Kennedy
ou Xambá?
Ronaldo Correia
de Brito/Revista Continente
Votei a favor de trocarem o nome da
Avenida Presidente Kennedy, em Olinda, por Avenida Xambá. Acho justo que as
pessoas sejam lembradas de que ali existiu, no passado, um sítio de resistência
à escravidão.
No mesmo território dos
quilombolas, a prefeitura construiu um terminal integrado de passageiros.
Tinham prometido que o terreno seria um parque alusivo à memória histórica e
geográfica da luta. Não cumpriram a promessa.
É mais fácil homenagear um
presidente dos Estados Unidos do que uma nação negra Xambá escravizada. Lembrem
a bajulação e subserviência do ex-presidente Bolsonaro batendo os calcanhares e
fazendo continência à bandeira estadunidense.
Sofremos lavagem cerebral
quando estudamos a história do Brasil, omissa e falsificada. Isso talvez
explique porque se mantém a homenagem ao presidente Kennedy. A maioria das
pessoas admirava e ainda admira o homem transformado em herói e lamentou seu
fim trágico.
Os brasileiros esqueceram
(ou nunca se importaram em saber) que, durante o governo de Kennedy, se manteve
a política expansionista dos Estados Unidos e a guerra fria. E que foi John F.
Kennedy (1961-1963) quem criou a Aliança para o Progresso, um programa
cooperativo que, na aparência, visava acelerar o desenvolvimento econômico e
social da América Latina.
Apenas na aparência.
De verdade, o que o
programa queria mesmo era frear o avanço do socialismo em nosso continente,
afastar as influências de Cuba e da Rússia.
Quando em 1962 os
ex-presidentes Juscelino Kubitschek, do Brasil, e Alberto Lleras Camargos, da
Colômbia, foram convidados a emitir um relatório sobre a Aliança para o
Progresso, concluíram que os empréstimos do programa, além de endividar os
países da América do Sul, não lhes davam liberdade de agir. As metas sofriam
fiscalização e controle rigorosos do credor, o que significava que os governos
só poderiam fazer o que os Estados Unidos determinassem e aprovassem.
Jogo típico da economia
capitalista e da política de intervenção. A maior parte do crédito tinha como
propósito garantir o equilíbrio econômico dos países e pouco ou nada se
investia em reestruturar a ordem social, marcada, como até hoje, pela
desigualdade.
A intervenção
estadunidense nas políticas da América Latina, com Kennedy, culminou na
sucessão de golpes militares e ditaduras violentas no período do governo
seguinte de Lyndon Johnson.
O golpe militar brasileiro
de 1964 recebeu apoio logístico, material e de inteligência dos Estados Unidos.
Antes do golpe, a Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional) canalizava seus recursos, apenas, para os estados brasileiros
governados por políticos ideologicamente afinados com a agência. Uma prova de
intervenção na política interna do nosso país.
Mudou alguma coisa?
A Aliança para o Progresso
beneficiou os militares até 1967, sendo encerrada por Richard Nixon, em
1969.
Vale a pena
relembrar.
Juscelino Kubitscheck
morreu na Rodovia Presidente Dutra, em 1976. Sua morte não se tratou de
acidente, como na época divulgou a imprensa, mas de assassinato, conforme
apurou, em 2013, a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo. Juscelino foi
vítima de complô e atentado político da Operação Condor, firmada entre os
governos militares do Brasil (Ernesto Geisel), da Argentina, do Chile, do
Uruguai, do Paraguai e da Bolívia.
Havia preocupação por
parte dessas ditaduras e dos Estados Unidos de que o ex-presidente Juscelino
pudesse influenciar a estabilidade do Cone Sul. Menos de um mês depois, Orlando
Letelier (ex-ministro de Allende) também morreu de forma misteriosa, numa
explosão em Washington.
Por esses relatos
simplificados e ligeiros, que mais parecem um trailer de
filme de ação, enxergamos as falsificações das narrativas oficiais.
Se os políticos tivessem
conhecimento da história (e inteligência para interpretá-la), não nomeariam
avenidas, praças, museus, parques e ruas com os nomes de inimigos da
nacionalidade brasileira. Compreende-se porque, do alto de suas ignorâncias,
vereadores de Olinda recusem substituir o Kennedy pelo Xambá.
O quilombo Xambá formou-se
com negros que habitavam na África a região ao norte dos Ashanti e limites da
Nigéria com os Camarães, nos montes Adamaua, vale do Rio Bené. Esse povo chegou
ao Brasil escravizado e, mesmo assim, ajudou a construir, com seus
descendentes, nossa cultura e riqueza.
Em 1963, no furor das
forças de direita que se opunham a João Gullar, ergueram uma estátua a Borba
Gato, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. O bandeirante que viveu de 1649 a
1718 é um símbolo do avanço colonizador pelos interiores do país, tomando
terras, matando e escravizando indígenas e negros.
Num movimento efetivo,
mais que simbólico, a estátua foi incendiada por jovens, em 24 de julho de
2021. As pessoas que praticaram a ação recusavam a homenagem concedida pelas
elites financeiras e políticas do país ao bandeirante. Os jovens revoltados e
toda a população não tinham sido consultadas, no passado e no presente, se
estavam de acordo com a homenagem.
Antes de erguer estátuas e
batizar avenidas, é necessário saber o significado disso para a nossa história.
Os valores mudam com o tempo. Estátuas de Hitler, Stalin e Mussolini foram
botadas abaixo, sem punição de quem praticou os atos.
No primeiro verso de uma
estrofe do hino de Pernambuco, canta-se “A República é filha de Olinda”,
referindo-se ao movimento emancipatório de 1710, que teve à frente Bernardo
Vieira de Melo. Vereador da câmara da vila de Olinda, Bernardo proclamou a
República do Brasil para os nobres senhores de engenho, deixando de fora os
negros, como igualmente fizeram nas revoluções de 1817 e Confederação do
Equador.
Além de ocupar os mais
altos cargos políticos em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira
de Melo esteve à frente das grandes batalhas de repressão aos indígenas, como a
Revolta dos Bárbaros, e aos negros aquilombados. Ao lado do bandeirante
Domingos Jorge Velho, liderou tropas que destruíram o Quilombo dos Palmares.
Depois dos quilombolas vencidos, ele mesmo executou quatrocentos negros,
ex-escravos.
Bernardo Vieira de Melo dá
nome a uma importante avenida de Piedade, em Jaboatão, onde residem pessoas
ricas. Do ponto de vista dos poderosos, trata-se de uma homenagem justa. Mas do
ponto de vista de afrodescendentes e indígenas, trata-se de mais um genocida a
serviço da colonização, domínio e extermínio de povos transformado em herói por
elites que, há 500 anos, se mantêm no poder.
Nem sempre a aparência é igual
à essência https://bit.ly/3Ye45TD
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