04 outubro 2025

China: tecnologia verde

Cinturão e Rota 2.0
Entrevista com Mathias Larsen sobre investimentos chineses em fabricação de tecnologias verdes no exterior.
Tim Sahay/Phenomenal World 

As empresas chinesas estão se aventurando por aí.

À medida que os EUA se afastam das indústrias de tecnologia verde e pressionam seus aliados a seguirem o mesmo caminho, empresas chinesas entram em cena para impulsionar a transição verde no mundo em desenvolvimento. O novo relatório do Net Zero Industrial Policy Lab da Universidade Johns Hopkins, coautorado por Xiaokang (Harold) Xue, pesquisador do NZIPL e Mathias Larsen, Senior Policy Fellow do Grantham Research Institute on Climate Change & the Environment da LSE, apresenta um novo banco de dados sobre investimentos chineses na fabricação de tecnologia limpa no exterior. A escala é impressionante. Desde 2011, as empresas chinesas comprometeram mais de US$ 227 bilhões em 461 projeto s de manufatura verde em 54 países—com 88% dos investimentos ocorrendo a partir de 2022. Em valores ajustados pela inflação, o montante supera os US$ 200 bilhões do Plano Marshall

No momento em que a ação climática se torna mais urgente e a energia limpa passa a ser a fonte de eletricidade mais barata no mundo, os Estados Unidos recuam da ambição de liderar—ou até mesmo de participar—da transição. Enquanto isso, a China intensificou os investimentos verdes internamente e dominou cadeias de suprimento limpas inteiras: painéis solares, turbinas eólicas, baterias, veículos elétricos e hidrogênio verde. Agora, empresas chinesas levam essa capacidade ao mundo em desenvolvimento, com mais de 75% dos investimentos localizados em países do Sul global sedentos por capacidade industrial . 

Escrevendo sobre a pesquisa de Xue e Larsen, David Flicking, da Bloomberg, contrapôs as duas tendências: “Neste momento, Pequim tem a oferecer energia limpa e barata, empregos, comércio e um caminho para a prosperidade. Washington, enquanto isso, oferece tarifas, caos político, memes de nacionalistas brancos e trabalhadores sul-coreanos algemados após uma batida em uma fábrica de baterias para veículos elétricos. Não é assim que se vence o grande embate estratégico do século XXI.”

Tim Sahay, codiretor do NZIPL e coautor da Polycrisis, conversou com Mathias Larsen sobre o que o relatório publicado revela acerca do formato que a transição verde global vem tomando e o que isso significa para a história econômica global.

Uma entrevista com Mathias Larsen

TIM SAHAY: O domínio total da China em tecnologias verdes tem gerado ansiedade em formuladores de políticas, analistas e industriais de muitos países. “Excesso de capacidade” e “dumping” são os termos-chave do momento. Em resposta a isso, uma das soluções propostas tem sido demandar que a China estabeleça fábricas verdes no exterior ao invés de simplesmente enviar navios carregados com produtos verdes produzidos em seu território para todo o mundo. É isso que está acontecendo agora? 

ML: Em resumo, o que a nossa pesquisa demonstra é um aumento maciço dos investimentos chineses na fabricação de tecnologias limpas no exterior. Isso é positivo tanto para projetos de desenvolvimento dos países que recebem esses investimentos quanto para a transição verde global.

Há cinco pontos principais. O primeiro é a escala dos investimentos: mais de US$ 200 bilhões, quase chegando a US$ 250 bilhões, com um rápido aumento desde 2022. O valor vem se aproximando da cifra de US$ 100 bilhões por ano, o que é aproximadamente o mesmo volume que a China concedeu em empréstimos para a construção de infraestrutura em 2018, ano de pico. Em comparação, o Plano Marshall dos EUA após a Segunda Guerra Mundial foi de cerca de US$ 200 bilhões no total—e o resultado do Plano Marshall foi amarrar a Europa a tecnologias e padrões estadunidenses. Quando vemos somas desse tamanho, portanto, isso invoca a questão de que pode haver um efeito semelhante no futuro. 

Para colocar isso em perspectiva, os investimentos domésticos da China em manufatura verde em 2024 foram de US$ 340 bilhões. Em comparação com US$ 70 bilhões em investimento estrangeiro direto (IED) verde, isso representa um quinto. É a mesma proporção em termos de estoque, em que há cerca de um trilhão de investimentos em manufatura verde no mercado interno. O estoque em manufatura no exterior está ultrapassando US$ 200 bilhões, também um quinto.

O segundo ponto principal é a velocidade em que esses investimentos cresceram. A Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road ou BRI, na sigla em inglês) consistia principalmente em empréstimos para infraestrutura, que atingiram o pico em 2018 e o total anual de cerca de US$ 100 bilhões. Esse número caiu drasticamente desde então e, entre 2020 e 2022, basicamente nenhum investimento ou empréstimo chinês foi registrado no exterior. A partir de 2022, observamos um rápido aumento no tipo de IED que agora estamos acompanhando. Embora os números para 2025 sugiram uma estagnação, o padrão pode acabar se aproximando do nível anterior, em torno de US$ 100 bilhões por ano. Ess a nova onda de investimentos no exterior, portanto, claramente pode ser chamada de Cinturão e Rota 2.0.

