O médico
e o monstro
Paulo Mendes
Campos
Avental branco, pincenê
vermelho, bigodes azuis, ei-lo, grave, aplicando sobre o peito descoberto duma
criancinha um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe passa.
O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a bater-lhe
pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua irmã, a enfermeira; a
criancinha é uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo
nome de Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma caixinha de
brinquedos.
Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto trabalham, a
enfermeira presta informações:
– Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem de
vitamina, mas a irmãzinha dela adora.
O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca de
Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá. Rosinha diz aaá pelos
lábios da enfermeira. O médico apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz,
rabisca uma receita, enquanto a enfermeira continua:
– O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de qualquer
jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai ficar muito magrinha que
até o vento carrega. O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno do
pescoço da boneca, diagnosticando:
– Mordida de leão.
– Mordida de leão? – pergunta, desapontada, a enfermeira, para
logo aceitar este faz-de-conta dentro do outro faz-de-conta. – Eu já disse
tanto, meu Deus, para essa garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho
Vermelho…
Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de acarajé, um
urso muito resfriado, porque só gostava de neve, um cachorro atropelado por
lotação, outras bonecas de vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha
e até mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira.
De repente, o médico diz que está com sede e corre para a
cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se aproveita disso para dar
um beijo violento no seu amor de filho e também para preparar-lhe um copázio de
vitaminas: tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O famoso
pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável droga.
– Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você mesmo, doutor.
Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo é levado
com energia aos seus lábios, a beberagem é provada com uma careta. Em seguida,
propõe um trato:
– Só se você depois me der um sorvete.
A terrível mistura é sorvida com dificuldade e repugnância, seus
olhos se alteram nas órbitas, um engasgo devolve o restinho. A operação durou
um quarto de hora. A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica
no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute. Já estamos
a essa altura, como não podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do
médico em monstro.
Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são atirados
sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo médico resta um lindo bigode
azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce
enfermeira continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o consultório:
microscópio, estetoscópio, remédios, seringa, termômetro, tesoura, gaze,
esparadrapo, bonecas, tudo se derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de
horror e começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante, espeta-lhe a
espada na barriga e brada:
– Eu sou o Demônio do Deserto!
Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura do
mal, desatento a qualquer autoridade materna ou paterna, com o diabo no corpo,
o monstro vai espalhando terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é
o divã massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no ouvido da
cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se despenca, um grito, um uivo,
um rugido animal, é o doce derramado, a torneira inundando o banheiro, a
revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum
apartamento carioca.
Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante, senta-se
sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que conte uma história ou lhe
compre um carneirinho de verdade.
E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar ameaçado
pelas forças do mal.
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena
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