Como o Legislativo capturou o Orçamento
Estudo da UFRJ disseca as emendas parlamentares, uma deformação que corrói a política brasileira. Quais suas modalidades e como surgiram. Como fragmentam o fundo público e o desviam para corrupção eleitoral. Por que isso só ocorre no Brasil
Glauco Faria/Outras Palavras
O fortalecimento do Legislativo diante dos outros dois Poderes nos últimos anos, e a captura do Orçamento Público que ele promove, quase nunca são tratados da forma como merecem. Em geral, são banalizados como se fossem apenas uma expressão do jogo de poder político. Ou então, como mais um dado da paisagem de Brasília, em que personagens se sucedem num enredo no qual se discute se o governo perdeu ou não, ou se os parlamentares estão “insatisfeitos” com determinada medida do Judiciário. O quadro é bem mais grave do que sugerem os comentaristas da mídia corporativa e traçar o caminho que nos trouxe até aqui é essencial para compreender o grau de deformação do nosso sistema político.
Por isso, é tão importante o relatório “As emendas parlamentares no Brasil e no Mundo”, elaborado pelo Laboratório de eleições, Partidos e Política Comparada (Lappcom) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir de vasta pesquisa, o estudo recupera a trajetória do principal instrumento que tornou o Congresso Nacional capaz de renegar o diálogo com o Executivo para avançar em suas prerrogativas orçamentárias.
“Mais do que simples instrumentos de alocação de recursos, as emendas se tornaram expressão de um conflito federativo: de um lado, o Executivo busca preservar sua capacidade de conduzir a política econômica e coordenar prioridades nacionais; de outro, o Legislativo amplia sua autonomia e fragmenta o orçamento em múltiplos interesses locais”, destaca a coordenadora do Lappcom, Mayra Goulart.
Ela pontua ainda que não se trata de um simples embate entre Executivo e Legislativo, mas algo que reconfigura o arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988. Seu sentido é de uma “uma ameaça republicana”, já que “corrói a lógica universalista de provisão de direitos e aprofunda um afastamento entre representantes e representados”, aponta Mayra. “O resultado é um fechamento do Congresso em torno de suas próprias lógicas de autopreservação, desconectando-se das preferências populares.”
O ocaso de um modelo
Desde a redemocratização, o modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil funcionou basicamente de dois modos na relação Executivo-Legislativo. O governo tentava garantir um apoio parlamentar mais fiel e perene, negociando com os partidos cargos nos ministérios e em outros escalões do aparelho estatal. Em votações mais problemáticas, nas quais era necessário um esforço maior para obter a maioria, também eram acionadas negociações pontuais de forma individual com parlamentares, mesmo aqueles que não faziam parte da base governista. Neste caso, a moeda de troca era o destravamento de emendas e a liberação de recursos.
Este cenário começa a mudar em 2015. A Emenda Constitucional 86 tornou impositivas as emendas individuais dos parlamentares, garantindo a elas ainda uma reserva de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União. Estas emendas também passaram a ter uma espécie de salvaguarda em relação ao contingenciamento de recursos, um artifício usado pelo Executivo para restringir a execução do Orçamento. Elas somente podem ser contingenciadas de forma proporcional às despesas discricionárias.
Assim, mesmo o chamado “baixo clero”, aquela parcela do Congresso Nacional apartada das lideranças políticas da Casa e das direções dos partidos, passou a ter em mãos um instrumento poderoso de articulação política local, aumentando ainda seu poder de barganha com o Executivo. À época, um deputado que fazia parte do segmento celebrou a decisão.
Em entrevista à jornalista Mariana Godoy, na RedeTV!, o então deputado federal fluminense do PP, Jair Bolsonaro, afirmava que, com a mudança promovida pela Emenda Constitucional 86, o governo não poderia mais “chantagear” o Legislativo. “O que um parlamentar tem para negociar em Brasília? É seu voto. Esse Congresso melhorou muito em relação ao do passado, em especial, graças ao atual presidente, Eduardo Cunha, que aprovou uma PEC, proposta de emenda à Constituição, que trata do Orçamento impositivo”, disse. Questionado sobre o governo ficar refém do Congresso Nacional, Bolsonaro respondeu: “Não fica refém. O governo não está refém, o governo tem de respeitar. Somos três Poderes aqui”.
As declarações do parlamentar foram resgatadas por deputados em fevereiro de 2020 quando ele, agora na condição de presidente da República, resistia em negociar com o Legislativo um pacto que permitia ao Congresso indicar a prioridade de execução de todos os R$ 16 bilhões de emendas parlamentares e de R$ 15 bilhões dos R$ 30 bilhões aprovados no Orçamento como emendas de relator. Mais adiante, Bolsonaro cederia bem mais do que isso.
