08 outubro 2025

Fundos depauperados

O sequestro do fundo público
A pedagogia da escassez naturaliza a ausência de recursos para saúde e educação, omitindo que esses fundos existem, mas foram previamente comprometidos com a valorização do capital fictício
JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*/A Terra é Redonda   

1.

Como um conceito especial central para as finanças governamentais em nações dependentes, o fundo público assume formas particulares.

No Brasil, sua história foi marcada por um dualismo fundamental. Ele proporcionou a reprodução ampliada do capital e, assim, também gerou um nervo político centrado nas disputas das forças populares sobre como pagar por direitos sociais administrados pelo Estado – que não podiam ser implementados sob o estado capitalista.

No entanto, essa tensão, nas últimas décadas, passou por uma mudança decisiva. A financeirização agora impõe ao orçamento público uma condição tal que o capital portador de juros se tornou o principal canal de transferência de riqueza: do tesouro público para o lucro privado.

Desde a década de 1990, a sociedade testemunhou uma apropriação do fundo público: um processo que desloca sua função redistributiva em favor da acumulação financeira e mina a base material dos direitos trabalhistas e sociais, incluindo os direitos dos servidores públicos. Essa apreensão não é um incidente isolado, mas representa uma reforma estrutural.

Ela se expressa tanto na legislação orçamentária, como visto em asteriscos harmoniosos como o item 5 (2006), que acrescentou a seção 3(10), e o item 4 (2007), bem como nos próprios instrumentos institucionais de gestão fiscal. A Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 2016, conhecida em português como “teto de gastos”, congelou as despesas primárias por vinte anos enquanto deixava os desembolsos financeiros com a dívida intocados – tudo em nome do ajuste fiscal e da responsabilidade pelo equilíbrio macroeconômico. Como resultado desse encantamento, o fundo público foi rigidamente dividido em duas partes: para os serviços sociais, congelamento; para o capital financeiro, liberdade total.

Houve duas consequências: em primeiro lugar, uma retração de serviços públicos essenciais, como saúde e educação; em segundo lugar, uma ferramenta de argumento político para impor reformas regressivas aos direitos dos servidores públicos.

Francisco de Oliveira já havia antecipado esse movimento ao diagnosticar que o fundo público no Brasil sempre esteve a serviço da reprodução das formas de dependência. Em sua crítica à razão dualista, mostrou que as contradições entre moderno e arcaico não eram estágios sucessivos, mas articulações estruturais de um mesmo processo.

Esse duplo caráter foi mediado pelo fundo público, que, por um lado, transformou infraestruturas e, por outro, manteve privilégios oligárquicos.

2.

Nos anos mais recentes, essa dualidade se radicalizou: o estado moderno que apoia a financeirização se combina com o estado arcaico que prejudica os direitos trabalhistas.

E, porque a captura do fundo não é apenas econômica – ou, ao monopolizar os fundos públicos, um padrão de sociabilidade dependente também aparece de tempos em tempos que atualiza em termos financeiros a antiga subordinação estrutural do Brasil devorador. Esse fenômeno pode ser bem descrito como uma forma de sequestro. Sequestro significa perda de autonomia, imposição externa, falta de capacidade de um recurso ser usado livremente.

O fundo público saqueado torna-se aquele que é irrecuperável para o estado, tanto em relação às demandas de justiça social quanto às de planejamento de desenvolvimento.

Está acorrentado por regras financeiras e pela centralidade absoluta do pagamento da dívida. Essa prioridade é justificada pelo discurso governante com base na confiança do mercado e na necessidade de atrair investimentos, mas tem um resultado concreto: a desativação em termos de capacidade do estado de garantir direitos.

Sempre que o governo alega “não há recursos” para aumentar salários ou ampliar serviços, mostra inadvertidamente a verdade: este é um fundo público outrora cativo.

Esse sequestro foi ainda mais entranhado através da institucionalização de mecanismos ABCD. A reemissão permanente de dívida pública, sob altas taxas de juros, completa o ciclo (“circuito”) por meio do qual grande parte das receitas escoa rapidamente para o setor financeiro. O estado atua como uma esteira transportadora da valorização do capital fictício.

Para François Chesnais, fictícios [os] ativos que não representam um valor de produção hoje, mas antecipações sobre receita futura. A dívida pública do Brasil se encaixa perfeitamente nessa lógica: os papéis emitidos pelo Tesouro são garantidos pela criação de riqueza, mas, mais importante, por uma promessa de pagamento futuro que é negociada pela exploração fiscal.

Como você pode ver, a garantia é direta: não por essa promessa, mas através de reformas que diminuem os direitos sociais, neste caso dos servidores civis, em garantias reais para a valorização fictícia.

A seguridade social é um exemplo importante. A narrativa de que o sistema de pensões era insustentável foi endurecida ao longo da década de 2010, pressionando a solvência fiscal do estado. A solução apresentada foi a reforma da previdência, aprovada em 2019, que aumentou a idade mínima e reduziu os benefícios, além da exigência de mais anos de contribuições.