O terceiro ponto é o status dos projetos. A maioria dos projetos que identificamos aqui ainda não está operacional, o que significa que a capacidade de produção real entrará em atividade em um ou dois anos. É nesse momento que devemos ver os impactos reais dos projetos tanto no desenvolvimento do país receptor do investimento quanto em termos da disseminação global dessas tecnologias.

O quarto ponto diz respeito às tecnologias em si. Esses investimentos abrangem a maioria das tecnologias verdes, sendo mais da metade delas solares e de baterias. Isso significa que o domínio total da China sobre as tecnologias verdes, com as quais todos estamos cada vez mais familiarizados, está se globalizando (há um pouco menos de energia eólica na mistura, mas ela ainda faz parte do quadro.)

O quinto ponto é a amplitude dessa globalização: os investimentos estão sendo feitos em todos os continentes.

Finalmente, o escopo do banco de dados que construímos merece algumas palavras. Ele abrange empresas chinesas que investem em países estrangeiros: não inclui empresas de outros países, nem investimentos domésticos da China. Além disso, contabiliza investimentos, e não empréstimos, que eram a principal forma que compromissos externos ligados à Iniciativa Cinturão e Rota tomavam anteriormente. Ainda, nos concentramos na manufatura, especialmente na fabricação de tecnologia limpa, e não na geração de energia. Trabalhos anteriores que acompanhavam esses tipos de investimentos eram menos abrangentes—havia uma noção de que a China estava fazendo esse tipo de IED, mas não existia indicação clara da escal a ou das ramificações desses investimentos. 

TS: O que motiva o setor privado chinês a “sair” do país e internacionalizar suas cadeias de suprimento? Até que ponto se trata de uma decisão impulsionada pelo setor privado em oposição a uma estratégia de desenvolvimento de países que recebem esses investimentos?

ML: Em certos países, a atração desses investimentos claramente faz parte de uma estratégia própria de desenvolvimento, e eles tiram grande proveito disso. Mas o que os dados demonstram mais claramente é que existem, em geral, três motivos pelos quais as empresas chinesas entraram em ação. 

O primeiro é o acesso ao mercado doméstico do país que recebe o investimento. Muitos países percebem que a tecnologia verde está se tornando uma parte cada vez mais importante de suas economias e que simplesmente importar tecnologia limpa terá consequências negativas para a indústria, o emprego e assim por diante. Por isso, eles impõem tarifas e requisitos de conteúdo local para garantir que partes dessas cadeias de valor contribuam para a economia doméstica. É o caso do Brasil, por exemplo. 

O segundo motivo é o acesso a mercados de terceiros. Uma vez que grandes mercados, como os EUA e a UE, impõem altas tarifas sobre importações diretas da China, empresas chinesas de tecnologia limpa são incentivadas a deslocar a manufatura para geografias que podem acessá-los de forma mais barata. O Marrocos é um exemplo importante aqui, porque tem acordos de livre comércio com os EUA e a UE.

O terceiro é o acesso a matérias-primas. À medida que a escala de produção cresce, também cresce a necessidade de insumos—níquel, cobalto, lítio e assim por diante. A mineração é parte disso, mas o processamento também ocorre cada vez mais no exterior. A Indonésia é o principal exemplo de um país que negocia com a China para capturar uma fatia maior do valor agregado na cadeia da mineração.

TS: Como devemos interpretar o significado dessa expansão de manufatura verde no exterior para o papel da China na transição global?

ML: Esses investimentos chineses no exterior são evidentemente bons para a questão do clima. Eles podem ter um papel fundamental na disseminação global de tecnologias limpas, reduzindo os preços e aumentando o ritmo da sua adoção. Se o volume dos investimentos em manufatura cria excesso de capacidade, essa é essencialmente uma pergunta relacionada à questão de se há lucros a serem obtidos com eles, e não uma preocupação acerca da necessidade dessas tecnologias: é óbvio que precisamos acelerar o ritmo de adoção de tecnologias verdes para cumprir as metas do Acordo de Paris....

O impacto no desenvolvimento e na descarbonização de cada país receptor dependerá fortemente da economia política e do espaço para formulação de políticas públicas no ambiente doméstico. Esses investimentos criam uma janela de oportunidade para os países anfitriões conduzirem políticas industriais e promoverem metas de desenvolvimento interno—alguns têm feito um bom trabalho nesse sentido, outros nem tanto.

