De volta do futuro
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, na Folha de S. Paulo
Foi por meio de uma “dobra no tempo” que obtive as
informações aqui reveladas. Vêm dos extratos de jornais do ano 2033. Eis
algumas mudanças que inferi dessas notícias.
1. O Supremo Tribunal de Justiça havia acolhido
algumas atribuições adicionais. Com a inclusão de novos ministros, pastores de
igrejas pentecostais, que se tornaram majoritários neste tribunal, ele havia
assumido novas responsabilidades e consequentemente mudado a denominação para
Supremo Tribunal de Justiça e Inquisição. Com isso, havia conseguido eliminar o
comunismo, o petismo, os movimentos LGBT, feministas de quase todas as
instâncias governamentais.
2. As universidades públicas haviam sido
privatizadas, cursos inúteis e perversos como filosofia, sociologia e ciências
políticas haviam sido substituídos por moral e cívica (dados por militares da
reserva especialmente dotados), tiro ao alvo, educação física, astrologia e
estudo da Bíblia. Currículos haviam sido elaborados e ampliados por
especialistas. Tiro ao alvo, por exemplo, se dividia em várias etapas: tiro a
alvos fixos, tiro a alvos móveis, tiro ao pombo, tiro a comunistas e petistas
etc. Aliás, cursos iniciais de tiro seriam dados a alunos a partir dos cinco
anos de idade, mas só para legítima defesa.
3. O Ministério das Relações Exteriores passou a
ser chamado Ministério de Relações Exteriores e Propagação da Fé. Embaixadores,
cônsules e outros diplomatas teriam que ser praticantes e apoiados por uma
igreja pentecostal. O ministro teria que ter o título de bispo. Sob este aspecto
não houve mudança significativa, apenas formal.
4. O Ministério do Meio Ambiente promoveria viagens
turísticas a reservas de mata amazônica. Uma fila imensa de turistas ecológicos
se acumulava junto às portas de entrada da reserva que se estendia por dez
hectares, ou seja, 20 campos de futebol, e que, segundo informações oficiais,
abrigava um casal de tucanos e três saimiris (macacos-de-cheiro). No entorno,
milhões de hectares de pastagens e plantações de soja para alimentar os porcos
da China. Ao lado, um museu com onças e caititus empalhados.
5. As milícias haviam acabado com a baderna. Haviam
pacificamente dividido o Brasil em zonas. A polícia se recolhera aos quartéis.
A tortura fora reduzida ao essencial. E por um preço módico poderia ter o
cidadão segurança em sua casa.
6. Uma notícia alvissareira foi a de que havia sido
encontrada enfim uma nova aplicação para o nióbio, metal de que o Brasil é
rico. Foram banidos todos os materiais, tais como ouro, resinas e porcelanas,
que servem para preenchimento de buracos devidos a cáries de dentes, e
substituídos pelo negro e reluzente metal. Além disso, como o grafeno pode ser
obtido de qualquer material orgânico, com o que o Brasil não teria vantagem
competitiva alguma, pudemos desenvolver uma fonte única de carbono, elemento do
qual é constituído o grafeno. Cientistas brasileiros teriam sido os primeiros a
produzir grafeno do flato do macaco barrigudo em cativeiro.
Pois bem, após estas deprimentes experiências, aos
poucos comecei a acreditar que teriam sido não mais que um pesadelo. Mas eis
que me acode uma preocupação: o pesadelo de um pode bem ser o sonho de outrem.
*Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da
Folha e presidente do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de
Pesquisa em Energia e Materiais)
[Ilustração: Alberto Magnelli]
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