3.

A questão central era a exigência de reforma fiscal. No entanto, análises críticas, incluindo as de Leda Paulani, deixam claro que a fonte do desequilíbrio não estava nos gastos previdenciários, mas na forma como os fundos públicos eram desviados para o pagamento de dívidas.

O déficit, nesse sentido, foi politicamente criado como uma ferramenta para justificar a reforma. O sequestro do fundo público, portanto, produz uma política pedagógica de escassez: naturaliza que não há recursos para sustentar direitos quando, na verdade, eles existem, mas estão relegados como comprometidos anteriormente ao capital financeiro.

O mesmo processo impulsiona os atuais ataques aos direitos do serviço público. O projeto de lei, apresentado em 2020 e ainda debatido pelo Congresso, é parte do que o governo chama de sua reforma administrativa, com base na suposição de que o serviço público é pesado e ineficiente. Endossa a flexibilidade do emprego, a ruptura da estabilidade e a perspectiva de maior privatização dos serviços públicos.

A desculpa, claro, como sempre, é a retidão fiscal. Mas o que se discute aqui é a redistribuição de recursos dentro do fundo público. O estado está tentando viver dentro do seu orçamento (ainda que mal), então corta salários e benefícios dos servidores civis para criar espaço no orçamento para permitir que o pagamento de juros sobre a dívida continue sendo a primeira prioridade. Então, a austeridade não é um objetivo em si, mas sim um meio de manter o sistema de financeirização de não desmoronar.

Esta interpretação é apoiada pela avaliação da execução orçamentária. Em média, mais de 40% do Orçamento Nacional Federal do Tesouro é gasto com o serviço da dívida e cerca de 20% para financiar o pessoal ativo e inativo do Executivo. Ao acompanhar o desenvolvimento dos custos primários após o teto, leva-se em consideração que a contribuição relativa dos servidores diminui enquanto a responsabilidade financeira permanece ou aumenta.

Isso demonstra que o slogan “O servidor público está derrubando o orçamento” não passa de uma ferramenta ideológica. O peso real recai sobre a financeirização, mas os servidores civis são transformados em bodes expiatórios para justificar reformas regressivas.

A teoria marxista da dependência ajuda a compreender a especificidade desse processo em nações periféricas. Para Ruy Mauro Marini, a dependência se expressa pelo deslocamento sistemático de valor para o centro capitalista monopolista.

A transferência acontece por meio da superexploração da força de trabalho, bem como pela subordinação financeira. É a essa lógica que o quarentenamento do fundo público está inscrito: à medida que aumenta em recursos destinados ao pagamento da dívida, também o estado brasileiro transfere (socialmente produzido) riqueza para seus credores internos e externos e perpetua a dependência.

A reforma dos direitos dos servidores civis, nesse sentido, não é tanto um ajuste interno quanto parte do mecanismo de transformação estrutural para a reprodução da dependência.

Esta linha de interpretação também é avançada pela crítica de Francisco de Oliveira. Ao falar do fundo público em Os direitos do antivalor, ele afirmou que o Estado se tornou um “comitê de gestão da dívida”.

4.

Essa equação mostra que a missão principal do fundo público deixou de ser garantir o financiamento dos direitos, mas sim garantir a valorização do capital financeiro. A captura é tão profunda que o fundo público não apenas falha em promover a universalização dos serviços, mas impõe reformas regressivas. Ele se autodestrói: assume a forma de um corrosor de suas próprias bases sociais. Essa autodestruição gerida é típica do capitalismo dependente financeirizado. Politicamente, esse sequestro é um desastre total. Ele mina a legitimidade do estado como protetor de direitos e contribui para a linguagem privatista.

Se o Estado não pode garantir saúde e educação, ele abre espaço para que o setor privado entre em ação. Assim, a reforma administrativa não é o fim, mas apenas um meio da privatização da execrável verba pública. Diminuir o poder e a influência dos servidores civis abre espaço para a gestão privada ocupar um terreno anteriormente visto como serviços estatais. É um processo de mercantilização que transforma direitos sociais em oportunidades comerciais.

Após os anos 2000, em particular, por meio da terceirização para organizações sociais do trabalho de gestão da saúde pública, foi a privatização intermediária que se insinuou no reino criado por ativos do fundo público.

Fundos antes direcionados para hospitais públicos são repassados para corpos privados que gerenciam serviços com o estado à sua disposição.

O discurso de eficiência legitima essa transferência, mas na verdade é precarização do trabalho e perda de controle de recursos sociais.

Esse processo acelera quando as reformas administrativas debilitam os agentes públicos, tornando atraente a privatização.

Portanto, a privatização do tesouro público tem relação direta com a mercantilização dos serviços sociais. Outro exemplo é o ensino superior. O congelamento de gastos do teto estrangulou o orçamento das universidades federais, criando espaço para instituições privadas – entre elas, vários fundos de investimento internacionais.

