04 agosto 2023

Complexo mundo dos monopólios

Imperialismo, desde sempre e novamente

Correntes progressistas ainda não conseguem, neste momento histórico, alterar a correlação de forças para impor uma nova era pós-neoliberal
Renildo Souza/Vermelho


 

O tema do imperialismo, sempre presente nos fatos do mundo, voltou ao debate. Com cinismo, Thomas Friedman, editor de política internacional do New York Times, proclamou em fevereiro passado: “a mão oculta do mercado nunca vai funcionar sem um punho cerrado oculto: o McDonald’s não pode crescer sem a McDonnell Douglas, fabricante do F-15’. Alguém precisa manter a ordem e implementar as regras.”

A conjuntura atual suscita a seguinte questão: o mundo hoje se aproxima mais daquele descrito por Lenin, isto é, dominação de monopólios, opressão nacional e crise, ou daquele descrito por Kautsky, isto é, ultra-imperialismo ou supraimperialismo, com paz das potências, integradas e interdependentes pela monopolização da economia? Sem dúvida, os monopólios globais, o parasitismo financeiro, as agruras dos trabalhadores e as guerras, ao lado dos grilhões do capitalismo dependente na periferia, dão razão para a linha geral de Lenin, sem prejuízo das necessárias atualizações.

Então, como se organiza a economia e o poder no mundo hoje? Vejamos alguns aspectos gerais.

John Smith (2016) em seu livro O imperialismo do século XXI mostra a concentração da produção de manufaturados para exportação no Sul Global. Nessas condições ocorre a transferência para o Norte Global da maior parte do valor criado pela superexploração dos trabalhadores. O imperialismo promove a arbitragem dos salários entre os países periféricos, deslocando a produção para os locais de salários mais baixos. Essa superexploração decorre dos salários abaixo do valor da força de trabalho.

As cadeias globais de mercadorias experimentaram rápido aumento dos empregos: de 296 milhões de trabalhadores em 1995 para 453 milhões em 2013. Intan Suwandi (2019), em seu livro Cadeias de Valor, explica o controle tecnológico hierárquico, por meio de direitos de propriedade e políticas governamentais, no Norte Global e os elos dependentes da produção industrial no Sul Global. Empresas nativas da periferia são contratadas para produzir sobretudo nos elos inferiores das cadeias de valor, satisfazendo os padrões impostos, pelo capital estrangeiro contratante, sobre design, tecnologia, processo de trabalho. Nessas cadeias, em alguns setores, na periferia também atuam as próprias firmas estrangeiras, em decorrência dos seus investimentos diretos. Suwandi enfatiza: em primeiro lugar, a descentralização das cadeias de mercadorias não gerou a descentralizaç ão do poder; e segundo, a complexidade das cadeias produtivas não eliminou as hierarquias imperialistas.

No seu livro Imperialismo Global, Ernesto Screpanti (2014) argumenta que, das três funções necessárias à governança global, os Estados Unidos têm recursos para o papel de xerife mundial, mas não conseguem mais ser o impulsionador da economia e o banqueiro global. Screpanti aponta a permanência das multinacionais como protagonistas principais, articuladas aos seus Estados nacionais, do imperialismo que agora engolfa mais claramente todo o planeta. Ele descreve minuciosamente os tratados, as políticas e os instrumentos que o FMI, o Banco Mundial e a OMC utilizaram para arrombar as portas das economias nacionais na periferia e impor o neoliberalismo e imperialismo. Nessa base, recrudesceram as contradições entre a classe trabalhadora e o capital, de um lado, e entre as grandes potências e os países periféricos, de outro.

Haveria em curso um processo de convergência, aplainamento, harmonização, equalização das economias nacionais no mundo? Todos estão ganhando? A globalização acelerou os fluxos de investimentos externos diretos (IED) para a periferia capitalista, é fato. Desde 2010, a maior parte do IED vai para a periferia, inclusive o Brasil, país de capitalismo dependente, é um dos grandes e principais receptores desses recursos. O que esses investimentos significam para a superação dependência e o fim do subdesenvolvimento nos países periféricos? Sobre isso, Paul Baran e Paul Sweezy (1966, p. 107-8) já tinham desvanecido as vãs esperanças: “a exportação de capitais…é o mais eficiente mecanismo de transferência de mais-valor gerado no exterior em favor do país investidor”.

Na atual conjuntura há um debate interminável sobre o fim ou não do neoliberalismo. A verdade é que, apesar de todas as suas crises, o neoliberalismo sobretudo com a sua faceta de economia política, dentre outras, ainda sobrevive. Isso se dá especialmente pelo poder das oligarquias financeiras, como é patente no caso neoliberal brasileiro. Para Gary Gerstle, em seu livro A ascensão e Queda da Ordem Neoliberal, publicado no ano passado, a chamada era do livre mercado no mundo surgiu na década de 1980, alcançou seu apogeu na globalização dos anos 1990 e 2000, foi abalada pela crise de 2008 e está sendo desmantelada desde então. O fator principal, segundo Gerstle, para o neoliberalismo se consolidar e se globalizar foi a queda do comunismo soviético entre 1989 e 1991. Ele destaca que dois sistemas se confrontaram durante 75 anos, determinando as característica s da ordem internacional. Gerstle critica o menosprezo desse processo entre EUA e URSS na maioria das análises sobre o neoliberalismo, bem como o seu impacto na evolução política doméstica nos Estados Unidos, a exemplo da ascensão de Ronald Reagan.

