internet no Brasil], que apontam haver uma geografia da
desigualdade em relação ao acesso às tecnologias. Mesmo morando na mesma
metrópole, a exemplo de São Paulo, há significativa desigualdade de acesso
entre o centro e as áreas periféricas”, ressalta.
Da potência
e do limite do “se virar” às necessárias políticas públicas
Todo esse contexto de dificuldades no acesso à
internet e às tecnologias digitais de informação e comunicação tem, de
imediato, uma resposta rápida: a auto-organização das comunidades, sobretudo as
mais vulnerabilizadas, na busca por alternativas. A professora Ivonete Lopes
conta que, no caso do auxílio emergencial, por exemplo, a população precisou
“achar o seu jeito” para o bter o benefício e garantir a sobrevivência na
pandemia.“Quando eu falo eu dar o ‘seu jeito’, isso mostra como as lideranças femininas quilombolas, por exemplo, se organizaram e negociaram uma internet mais barata para a comunidade, adotaram estratégias de compartilhamento da rede WiFi e dos dispositivos”, diz. Porém, a própria Ivonete adverte que “não podemos ‘romantizar’ a resiliência sem problematizar a ausência de políticas p& uacute;blicas para universalização da internet”.
Nesse sentido, a professora acredita que “precisamos de políticas públicas que universalizem o acesso à internet e que sejam capazes de contemplar as especificidades do território brasileiro. O primeiro passo é facilitar a entrada no mundo digital com dispositivos (celular, tablet e/ou computador) e internet. Entretanto, uma política que possa facilitar de fato o acesso aos direitos tem o desafio de proporcionar maior letr amento digital, sobretudo às mulheres”.
Em perspectiva semelhante, Emilly Marques, do CFESS, acentua que “promover mais portas de entrada para acessos a direitos e benefícios pode auxiliar, mas não adianta a criação de ‘mais portas’ que resultam somente em filas virtuais, mais seletivas e focalizadas e que nos retiram a possibilidade de articulação coletiva”. Por isso, nas palavras dela, “o Serviço Social se coloca na defesa de uma sociedade livre e radicalmente democrática e na luta pela comunicação como um bem público e, justamente por isso, deve estar a serviço da sociedade, não das classes dominantes, que tão somente visam ao lucro e à reprodução dos seus interesses”.
Mariana Martins, da pesquisa Proteção de Dados Pessoais em Serviços de Saúde Digital, corrobora com esse pensamento, ao dizer que “a internet precisa ser tratada como um bem público, que deve estar acessível a todos, sem que dependam de planos específicos e da prática de zero rating, que na verdade mais exclui e lim ita o acesso e ainda causa uma falsa ideia de inclusão. O acesso deve ser uma prioridade, seguido de políticas de diversificação de canais de atendimento que possam também considerar as dificuldades geracionais e as desigualdades sociais de um país como o Brasil”.
As reflexões dessas três especialistas são trilhas possíveis para uma nova relação entre políticas de internet, tecnologias digitais e cidadania no Brasil. Ao governo que se iniciou em 1 de janeiro de 2023, está lançado o desafio de, enquanto exigência democrática, promover o acesso digital como um direito humano e, ao mesmo tempo, como facilitador do acesso a outros direitos.
Paulo Victor Melo é professor e pesquisador de Políticas de Comunicação em universidades de Portugal e do Brasil. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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