A evolução das emendas
O confronto entre o deputado Bolsonaro e o presidente Bolsonaro evidencia como alterações casuísticas, tomadas diante de certa indiferença da sociedade em função de disputas políticas de momento, podem resultar em grandes distorções e conflitos no âmbito institucional.
A transformação iniciada em 2015 foi aprofundada em 2019, quando a Emenda Constitucional nº 100 determinou a execução obrigatória das emendas das bancadas estaduais no Congresso, conferindo maior poder coletivo a elas e ampliando o alcance da influência direta dos parlamentares no destino dos recursos. No mesmo ano, surgiu um novo instrumento, a “transferência especial”, instituída pela Emenda Constitucional nº 105, conhecida mais tarde como “emenda Pix” (RP 7). Essa modalidade permitiu repasses diretos da União a estados e municípios sem nenhuma necessidade de convênios ou planos de trabalho, sob o argumento de agilizar a execução e reduzir a burocracia.
A opacidade era tal que a medida que acabou provocando, mais tarde, um debate sobre transparência e controle, culminando na suspensão temporária pelo STF, em 2024 e, posteriormente, na imposição de regras mais rígidas por meio da Lei Complementar nº 210/2024.
Em seu conjunto, estas medidas produziram um aumento exponencial do volume de recursos públicos controlado de forma fragmentada pelos parlamentares — e subtraído, portanto do planejamento da União. relatório do Lappi-UFRJ descreve que, entre 2014 e 2016, no governo Dilma, o total empenhado em emendas foi de R$ 21,79 bilhões, enquanto no governo Temer, o valor saltou para R$ 37,35 bilhões. Já na gestão Bolsonaro, o montante atingiu R$ 108,36 bilhões, consolidando as emendas como peça central da política orçamentária. Posteriormente, no governo Lula 3, até 2024, o volume chegou a R$ 80,19 bilhões, com autorização de mais R$ 50 bilhões para 2025.
Essa curva de crescimento não se deu da mesma forma entre os diferentes tipos de emenda. As individuais, por exemplo, tiveram aumentos sucessivos até dobrarem de peso entre Bolsonaro e Lula, enquanto as de bancada avançaram em ritmo acelerado a partir de 2016. As de comissão, por muito tempo coadjuvantes na definição do orçamento já que não são impositivas, tiveram uma explosão, com um crescimento de um crescimento de 2967,24% entre as gestões Bolsonaro e Lula.
O auge de todo esse processo foi o uso, entre 2020 e 2022, das chamadas emendas de relator (RP 9), núcleo do “orçamento secreto”, com poder discricionário de distribuição de verbas. Nesse último ano, elas foram declaradas inconstitucionais pelo STF, por falta de transparência e critérios específicos.
Na prática, o que antes era um recurso acessório e importante em termos de complementariedade de políticas públicas tornou-se um canal gigantesco de drenagem orçamentária. O Legislativo conquistou poder sem precedentes sobre os cofres públicos, em um movimento que reforça sua centralidade e impõe dilemas como a ausência de transparência, a emergência de um novo tipo de clientelismo e, sobretudo, a redefinição a governabilidade.
O orçamento brasileiro diante das experiências internacionais
Com o nítido cenário de crise permanente, resultante deste empoderamento do Legislativo, fica a questão: o Brasil, mais uma vez, adotou um modelo que poderia ser apelidado no jargão político como “jabuticaba”, por só existir aqui? Nesse aspecto, o relatório traz uma análise comparativa para situar o sistema brasileiro modificado a partir de 2015 em relação a outras experiências internacionais.
O estudo destaca que o constitucionalista britânico Philip Norton distinguiu três tipos de Legislativos: os que efetivamente fazem políticas (policy-making), os que apenas influenciam (policy-influencing) e os que pouco ou nada decidem, limitando-se a ratificar a vontade do Executivo. Em 2021, o cientista político alemão especialista em orçamento público Joachim Wehner aplicou essa tipologia ao campo orçamentário, mostrando que alguns parlamentos elaboram e substituem orçamentos inteiros, outros apenas os emendam, enquanto muitos simplesmente se limitam a carimbar as decisões do Executivo.
No Reino Unido, por exemplo, mesmo após a Revolução Gloriosa de 1688 o Parlamento nunca assumiu o papel de formulador de políticas públicas. A ascensão dos partidos no século XIX consolidou a primazia do Executivo, transformando o Legislativo num espaço mais de controle e ritual do que de criação. “O modelo inglês, conhecido como modelo de Westminster, enfatiza a supervisão ex post, mas com influência limitada na fase de aprovação e uma quase incapacidade de, na prática, usar poderes de emenda — pois isso seria equiparado a um voto de desconfiança em relação ao governo”, pontuam os pesquisadores.