Outra dinâmica a se considerar é o que isso significa em relação ao papel da China no financiamento do Sul global. Como mencionado, os empréstimos ligados à Iniciativa Cintrurão e Rota diminuíram drasticamente nos últimos anos e foram substituídos por uma estratégia conhecida como “Pequeno e Bonito”, que priorizou projetos e setores mais lucrativos e de menor escala em detrimento do financiamento de grandes projetos de infraestrutura. Nesse cenário, a escala dos investimentos que testemunhamos é significativa e, sem dúvida, positiva para o desenvolvimento e a transição verde de muitos países do Sul global—especialmente considerando que uma série deles está à beira da inadimplência ou com medo de chegar a essa situação. O investime nto estrangeiro direto, evidentemente, não aumenta o risco de superendividamento, já que quaisquer empréstimos relacionados a esses projetos ficam nos balanços patrimoniais das empresas chinesas e não do país receptor. 

Depois, há o comércio global. Atualmente, a China tem um superávit em conta corrente de US$ 1 trilhão. Se a manufatura se deslocar para o exterior, isso poderá, até certo ponto, reduzir esse superávit. No momento, a tecnologia limpa representa apenas 5% das exportações chinesas, mas é um número crescente. A tendência de “sair” pode limitar as exportações diretas da China e reduzir alguns desses desequilíbrios na economia chinesa.

TS: Qual tem sido o papel do Estado chinês no apoio à iniciativa Cinturão e Rota 2.0 liderada pelo setor privado? Verifica-se um alto grau de planejamento, financiamento, coordenação ou implementação liderados pelo Estado? 

ML: A “Cinturão e Rota 1.0” era totalmente liderada pelo Estado. Os projetos eram organizados pelo governo chinês e pelo país anfitrião e, em seguida, operacionalizados com financiamento de bancos de desenvolvimento e bancos comerciais estatais chineses, seguradoras estatais chinesas como a Sinosure e, em grande parte, executados por construtoras estatais chinesas também. Em ambos os lados, tudo era liderado pelo Estado. Os empréstimos tinham garantia soberana ou eram vinculados à receita proveniente da venda de commodities, por exemplo. 

Em contrapartida, esse fenômeno que chamamos de Cinturão e Rota 2.0 é totalmente privado. O capital dos investimentos é levantado por empresas privadas. Os países receptores certamente incentivam esse tipo de IED, mas normalmente não o subsidiam—e tampouco o faz o Estado chinês. 

Dado o amplo—e já bastante estudado—apoio estatal à Cinturão e Rota, isso é algo surpreendente. Em todas as conversas que tive com bancos chineses que concedem empréstimos para investimentos dessa natureza, eles não pareceram ser, em escala significativa, a fonte do capital que empresas privadas vêm usando para investir em manufatura verde no exterior. Podemos citar o exemplo da Build Your Dreams (BYD), que fez uma listagem parcial em Hong Kong para financiar seus investimentos no exterior: o dinheiro não saiu do Banco de Desenvolvimento da China. Há um contraste muito claro entre o papel do Estado na Cinturão e Rota original e no investimento privado que vemos agora. 

Para observadores externos, mais surpreendente ainda talvez seja o que descobri ao longo das entrevistas que fiz no país: os próprios funcionários do governo chinês podem não estar cientes da escala e abrangência desses investimentos privados no exterior. É claro que alguns ministérios individualmente aprovam a “saída” dessas empresas, como o Ministério do Comércio, mas isso é feito em nível de projeto. Se o próprio governo não está acompanhando o aumento maciço de investimentos verdes no exterior, é improvável que essa “Cinturão e Rota 2.0” liderada pelo setor privado tenha algum grau significativo de coordenação estatal.

TS: Como os países receptores veem os investimentos chineses em manufatura verde em comparação com as alternativas oferecidas pelo Ocidente? Que recomendações você daria à União Europeia, por exemplo, em sua reação ao financiamento chinês no exterior—o que eles devem priorizar, competição ou colaboração?

ML: Acho importante entender desde o início que, em grande parte, empresas chinesas não estão fazendo esses investimentos por preferência—ao contrário, elas prefeririam maximizar lucros fabricando seus produtos na própria China e depois os exportando. 

É somente porque outros países impõem condições às importações chinesas que as empresas são forçadas a fazer esses investimentos. Como comentamos, os países receptores reconhecem que a importação de novas tecnologias da China representa um perigo potencial para sua própria base industrial, planos de industrialização e desenvolvimento, emprego, etc. O IED chinês em manufatura, por outro lado, pode ser visto como uma oportunidade para canalizar esses investimentos para objetivos de industrialização, emprego e desenvolvimento. A questão crucial é se e como o país anfitrião será capaz de aproveitar essa oportunidade.

Como os países receptores estão respondendo para maximizar seus próprios benefícios com esses investimentos? Quais princípios e condições devem ser exigidos dos investidores chineses? E como os novos países que potencialmente receberão esses investimentos devem se posicionar nas cadeias de abastecimento globais? Que tipo de exigências devem fazer aos investidores? A análise futura dessa escala massiva de investimentos planejados deve ser orientada para essas questões.

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