11 outubro 2025

Uma crônica de Urariano Mota

A princesinha do carnaval cresceu
Mais importante que a sua imagem de bela moça, é a notícia que sua mãe nos deu: Gisele, a ex-princesinha do carnaval, vai estudar Medicina.
Urariano Mota/Vermelho


Em nosso Dicionário Amoroso do Recife, ela apareceu como Eutanasinha, como um diminutivo de Eutanásia. Em um dos trechos escrevi: vou chamá-la de princesinha Maricota, quando mais próprio seria chamá-la de Eutanasinha. Sim, uma pequenina eutanásia, porque no seu sorriso há um quê de matar sem dor a gente, ou de matar suave.

Ali, publiquei: 

A imagem da menina do último carnaval, eu pensei tê-la esquecido. Dizem que uma imagem vale mil palavras. Bobagem, diz não. Entre tantas imagens que cometi no carnaval que passou, do porta-estandarte de Banhistas do Pina, orgulhoso da sua tradição, ao desfile do Bloco da Saudade, com suas mulheres bonitas mais um imenso galo ao fundo sobre a ponte, a mais bela é a de uma negra princesinha. Ela ficou na memória, acredito, porque não era uma imagem. É uma pessoa. É uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha da memória era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista. Ela, a menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o seu almoço no prato. Talvez a mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de comer, assim como ocorre a tod os nós em raras ocasiões. Quando o peito está contente, para que melhor alimento?

A princesinha, informa a memória, portava uma coroinha de lata, um vestidinho verde, umas trancinhas crespas que caíam em graça pelos lados da coroinha. O que a lembrança também diz é que as trancinhas elegantes davam na gente uma vontade de cheirar os cabelos da princesinha. Vontades assim dão na gente, de vez em quando, mas o adulto, escolado, sabe que a beleza, se tocada, pode reagir mal. Assim como um cão amarrado em corrente, que na infância enfiou os dentes na mão deste escritor. Não que a princesinha fosse morder. Pelo contrário, ela ainda mais sorriria encabulada, penso. Mas morderiam este escrevinhador outros homens na multidão do mercado, porque deviam achar descabido um beijo em trança rebelde de uma criança negra. Coisa de pedófilo se aproveitando do carnaval, assim podia pensar a maldade do vulgo em forma de julgamento. Por isso eu a toquei com os olhos, que estavam encantados e úmidos de álcool e emoção, nessa mistura que vem no rosto e nem a disciplina mais férrea consegue esconder. Então pedi à minha mulher, “tire por favor uma foto da princesinha”. E o celular registrou.

Na foto de celular em 2012, registrada por Francêsca Calado, ela assim aparecia:


Hoje, aos 18 anos de idade, ela está assim: 

Naquela primeira vez, tão comovido fiquei por sua fantasia de princesinha, que não guardei o seu nome. Agora, sei: o seu nome é Gisele. E mais importante que a sua imagem de bela moça, é a notícia que sua mãe nos deu: Gisele, a ex-princesinha do carnaval, vai estudar Medicina.

Talvez para consertar o coração dos coroas que foram por seu reino atingido, penso. Mas não: Gisele é fruto do amor da sua mãe, que trabalha pesado todos os dias no Mercado Boa Vista no Recife. Gisele é filha dos tempos do governo Lula, que dá oportunidade aos jovens do povo, que nunca tiveram antes. A ex-princesinha agora pode estudar Medicina. E termino com o que eu não disse no começo: as personagens que amamos crescem e ultrapassam a visão de quem escreve. Prova de amor maior não há. Elas têm vida, são pessoas.

[Se comentar, identifique-se]

Veja e ouça também Ivan Lins: 'Lembra de mim' https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/ivan-lins-lembra-de-mim.html

Nenhum comentário: