Palavras fora de lugar
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65
Esforçado, arisco, curioso – se é livro, ele
traça; debate não perde um, nem que seja sobre a educação de crianças no Japão
ou a interferência do estresse no ciclo menstrual. E assim vai amealhando
conhecimento sobre temas vários, padecendo, entretanto, de uma enorme
dificuldade de concatenar as ideias. E as palavras.
Aliás, palavra que mereça ser pronunciada pelo
dito cujo tem que ter sonoridade e um traço de raridade. Uma óbvia vocação para
sucessor do Marquês de Pombal, que tanto se esforçou para recuperar termos em
desuso.
Certa vez eu me referia a Miguel Arraes e ouvi
aquela voz grave: “Um ínclito homem!”. Paulo Maluf, no outro extremo, dele
mereceu a qualificação de “energúmeno!” Com exclamação.
No meio de uma campanha eleitoral o encontro em
cima do palanque e pergunto por que não o via nas atividades de rua: “Um
interregno estratégico, líder, que, com efeito, resultará num contra-ataque
tático específico e sobejo.”
Claro que não entendi por que a sua ausência em
algumas caminhadas teria sentido estratégico, muito menos o que vinha ser
“contra-ataque específico e sobejo”.
Pois bem. O tempo passou, nunca mais o vi,
julgava-o em terras distantes, talvez levado pelo desejo de figurar em algum
sodalício lítero-cultural, tipo Academia de Letras do Município de Ribeirão das
Almas, coisa assim.
Mas eis que o encontro na Livraria Siciliano,
em São Paulo, alentado volume à mão (que preferi não olhar o título, já me
prevenindo de uma indecifrável resenha). Fiz que não o reconhecia, num gesto
que minha mãe classificaria como falta de caridade. Mas fui reconhecido e, como
estava só, tive o desprazer de sua ilustrada companhia:
“- Excelência, quanto tempo! Apresento-lhe minhas
congratulações pela conquista do pódio no último pleito e renovo meus
pretéritos e sempre congruentes votos de confiança em vossa inexorável atuação.
E pergunto: em que consonância pretende legislar, em se tratando de um
parlamentar filosoficamente nutrido por uma teoria científica que, conforme
meus alumiados estudos, tem na contemporaneidade o seu apogeu?”
- Só conversando com calma, amigo. Comprometi-me
com um conjunto de temas, tendo como referência a ideia de um novo projeto
nacional de desenvolvimento...
"- Ora, nada mais edificante do que tamanha
pretensão, de valoração insofismável e ao mesmo tempo profícua e, por que não?,
assaz inovadora, pois que um novo projeto direcionado à Nação tendo como
mola-mestra o desenvolvimento quiçá...”
Não o deixei continuar. Mirei o relógio, um
compromisso imediato salvou-me de tão “insólito colóquio” (uso a expressão
naturalmente em homenagem ao meu insigne interlocutor). Despedi-me prometendo
que marcaríamos um encontro caso ele visitasse a terra natal. Pura falsidade,
pois no íntimo, bem desejo que a egrégia personagem não retorne ao Recife tão cedo.
Para que as palavras permaneçam em seu devido lugar. E as ideias também.
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Leia também: Millôr Fernandes, "Uma fábula fabulosa" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/millor-fabulas-fabulosas.html

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