Segurança e soberania na era digital: o exemplo da China
Como a Lei de Segurança Nacional de 2015 estabelece as bases jurídicas da soberania digital na China
Camila Modanez/Vermelho
A ideia de segurança nacional passou por uma profunda transformação nas últimas décadas. Já não se trata apenas da proteção de fronteiras físicas ou da defesa militar clássica, mas também da capacidade de um Estado preservar sua autonomia diante de ameaças que atravessam redes, plataformas e fluxos invisíveis. Nesse sentido, o ciberespaço deixou de ser apenas um domínio técnico para se tornar um campo central da disputa geopolítica global.
A China compreendeu essa mudança antes de muitos. Ainda em 2015, ao promulgar sua nova Lei de Segurança Nacional, o governo chinês consolidou uma visão ampliada de soberania, que incorpora o digital como dimensão estratégica da segurança do Estado. Mesmo sem nomear diretamente a internet em seus primeiros artigos, a lei estrutura um arcabouço no qual dados, tecnologia, redes de informação e inovação científica são tratados como elementos fundamentais da defesa nacional.
A centralidade do Partido Comunista, a integração entre segurança política, tecnológica e econômica, e o dever cívico de proteger a estabilidade do sistema compõem uma arquitetura que revela muito sobre como a China entende o mundo (e seu papel nele). A partir dessa lei, começa a ganhar forma o modelo chinês de ciber-soberania: um projeto de controle normativo sobre o ciberespaço que rejeita a universalidade liberal e reafirma o protagonismo do Estado na definição das regras do jogo digital.
Promulgada em julho de 2015, a Lei de Segurança Nacional da República Popular da China surge em um momento de profunda reconfiguração da política interna chinesa e do cenário global. Internamente, o país passava por um processo de recentralização do poder político sob Xi Jinping, que havia assumido a presidência dois anos antes, prometendo fortalecer o Estado, combater a corrupção e garantir a “rejuvenescência nacional”. Externamente, cresciam as tensões com os Estados Unidos em torno da segurança cibernética, da espionagem digital e da hegemonia tecnológica.
É nesse contexto que a nova Lei de Segurança Nacional inaugura o que passou a ser conhecido como a doutrina da “segurança nacional abrangente”: uma formulação que rompe com os limites tradicionais entre segurança militar e segurança civil. Para o Estado chinês, segurança agora inclui tudo: política, economia, sociedade, meio ambiente, religião, cultura, ciência, tecnologia, e, ainda que não nomeado nos artigos iniciais, o ciberespaço como extensão do território nacional.
A lei não é um manual técnico, tampouco uma norma puramente reativa. Ela é um ato político fundacional, que estabelece juridicamente o direito (e o dever) do Estado chinês de controlar e proteger todas as dimensões da vida nacional contra ameaças internas e externas, sejam elas visíveis ou invisíveis. E, ao fazer isso, a China cria a base normativa sobre a qual será construída a arquitetura legal da soberania digital à chinesa nos anos seguintes.
Não se trata apenas de proteger o Estado contra ataques. Trata-se de garantir que as infraestruturas críticas de informação, os dados sensíveis, as tecnologias estratégicas e os fluxos digitais permaneçam sob supervisão estatal, como condição da própria soberania. A leitura atenta da lei revela que ela antecipa, e, principalmente, legitima, muitas das decisões que viriam a marcar a política digital da China nos anos seguintes.
Segurança nacional como soberania
Logo em suas disposições gerais, a lei introduz uma concepção ampliada de segurança: não mais restrita à integridade territorial ou à defesa militar, passa a englobar a estabilidade política, o bem-estar do povo e o desenvolvimento econômico. A noção de “segurança nacional abrangente” funciona aqui como um conceito guarda-chuva, sob o qual quase tudo pode ser incluído, inclusive o ciberespaço, embora ainda sem destaque direto nesse momento. O ponto central está na afirmação da autoridade absoluta do Partido Comunista Chinês sobre os assuntos de segurança, reforçando a soberania política como eixo da estabilidade social e do controle estatal. A lógica é clara: sem estabilidade, não há desenvolvimento; sem controle, não há soberania. O digital, ainda que sutil, já est&aacut e; presente nesse raciocínio.
O Estado como defensor do ciberespaço nacional
É no segundo capítulo que a soberania digital aparece com nitidez. O texto explicita a proteção de redes, dados, sistemas de informação e infraestrutura crítica como tarefas centrais do Estado. Os artigos 24 e 25 deixam claro que a autossuficiência tecnológica e a segurança cibernética são não apenas prioridades de desenvolvimento, mas exigências de soberania. Fica estabelecido que o Estado deve estimular a inovação em tecnologias estratégicas, proteger segredos industriais, desenvolver sistemas próprios e prevenir ameaças como espionagem, invasões e manipulação de dados. Aqui, o digital se converte em território a ser defendido, e o Estado assume o papel de guardião do ciberespaço nacional.
