11 maio 2023

Uma crônica de Ronaldo Correia de Brito

Kennedy ou Xambá?

Ronaldo Correia de Brito/Revista Continente

 

Votei a favor de trocarem o nome da Avenida Presidente Kennedy, em Olinda, por Avenida Xambá. Acho justo que as pessoas sejam lembradas de que ali existiu, no passado, um sítio de resistência à escravidão. 

No mesmo território dos quilombolas, a prefeitura construiu um terminal integrado de passageiros. Tinham prometido que o terreno seria um parque alusivo à memória histórica e geográfica da luta. Não cumpriram a promessa. 

É mais fácil homenagear um presidente dos Estados Unidos do que uma nação negra Xambá escravizada. Lembrem a bajulação e subserviência do ex-presidente Bolsonaro batendo os calcanhares e fazendo continência à bandeira estadunidense. 

Sofremos lavagem cerebral quando estudamos a história do Brasil, omissa e falsificada. Isso talvez explique porque se mantém a homenagem ao presidente Kennedy. A maioria das pessoas admirava e ainda admira o homem transformado em herói e lamentou seu fim trágico. 

Os brasileiros esqueceram (ou nunca se importaram em saber) que, durante o governo de Kennedy, se manteve a política expansionista dos Estados Unidos e a guerra fria. E que foi John F. Kennedy (1961-1963) quem criou a Aliança para o Progresso, um programa cooperativo que, na aparência, visava acelerar o desenvolvimento econômico e social da América Latina. 

Apenas na aparência. 

De verdade, o que o programa queria mesmo era frear o avanço do socialismo em nosso continente, afastar as influências de Cuba e da Rússia. 

Quando em 1962 os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, do Brasil, e Alberto Lleras Camargos, da Colômbia, foram convidados a emitir um relatório sobre a Aliança para o Progresso, concluíram que os empréstimos do programa, além de endividar os países da América do Sul, não lhes davam liberdade de agir. As metas sofriam fiscalização e controle rigorosos do credor, o que significava que os governos só poderiam fazer o que os Estados Unidos determinassem e aprovassem. 

Jogo típico da economia capitalista e da política de intervenção. A maior parte do crédito tinha como propósito garantir o equilíbrio econômico dos países e pouco ou nada se investia em reestruturar a ordem social, marcada, como até hoje, pela desigualdade. 

A intervenção estadunidense nas políticas da América Latina, com Kennedy, culminou na sucessão de golpes militares e ditaduras violentas no período do governo seguinte de Lyndon Johnson. 

O golpe militar brasileiro de 1964 recebeu apoio logístico, material e de inteligência dos Estados Unidos. Antes do golpe, a Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) canalizava seus recursos, apenas, para os estados brasileiros governados por políticos ideologicamente afinados com a agência. Uma prova de intervenção na política interna do nosso país. 

Mudou alguma coisa? 

A Aliança para o Progresso beneficiou os militares até 1967, sendo encerrada por Richard Nixon, em 1969. 

Vale a pena relembrar. 

Juscelino Kubitscheck morreu na Rodovia Presidente Dutra, em 1976. Sua morte não se tratou de acidente, como na época divulgou a imprensa, mas de assassinato, conforme apurou, em 2013, a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo. Juscelino foi vítima de complô e atentado político da Operação Condor, firmada entre os governos militares do Brasil (Ernesto Geisel), da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Paraguai e da Bolívia. 

Havia preocupação por parte dessas ditaduras e dos Estados Unidos de que o ex-presidente Juscelino pudesse influenciar a estabilidade do Cone Sul. Menos de um mês depois, Orlando Letelier (ex-ministro de Allende) também morreu de forma misteriosa, numa explosão em Washington. 

Por esses relatos simplificados e ligeiros, que mais parecem um trailer de filme de ação, enxergamos as falsificações das narrativas oficiais. 

Se os políticos tivessem conhecimento da história (e inteligência para interpretá-la), não nomeariam avenidas, praças, museus, parques e ruas com os nomes de inimigos da nacionalidade brasileira. Compreende-se porque, do alto de suas ignorâncias, vereadores de Olinda recusem substituir o Kennedy pelo Xambá.

O quilombo Xambá formou-se com negros que habitavam na África a região ao norte dos Ashanti e limites da Nigéria com os Camarães, nos montes Adamaua, vale do Rio Bené. Esse povo chegou ao Brasil escravizado e, mesmo assim, ajudou a construir, com seus descendentes, nossa cultura e riqueza.  

Em 1963, no furor das forças de direita que se opunham a João Gullar, ergueram uma estátua a Borba Gato, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. O bandeirante que viveu de 1649 a 1718 é um símbolo do avanço colonizador pelos interiores do país, tomando terras, matando e escravizando indígenas e negros. 

Num movimento efetivo, mais que simbólico, a estátua foi incendiada por jovens, em 24 de julho de 2021. As pessoas que praticaram a ação recusavam a homenagem concedida pelas elites financeiras e políticas do país ao bandeirante. Os jovens revoltados e toda a população não tinham sido consultadas, no passado e no presente, se estavam de acordo com a homenagem. 

Antes de erguer estátuas e batizar avenidas, é necessário saber o significado disso para a nossa história. Os valores mudam com o tempo. Estátuas de Hitler, Stalin e Mussolini foram botadas abaixo, sem punição de quem praticou os atos. 

No primeiro verso de uma estrofe do hino de Pernambuco, canta-se “A República é filha de Olinda”, referindo-se ao movimento emancipatório de 1710, que teve à frente Bernardo Vieira de Melo. Vereador da câmara da vila de Olinda, Bernardo proclamou a República do Brasil para os nobres senhores de engenho, deixando de fora os negros, como igualmente fizeram nas revoluções de 1817 e Confederação do Equador. 

Além de ocupar os mais altos cargos políticos em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo esteve à frente das grandes batalhas de repressão aos indígenas, como a Revolta dos Bárbaros, e aos negros aquilombados. Ao lado do bandeirante Domingos Jorge Velho, liderou tropas que destruíram o Quilombo dos Palmares. Depois dos quilombolas vencidos, ele mesmo executou quatrocentos negros, ex-escravos. 

Bernardo Vieira de Melo dá nome a uma importante avenida de Piedade, em Jaboatão, onde residem pessoas ricas. Do ponto de vista dos poderosos, trata-se de uma homenagem justa. Mas do ponto de vista de afrodescendentes e indígenas, trata-se de mais um genocida a serviço da colonização, domínio e extermínio de povos transformado em herói por elites que, há 500 anos, se mantêm no poder.

Nem sempre a aparência é igual à essência https://bit.ly/3Ye45TD

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