Algumas marcas do processo de desmantelamento da ordem neoliberal tem sido o recuo do comércio global, o protecionismo (Trump e outros), a xenofobia do Brexit, as políticas de intervenção econômica de Biden com planos trilionários para infraestruturas físicas e sociais como uma nova versão do American First. Com a guerra da Ucrânia, confirmou-se o estado de nova guerra fria, por meio da polarização entre Estados Unidos, Europa, Japão e aliados, de um lado, e China, Rússia e aliados, de outro.

Gerstle (2022, p. 290), examinando a política interna americana, denuncia que a “ordem neoliberal…tolerou níveis extremos de desigualdade; ignorou o problema do encarceramento em massa e as perdas maciças pelas famílias na Grande Recessão, legitimou uma guerra contra o Iraque sem razão e, em seguida, um golpe imprudente na reconstrução que falhou no Iraque e que espalhou miséria adicional para grande parte do Oriente Médio”. Ele conclui que hoje “reinam desordem política e disfunção”.

Esse cenário de caos aproxima-se do diagnóstico de Helen Thompson, em seu livro Desordem: tempos difíceis no século XXI, também publicado em 2022. Thompson avalia que já bem antes da crise de 2007-2008 acumularam-se múltiplas causas para a disrupção da década de 2010. Assim, as origens dos problemas vêm dos processos dos anos 1970, a saber: geopolítica do petróleo, revolução iraniana, começo das reformas de mercado na China, dificuldades dos Estados Unidos na Eurásia, imensos empréstimos dos mercados de eurodólar.

Voltemos a Lenin e à sua válida interpretação do imperialismo. Então, devemos considerar suas palavras sobre as ilusões propagadas e propagandeadas pela expansão internacional do capital. Nos marcos da globalização, intensificaram-se e adquirem novas formas os processos de investimentos externos diretos e as cadeias globais de valor. Para não se confundir sobre a natureza dessa penetração imperialista na periferia, convém prestar a atenção ao que o líder soviético afirma no prefácio às edições francesa e alemã do livro Imperialismo: fase superior do capitalismo: “A construção de ferrovias é aparentemente um empreendimento simples, natural, democrático, cultural, civilizador: assim a apresentam os professores burgueses… Na realidade, os múltiplos laços capitalistas…transformaram essa construção num instrumento para oprimir um bilhão de pessoas…mais da metade da população da Terra nos países dependentes e os escravos assalariados do capital nos países ‘civilizados’”.

Capitalismo dependente e escravos assalariados! Era essa a linguagem de Lenin. Era essa a chave para avaliação da situação internacional. Agora, tanto o capitalismo dependente dos países periféricos e dos chamados emergentes quanto os escravos assalariados sofrem ainda mais opressão, porque há um imbricamento muito complexo entre neoliberalismo, neofascismo e reconfiguração do imperialismo, entre economia, política e ideologia. Ademais, agora, do conjunto de instituições internacionais, duas se destacam e polarizam a cena mundial, como uma dobradinha dos infernos: FMI (ver a situação da Argentina, oligarquia financeira) e OTAN (ver Ucrânia, corrida armamentista).

O problema é que as correntes progressistas ainda não conseguem, neste momento histórico, alterar a correlação de forças para impor uma nova era pós-neoliberal. O imbricamento complexo descrito acima bloqueia a mudança. É verdade que há algumas grandes lutas unitárias de massas como as greves dos trabalhadores franceses contra a reforma da previdência, mas o neoliberalismo ignorou-as olimpicamente, passou por cima. Também é verdade que há algumas poucas vitórias eleitorais de forças progressistas em contraste com o predomínio da direita tradicional e, pior, o avanço do neofascismo no mundo. Contudo, em geral, há ainda mais sombras do que luzes. É a hora dos monstros, alertava Gramsci. Há, também, não se deve esquecer, a dialética entre o horror e a liberdade.
 

REFERÊNCIAS

BARAN, Paul A.; SWEEZY, Paul M. Monopoly Capital. New York: Monthly Review Press, 1966.

FRIEDMAN, Thomas L. Com a guerra de chips, EUA passa a enfrentar a China ao mesmo tempo que luta com a Rússia. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 out. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thomas-l-friedman/2022/10/com-guerra-de-chips-eua-passa-a-enfrentar-a-china-ao-mesmo-tempo-que-luta-com-a-russia.shtml.

GERSTLE, Gary. The rise and fall of the neoliberal order: America and the world in

the free market era. New York, NY: Oxford University Press, 2022.

LENIN, V. I. O Imperialismo, etapa superior do capitalismo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2011.

SCREPANTI, Ernesto. Global imperialism and the great crisis. New York: Monthly Review Press, 2014.

SMITH, John. Imperialism in the twenty-first century: globalization, super-exploitation, and capitalism’s final crisis. New York: Monthly review Press, 2016.

SUWANDI, Intan. Value chains: the new economic imperialism. New York: Monthly Review, 2019.

THOMPSON, Helen. Disorder: hard times in the 21th century. Oxford, UK: Oxford University Press., 2022.

NOTA
O autor admite a incompletude desse artigo pela falta da avaliação sobre a China. Renildo esclarece que ele tem uma visão crítica sobre aspectos gerais da orientação da China (ver o livro Estado e Capital na China, 2018). Se o artigo abordasse a questão chinesa, o texto seria conduzido para um rumo indesejado pelo autor neste espaço.

Onde cabe quase tudo - sem preconceito nem sectarismo https://tinyurl.com/3y677r7f

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