Babel
Luciano Siqueira
Reza a lenda que por vontade divina a Humanidade, que se comunicava por meio de um único e uniforme idioma, teve misturados palavras e sons — gerando tremenda mixórdia entre os que ocupavam uma torre (Babel) destinada a alcançar o céu.
Luciano Siqueira
Reza a lenda que por vontade divina a Humanidade, que se comunicava por meio de um único e uniforme idioma, teve misturados palavras e sons — gerando tremenda mixórdia entre os que ocupavam uma torre (Babel) destinada a alcançar o céu.
Dai
em diante entender o que se diz e o que se ouve e o que se lê virou uma
empreitada desafiante.
Começa
pela diversidade de idiomas. Tem sentido dizer que, quando duas pessoas não se
entendem, uma fala grego e a outra japonês.
Mas,
entre os que se pronunciam através da mesma língua, desencontros são muito mais
frequentes do que o razoável. Por isso, Antoine de Saint-Exupèry, pela voz do
Pequeno Príncipe, proclamou: a linguagem é uma fonte de mal-entendidos.
E
ainda tem os dialetos próprios de cada esfera do conhecimento e de atividade
profissional.
A
turma da tecnologia da informação se comunica por siglas cujos significados se
traduzem em inglês.
Médicos
se referem a patologias e entidades clínicas também por siglas, e assim por
diante.
E
os “manos” e as “minas” emitem expressões quase incompreensíveis.
Mais:
com o advento das redes sociais, se alastra um dialeto que para mim é
definitivamente incompreensível. E feio.
Palavras
truncadas e quase sempre reduzidas a três ou quatro letras terminam se
incorporando à linguagem cotidiana – e haja paciência para ouvir, e tentar
entender, o que é pronunciado entre os dentes!
Prefiro
ignorar.
O
que não é nada educado, diria minha mãe Oneide, para quem ouvir com atenção era
dever sagrado.
-
Meu filho, escute com calma e paciência, mesmo aquelas pessoas que têm
dificuldade de falar. Não ouvi-las é falta de caridade, sentenciava ela.
Mas,
sinceramente, a essa altura da vida esforçando-me por fazer bom uso do tempo
que me resta, aguentar aquele palavreado atravessado, dito como quem masca
chiclete enquanto bebe, é de lascar!
E
ainda tem os emotions, abusivamente (para mim) usados no WhatsApp. Entendo pouquíssimos,
óbvios.
Tem
uma carinha amarela com um ponto pequeno vermelho no canto esquerdo da boca,
que eu interpretei a vida inteira como uma cereja – até que alguém me esclareceu
tratar-se de um beijo de despedida!
Quantos
beijos desses deixei de retribuir por pura ignorância!
E
as mãos juntas elevadas como quem reza? Sempre as recebi com preconceito,
sobretudo quando me pareciam nada terem a ver com o conteúdo do diálogo. Depois
vim a saber que não se trata de oração, é um “highfive”, simboliza que dois
amigos bateram as mãos num gesto de regozijo...
Claro
que a turma de agora há que ter também suas queixas. Nosso pessoal,
particularmente militantes e ativistas da luta social, tem cada uma que é
difícil assimilar:
-
Quero me inscrever para “defender contra”, é comum se ouvir em assembléias do
movimento.
Vá
entender essa dialética de mau gosto e depois me diga o que vem a ser mesmo
“defender contra”, tudo bem?
[Ilustração: Composição a partir de detalhe de um desenho de Miguel Siqueira Ramos]
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