Essa mesma lógica se reproduz em boa parte do continente europeu, onde a capacidade de intervenção parlamentar sobre os orçamentos é limitada, quase sempre subordinada ao equilíbrio macroeconômico e às prioridades do governo. Na França, o artigo 49.3 da Constituição permite que o Executivo imponha orçamentos sem votação, sob risco apenas de censura parlamentar. Graças a este instrumento, François Bayrou, então o quarto primeiro-ministro do atual mandato do presidente Emmanuel Macron, impôs, em fevereiro, o orçamento para 2025. Mesmo em países com maior abertura, como Portugal ou Bélgica, o peso das emendas é residual, e sua execução depende da correlação política de forças.
Já na África, conforme a pesquisa, observa-se uma diversidade maior. O Quênia, por exemplo, fortaleceu seu Legislativo após a Constituição de 2010. O ciclo orçamentário é iniciado com a formulação do orçamento pelo Executivo, que estabelece uma proposta formal, o Budget Policy Statement (BPS). O Parlamento, por meio de seu Comitê de Orçamento e Assuntos Fiscais, analisa o texto e pode propor emendas, com alocações dentro de certos limites legais. Além disso há audiências públicas para coletar contribuições da sociedade civil. Ainda assim, a execução do orçamento aprovado fica a cargo do Executivo, que está sujeito à fiscalização parlamentar.
Zâmbia e Gana criaram fundos de desenvolvimento distrital, que territorializam recursos públicos, o que também acabou gerando tensões locais. Os ganeses contam com o Fundo Comum das Assembleias Distritais [District Assemblies Common Fund (DACF)], que destina um mínimo de 5% das receitas nacionais para transferências diretas aos distritos. Mas a destinação é feita por um administrador nomeado pelo presidente da República, com aprovação do Parlamento. “O mecanismo oficial de alocação de recursos destoa do Brasil pois não há controle direto das emendas por parte dos parlamentares, visto que o dinheiro vai diretamente para os distritos, ao invés de ser alocado pelos deputados. Este modelo, assim como o de Zâmbia, é interessante na medida em que a territorialização e descentralização orçamentária não &ea cute; determinada diretamente por lógicas personalistas e eleitorais”, aponta o estudo.
Na América Latina, o que vale como regra geral também é a centralização no Executivo, com algumas variações importantes conforme o país. No México e no Chile, os parlamentos podem emendar orçamentos, mas a execução segue sob controle quase exclusivo do governo. O Executivo chileno tem a prerrogativa de apresentar a proposta orçamentária, e o Congresso pode revisá-la, mas as emendas legislativas estão sujeitas a uma análise técnica rigorosa e, caso afetem o montante global do gasto, alterem a estrutura de financiamento ou infrinjam a política fiscal, podem ser rejeitadas pelo governo.
Argentina e Colômbia mantêm mecanismos de revisão — entretanto, com forte limitação técnica e legal. O Uruguai destaca-se pela transparência, com um sistema político unitário baseado no planejamento de um orçamento plurianual de cinco anos, respaldado pela atuação do Tribunal de Contas e pela participação cidadã por meio de portal aberto de orçamento. O controle é essencialmente técnico e posterior, sem atuação política durante o processo, aproximando o modelo uruguaio do chileno quando se fala do poder do governo.
Disfuncionalidade e democracia
A análise comparativa mostra a singular realidade brasileira após 2015. Se por um lado territorializa mais os recursos, o que em certo sentido poderia ser visto como um fator positivo ao enxergar de uma outra forma a realidade local, por outro fragmenta a execução de políticas públicas, reforça a lógica distributiva e clientelista e impõe novos desafios à coordenação das políticas públicas.
“O Brasil, portanto, é um caso-limite, um ponto extremo no qual o Legislativo concentra poder orçamentário em escala inédita entre democracias, tensionando os próprios fundamentos republicanos do regime”, concluem os pesquisadores.
Se o modelo anterior era considerado problemático por muitos, em função de concentrar muito poder nas mãos do Executivo, o que o substituiu torna o sistema ainda mais errático, por distorcer a própria noção da atividade política e parlamentar. Com um montante significativo de recursos em mãos, deputados e senadores podem entregar obras e serviços localmente, em articulações com prefeituras e organizações da sociedade civil reais ou existentes apenas no papel, para assegurar suas próprias reeleições e também a eleição de políticos aliados em seus territórios, em cargos distintos.
No Parlamento, suas atuações tendem a se desvincular ainda mais da responsabilização em temas nacionais, com um possível reforço de uma tendência à espetacularização e exposição em mídias sociais que garante visibilidade para alçar voos maiores, relegando questões próprias do debate nacional a um segundo plano, já que o sucesso eleitoral estaria garantido por conta da execução de emendas.
Mais do que uma questão meramente política, as emendas e o poder hiperbólico do Congresso Nacional remetem a que modelo de democracia queremos. E de que forma o povo vai participar dele.
Imagem: Jack Levine
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