E as milícias vão à praia
Enio Lins
Alvo da cobiça privatista há séculos, as praias brasileiras seguiram como propriedade pública, como bem resume o Valor Econômico: “as praias pertencem à União e são geridas pela Marinha. Os ‘terrenos de marinha’ são as áreas situadas na costa marítima em faixa de 33 metros a partir de uma linha média traçada em 1831”. Nesses 193 anos, essa legislação garantiu que qualquer pessoa desfrutasse dos prazeres praieiros, como sentar-se na areia, jogar bola, dar tibungos nas águas salgadas, surfar, nadar, farofar... Esse domínio público em nada atrapalhou a instalação de complexos hoteleiros e habitacionais que respeitassem tal determinação.
AMEAÇA REAL
Na segunda-feira, 27, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado realizou uma audiência pública para discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que “transfere terrenos sob gestão da Marinha para estados, municípios ou proprietários privados (!)”. O relator do projeto é o senador Zero-Um, que achou melhor jair apresentando seu parecer favorável. E, na cara de madeira, justificou a mamata: “há, no Brasil, inúmeras edificações realizadas sem a ciência de estarem localizadas em terrenos de propriedade da União", segundo o Valor Econômico, que apresenta outro argumento do relator: “a origem do atual domínio sobre as praias foi estabelecido sob a justificativa de necessidade de defesa do território contra invasão estrangeira, ‘razões que não estão mais presente s’”. Pergunta-se ao nobre senador: se a possibilidade de invasões estrangeiras pelo mar não está mais presente, seria o caso de manter a Marinha de Guerra brasileira?
CORSÁRIOS NAS PRAIAS
Argumenta o nobre relator que a mudança constitucional seria “necessária para regularizar as propriedades localizadas dentro dessas áreas, hoje da Marinha”. Zero-Um achou melhor jair virando um defensor de invasões? Avisou aos movimentos sem-terra dessa sua nova posição? Ele e a turma dele não se roem, ou se roíam, de ódio aos invasores de áreas rurais e urbanas? O fato é que tal qual os corsários de mar aberto, esses ricos piratas “sem-praia”, pretendem se apossar das mais valiosas áreas litorâneas do mundo – com a devida cumplicidade e conivência do patriotarismo encastelado no Congresso Nacional brasileiro.
MILÍCIA IMOBILIÁRIA
Como se pode ler no noticiário policial, ousadas ações imobiliárias passaram a ser uma das marcas das milícias (que têm no Rio de Janeiro seu principal laboratório) no esforço de abrir novas áreas de atuação para além dos nichos tradicionais de assassinatos por encomenda, tráfico, sequestros, e chantagens sobre demais grupos criminosos. Na delação premiada do miliciano Ronnie Lessa, ele explicou: como “parte do plano de assassinar a vereadora Marielle Franco, proposto pelos irmãos Brazão, ganharia dois loteamentos em Jacarepaguá, que renderia mais de 20 milhões de dólares em lucro”, relata reportagem n’O Globo. E o miliciano e ex-oficial da PM carioca, Capitão Adriano da Nóbrega, foi condecorado em junho de 2005 pelo então deputado estadual carioca Zero-Um, e homenageado com emocionado discurso por Zero-Zero, então deputado federal, em outubro do mesmo ano. Nóbrega, hoje finado, não pode comparecer às homenagens porque estava preso. Sua viúva, Julia Lotufo, declarou à Veja que o marido “investia dinheiro da contravenção em negócios imobiliários na comunidade de Rio das Pedras, onde teria aproximadamente 300 imóveis”. Pois é, essa expertise agora vem dar à praia.
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