História estranha
Luis Fernando Verissimo
Um homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com sete anos de idade. Está com quarenta, quarenta e poucos. De repente dá com ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde está a sua babá fazendo tricô. Não tem a menor dúvida de que é ele mesmo. Reconhece a sua própria cara, reconhece o banco e a babá.
Tem
uma vaga lembrança daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no parque quando de repente
aproximou-se um homem e… O homem aproxima- se dele mesmo. Ajoelha-se, põe as
mãos nos seus ombros e olha nos seus olhos. Seus olhos se enchem de lágrimas.
Sente uma coisa no peito. Que coisa é a vida. Que coisa pior ainda é o tempo.
Como
eu era inocente. Como meus olhos eram limpos. O homem tenta dizer alguma coisa,
mas não encontra o que dizer. Apenas abraça a si mesmo, longamente. Depois sai
caminhando, chorando, sem olhar para trás.
O
garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. Também se reconheceu. E
fica pensando, aborrecido: quando eu tiver quarenta, quarenta e poucos anos,
como eu vou ser sentimental!
Vivendo
e…
Eu
sabia fazer pipa e hoje não sei mais. Duvido que se hoje pegasse uma bola de gude conseguisse equilibrá-la
na dobra do dedo indicador sobre a unha do polegar, quanto mais jogá-la com a
precisão que tinha quando era garoto. Outra coisa: acabo de procurar no dicionário,
pela primeira vez, o significado da palavra “gude”.
Quando
era garoto nunca pensei nisso, eu sabia o que era gude. Gude era gude.
Juntando-se
as duas mãos de um determinado jeito, com os polegares para dentro, e
assoprando pelo buraquinho, tirava-se um silvo bonito que inclusive variava de
tom conforme o posicionamento das mãos. Hoje não sei mais que jeito é esse. Eu
sabia a fórmula de fazer cola caseira. Algo envolvendo farinha e água e muita
confusão na cozinha, de onde éramos expulsos sob ameaças. Hoje não sei mais. A
gente começava a contar depois de ver um relâmpago e o número a que chegasse
quando ouvia a trovoada, multiplicado por outro número, dava a distância exata
do relâmpago. Não me lembro mais dos números.
Ainda
no terreno dos sons: tinha uma folha que a gente dobrava e, se ela rachasse de
um certo jeito, dava um razoável pistom em miniatura. Nunca mais encontrei a
tal folha. E espremendo-se a mão entre o braço e o corpo, claro, tinha-se o
chamado trombone axilar, que muito perturbava os mais velhos. Não consigo mais
tirar o mesmo som. É verdade que não tenho tentado com muito empenho, ainda
mais com o país na situação em que está. Lembro o orgulho com que consegui,
pela primeira vez, cuspir corretamente pelo espaço adequado entre os dentes de
cima e a ponta da língua de modo que o cuspe ganhasse distância e pudesse ser
mirado. Com prática, conseguia-se controlar a trajetória elíptica da cusparada
com uma mínima margem de erro. Era puro instinto. Hoje o mesmo feito requereria
complicados cálculos de balística, e eu provavelmente só acertaria a frente da
minha camisa. Outra habilidade perdida.
Na
verdade, deve-se revisar aquela antiga frase. É vivendo e desaprendendo. Não
falo daquelas coisas que deixamos de fazer porque não temos mais as condições
físicas e a coragem de antigamente, como subir em bonde andando – mesmo porque
não há mais bondes andando. Falo da sabedoria desperdiçada, das artes que nos
abandonaram.
Algumas
até úteis. Quem nunca desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto para acertar
em algum alvo contemporâneo, bem no olho, e depois sair correndo? Eu já.
[Ilustração
do site https://contobrasileiro.com.br/]
Leia: Comunicação digital entre a virtude e a culpa e a luta política https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/minha-opiniao_13.html
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