20 setembro 2025

Palavra de poeta

O CHEIRO DA TANGERINA
Ferreira Gullar        

Com raras exceções
os minerais não têm cheiro

quando cristais
nos ferem 
quando azougue
nos fogem 
e nada há em nós que a eles se pareça

exceto
os nossos ossos
os nossos
dentes
que são no entanto
porosos 
e eles não: os minerais não respiram.

E a nada aspiram 
(ao contrário 
da trepadeira 
que subiu até debruçar-se 
no muro
em frente a nossa casa 
em São Luís 
para espiar a rua 
e sorrir na brisa).

Rígidos em sua cor 
os minerais são apenas 
extensão e silêncio. 
Nunca se acenderá neles
– em sua massa quase eterna –
um cheiro de tangerina.

Como esse que vaza 
agora na sala
vindo de uma pequena esfera 
de sumo e gomos 
e não se decifra nela 
inda que a dilacere 
e me respingue
o rosto e me lambuze os dedos 
feito uma fêmea.

E digo
– tangerina
e a palavra não diz o homem 
envolto nessa 
inesperada vertigem 
que vivo agora
a domicílio
(de camisa branca 
e chinelos
sentado numa poltrona) enquanto 
a flora inteira
sonha à minha volta
porque nos vegetais 
é que mora o delírio.

Já os minerais não sonham
exceto a água
(velha e jovem) 
que está no fundo do perfume.

Mineral
ela não tem no entanto forma
ou cor. 
Invertebrada
ajusta-se a todo espaço.
Clara
busca as profundezas 
da terra
e a tudo permeia 
e dissolve
aos sais 
aos sóis

traduz um reino no outro
liga
a morte e a vida 
ah sintaxe do real
alegre e líquida!

Como o poema, a água
jamais é encontrada em estado puro
e pesa nas flores
como pesa em mim
(mais que meus documentos e roupas
mais que meus cabelos
minhas culpas)
e adquire
em meu corpo
esse cheiro de urina 
como
na tangerina 
adquire 
seu cheiro de floresta.

Esse cheiro
que agora me embriaga
e me inverte a vida
num relance num
relâmpago 
e me arrasta de bruços
atropelado
pela cotação do dólar.

E não obstante
se digo – tangerina
não digo a sua fresca alvorada

que é todo um sistema
entranhado nas fibras
na seiva
em que destila
o carbono
e a luz da manhã

(durante séculos
no ponto do universo
onde chove 
uma linha azul de vida abriu-se em folhas
e te gerou
tangerina
mandarina
laranja da China
para
esta tarde
exalares teu cheiro
em minha modesta residência)

jovem cheiro
que nada tem da noite do gás metano
ou da carne que apodrece
doce, nada
do azinhavre da morte
que certamente
também fascina
e nos arrasta
à sua festa escura
próxima ao coito
anal
ao minete
ao coma
alcoólico 
coisas de bicho 
não de plantas
(onde a morte não fede) 
coisas 
de homem
que mente 
tortura 
ou se joga do oitavo andar

não de plantas e frutas
não dessa
fruta
que dilacero 
e que solta 
na sala (no século)
seu cheiro
seu grito
sua
notícia matinal.

[Ilustração: Dionísio del Santo]

Leia também "Os teus pés", poema de Pablo Neruda https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/palavra-de-poeta_13.html 

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