Organização do aparato soberano e o sistema de vigilância e resposta
Para que essa defesa seja efetiva, a lei define as competências das instituições centrais do Estado, das forças armadas, da inteligência e da justiça. A soberania digital, portanto, não é apenas um princípio: ela se traduz em atribuições administrativas concretas. Ademais, estabelece uma infraestrutura nacional de inteligência, monitoramento e revisão de riscos, incluindo a obrigação de revisar investimentos estrangeiros em setores considerados estratégicos, como telecomunicações, tecnologia da informação e dados. Trata-se de uma arquitetura de vigilância legalizada, voltada à prevenção e à neutralização de ameaças digitais e informacionais. O firewall digital chinês, por exemplo, não é um improviso técnico, mas uma política respaldada juridicamente pela idei a de segurança soberana.
Tecnologia como política de Estado
Em vez de tratar a ciência e tecnologia como um setor técnico, a lei as insere no centro da política de segurança nacional. O Estado se compromete a investir em pesquisa, desenvolvimento e inovação, especialmente em áreas consideradas sensíveis. A proteção de propriedade intelectual e o estímulo a tecnologias nacionais não são vistos como metas de mercado, mas como imperativos de soberania. Ao mesmo tempo, a legislação prevê campanhas públicas de educação, propaganda e conscientização sobre segurança nacional, inclusive em escolas. Essa pedagogia da segurança mostra que o Estado chinês entende que a soberania digital também é uma disputa simbólica e cultural.
Cidadãos como co-responsáveis pela segurança digital
A relação entre Estado e indivíduo é reconfigurada: os cidadãos e organizações passam a ter o dever legal de colaborar com os órgãos de segurança, inclusive oferecendo informações e apoio técnico. Ao mesmo tempo, a lei prevê que direitos individuais podem ser restringidos em nome da segurança nacional, desde que com base legal. A soberania digital aqui é pensada coletivamente, não individualmente: o interesse do Estado sobrepõe-se às liberdades civis, e a proteção do ciberespaço é tratada como responsabilidade compartilhada entre governo, empresas e sociedade. Isso marca um ponto de inflexão em relação à visão liberal da internet como espaço de autorregulação e direitos individuais.
Aplicação imediata e abrangente
Por fim, a lei determina sua entrada em vigor imediata, sem depender de regulamentações complementares. Isso reforça sua natureza de instrumento de poder soberano direto, aplicável a todos os níveis do Estado e da sociedade, inclusive ao ciberespaço. Em termos simbólicos, é como se a China dissesse ao mundo: “a soberania digital não é uma ideia futura, mas uma prática presente”.
A Lei de Segurança Nacional da China (2015) representa um marco político-jurídico fundamental na consolidação de uma concepção ampla de soberania, moldada pelas transformações do século 21. Longe de restringir-se à defesa territorial clássica, o texto legal incorpora dimensões vitais da vida moderna, como tecnologia, informação, redes digitais, inovação científica e estabilidade social, entendendo-os como partes constitutivas de um projeto soberano integrado.
No centro dessa concepção está a ideia de que a soberania é indivisível: não há soberania política sem soberania digital, nem autonomia econômica sem controle sobre os fluxos de dados, os sistemas técnicos e as infraestruturas críticas que sustentam a vida nacional. Essa visão reflete um entendimento profundo de que, no mundo atual, a segurança do Estado e o bem-estar do povo dependem diretamente da capacidade de proteger e desenvolver as bases tecnológicas que sustentam a sociedade.
A Lei estabelece fundamentos normativos claros para o exercício dessa soberania. Ao posicionar o Partido Comunista como condutor do processo, e ao integrar ciência, inovação e cultura como dimensões da segurança nacional, ela expressa a opção por um modelo de desenvolvimento centrado no fortalecimento da capacidade estatal, na coesão interna e na antecipação de riscos sistêmicos, inclusive no ciberespaço.
Mais do que um instrumento de defesa, a Lei de Segurança Nacional é uma plataforma de construção de futuro, que permitiu à China enfrentar os desafios impostos por um sistema internacional ainda marcado por desigualdades, disputas tecnológicas e tentativas de contenção estratégica.
Para os países do Sul Global, essa experiência oferece lições valiosas. Em vez de aceitar a condição de receptores passivos de tecnologias e normas produzidas nos centros imperialistas, a China demonstrou que é possível formular uma estratégia soberana de inserção digital, ancorada em planejamento estatal, produção científica e regulação ativa dos interesses nacionais.
A Lei de 2015, portanto, não apenas afirma a soberania digital como dimensão inseparável da soberania nacional, mas projeta uma concepção de segurança que está intimamente ligada à justiça social, à coesão interna e à autodeterminação dos povos. Um caminho que, longe de ser imitado mecanicamente, merece ser estudado, compreendido e debatido com seriedade por todos aqueles que lutam por um mundo multipolar, justo e tecnicamente soberano.
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