Nesse cenário, a imobilização de recursos públicos não apenas restringe a expansão das universidades públicas, mas cria um mercado a partir do capital financeiro. Assim, o desfinanciamento dos direitos sociais significa oportunidades de negócios.

Uma vez apreendida, o tesouro público deixa de servir à educação como um direito fundamental e passa a nutrir os ávidos por lucro privado em impérios educacionais.

Subjetivamente, então, o impacto desse sequestro sobre os funcionários do governo é muito acentuado também. A pedagogia da escassez inculca a crença de que o serviço público é um privilégio, fomentando o ressentimento social. Essa retórica tem o efeito de cortar contra a solidariedade entre trabalhadores públicos e privados, dividindo a classe trabalhadora. Esse servidor público, tradicionalmente defensor dos direitos, é agora o inimigo do equilíbrio fiscal.

5.

Essa colonização reversa confere certa legitimidade às reformas regressivas e dificulta a construção de resistências. Esse sequestro do fundo público não é, portanto, apenas econômico ou institucional, mas também cultural: organiza crenças sociais de modo a manter a primazia da lógica da financeirização.

No entanto, a história revela que não precisa ser assim. “Uma certa anomalia é evidente nos anos 2000 quando políticas de inclusão social, como o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão de Universidades Federais), impulsionaram os investimentos em educação superior. Na época, as contribuições das pessoas também financiaram em parte a universalização dos direitos”.

Mas a crise de 2008 e a subsequente adoção de políticas de austeridade tornaram a financeirização novamente central. O teto de gastos e a reforma da previdência completaram o saque, demonstrando que em tempos de crise é o capital financeiro que tem prioridade absoluta. A reforma administrativa é, de fato, a extensão desse processo, endossando ainda mais a erosão dos direitos sociais.

A pandemia de Covid-19 revelou as contradições desse modelo. Embora a crise de saúde exija um aumento nos gastos públicos, o estado brasileiro hesitou, amarrado por regras fiscais que favoreciam a manutenção da dívida em níveis sustentáveis. Apenas sob pressão social significativa, recursos foram liberados para assistência emergencial e saúde. Ainda assim, a narrativa de austeridade voltou com força em 2021, como um lembrete de que o extraordinário nunca poderia pôr em risco a normalização do ajuste fiscal.

A pandemia tornou claro que o acúmulo de recursos públicos não é uma questão apenas de eficiência econômica, mas também de vida e morte.

É trágico que a restrição dos gastos públicos em nome da dívida tenha incapacitado a capacidade do estado de enfrentar uma crise de saúde. A crítica ao sequestro do fundo público deve ser mais do que uma mera denúncia. Requer reflexão sobre alternativas. Uma delas é a auditoria da dívida pública que está sendo chamada por movimentos sociais e especialistas, a fim de desafiar a legitimidade dos títulos e renegociar obrigações financeiras.

Outra é emendar as regras fiscais, substituindo o teto de gasto público por mecanismos que priorizam investimentos sociais. De modo mais geral, é importante reivindicar o fundo público como instrumento de planejamento democrático em conformidade com não aprender mas transcender a valorização do capital rumo aos direitos universais. Esta luta importa para o futuro da democracia no Brasil.

Em suma, a financeirização assumiu o fundo público brasileiro para então começar a impor essa corrente principal através de reformas regressivas de direitos trabalhistas.

Essa apreensão é feita por meio de artifícios institucionais, como o teto de gastos e a prioridade absoluta para pagamento de dívidas. Ela gera uma pedagogia da escassez que legitima cortes como os de pensões e das regiões administrativas, mas primeiro reifica a mercantilização dos serviços sociais.

O círculo vicioso produzido neste processo é o do fundo público, colonizado pelo capital financeiro, minando a base material dos direitos e, como tal, aprofundando ainda mais a dependência estrutural no país. Será necessário mais do que organização sindical e resistência social para quebrar este ciclo, mas uma nova prioridade estatal controversa.

É nesse horizonte que a luta por universidades insurgentes, a valorização do serviço público e a recuperação do fundo público como instrumento de emancipação social é sinalizada.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados). [https://amzn.to/4fLXTKP]

Referências

BRASIL. Secretaria do Tesouro Nacional. Relatório resumido da execução orçamentária. Brasília: STN, diversos anos. Disponível em: https://www.tesourotransparente.gov.br/

CHESNAIS, François. A mundialização do capital. Tradução de Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 2005.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000.

OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.

PAULANI, Leda Maria. Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo: Boitempo, 2008.

PAULANI, Leda Maria. A dívida pública e o sequestro do fundo público. In: PAULANI, Leda Maria; PATO, Carla (org.). Capital fictício, rentismo e dependência. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 55-78.

PRADO, Eleutério F. S. Economia política da financeirização. São Paulo: Outras Expressões, 2017.

SANTOS, Theotonio dos. A teoria da dependência: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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Leia também: Vulnerabilidade estrutural https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/pauta-de-exportacoes-em-xeque.html 

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