08 maio 2024

Golpismo lá e cá

Dois ataques ao governo. Dois resultados bem diferentes.

Por que a maioria esmagadora dos brasileiros rejeita a insurreição de um ano atrás, enquanto os Estados Unidos continuam profundamente divididos sobre o 6 de janeiro?
Jack Nicas/New York Times


 

Esta segunda-feira marca um ano desde que milhares de manifestantes de extrema-direita, vestidos com as cores da bandeira do Brasil, invadiram os prédios do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto com o objetivo de anular a eleição presidencial.

Sábado marcou três anos desde que milhares de americanos fizeram praticamente a mesma coisa.

Foram dois ataques chocantes às duas maiores democracias do Hemisfério Ocidental, transmitidos ao vivo pelo mundo e fomentados por presidentes que questionaram suas derrotas eleitorais. Esses atos representaram um teste de fogo para as instituições de ambos os países e provocaram um debate sobre como sociedades profundamente polarizadas poderiam seguir em frente após tais episódios.

Com o tempo, a resposta para essa pergunta tem se tornando cada vez mais clara: apesar de similares, os ataques tiveram desfechos quase opostos.

Nos Estados Unidos, o apoio à campanha de Donald J. Trump para retomar a Casa Branca tem crescido, enquanto ele se refere ao 6 de janeiro como “um belo dia”. 

Ao mesmo tempo, seu homólogo no Brasil, o ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, rapidamente segue rumo à irrelevância política. Seis meses depois de deixar o cargo, no ano passado, autoridades eleitorais o impediram de concorrer novamente até 2030 – e líderes de direita têm evitado estar próximos a ele.

Entre os cidadãos, as opiniões sobre os atos de 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos, e 8 de janeiro de 2023, no Brasil, também divergem. Pesquisas recentes mostraram que 22% dos americanos apoiam o ataque ao Capitólio, enquanto no país sul-americano apenas 6% defendem as manifestações que culminaram com a depredação dos prédios públicos em Brasília.

Afinal, por que houve reações tão contrastantes a ameaças tão semelhantes? Pesquisadores e analistas apontam para uma série de razões, que incluem diferenças nos sistemas políticos, nos cenários midiáticos, nas histórias nacionais e nas respostas judiciais de cada país. No entanto, uma diferença se destaca.

Líderes da direita no Brasil “aceitaram publicamente, de forma clara e inequívoca, os resultados das eleições e fizeram exatamente o que políticos democráticos deveriam fazer”, disse Steven Levitsky, professor de ciência política na Universidade de Harvard que estuda as democracias americana e brasileira e co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”. “Isso é muito diferente da resposta dos membros do Partido Republicano”. 

Na noite seguinte ao 8 de janeiro, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, marchou, pela Praça dos Três Poderes, onde houve a depredação, de braços dados com juízes, governadores e congressistas de diferentes linhas ideológicas, em um gesto de união contra o ataque. 

Em sentido oposto, nas horas após o ato de 6 de janeiro, alguns membros do Partido Republicano votaram no Congresso contra a certificação da vitória eleitoral do presidente Joe Biden, e, desde então, os republicanos têm retratado a insurreição como um ato patriótico – ou até como uma iniciativa de infiltrados de esquerda.

Ciro Nogueira, político de direita que foi ministro da Casa Civil de Jair Bolsonaro e agora é líder da minoria no Senado, disse que a reação nos Estados Unidos é surpreendente.

“Existe uma unanimidade na classe política do nosso país de condenar esses atos”, disse. “Eu acho muito ruim que uma parte dos políticos americanos aplauda esse tipo de manifestação”.

Nogueira levantou a hipótese de que o Brasil rejeitou com tanta veemência os ataques porque muitos cidadãos experienciaram a violenta ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985. “Os Estados Unidos não viveram uma ditadura, uma época de período autoritário”, disse. “A gente jamais quer que isso volte ao nosso país”. 

Analistas destacam ainda que a fragmentação política do Brasil – 20 partidos são representados no Congresso – torna os políticos mais dispostos a confrontar uns aos outros e a expressar uma gama mais ampla de opiniões, enquanto os conservadores americanos estão em grande parte confinados ao Partido Republicano.

Outra observação dos analistas é de que a mídia tradicional é menos fragmentada no Brasil, o que, segundo eles, influenciou uma parcela maior do público a concordar com fatos em comum. Por exemplo, a TV Globo atinge uma parcela dominante da audiência brasileira, com índices frequentemente superiores aos das quatro redes seguintes somadas.

Mas há outra razão pela qual o Brasil rejeitou tão firmemente o 8 de janeiro – um fator que pode representar uma ameaça não intencional às instituições do país. O Supremo Tribunal Federal expandiu seu poder para investigar e processar pessoas consideradas uma ameaça à democracia.

A abordagem ajudou a abafar alegações de fraude em torno das eleições de 2022 no Brasil, já que um juiz do Supremo em particular, o ministro Alexandre de Moraes, ordenou que empresas de tecnologia retirassem postagens que espalhavam tais notícias falsas. Moraes disse ter visto a desinformação online minar a democracia em outros países e que estava determinado a não permitir que isso acontecesse no Brasil. 

Como resultado, os tribunais brasileiros têm ordenado que empresas de tecnologia excluam perfis das redes sociais a uma das mais altas taxas de banimento do mundo, de acordo com o Google e a Meta, proprietária do Instagram, Facebook e WhatsApp.

Moraes também é relator da investigação do 8 de janeiro (em alguns casos no Brasil, o papel dos ministros do Supremo pode se confundir com o de um procurador e de um juiz).

Um ano após os atos no Brasil, 1.350 pessoas foram denunciadas e 30, condenadas, com sentenças variando de 3 a 17 anos. Já nos Estados Unidos, após três anos, cerca de 1.240 manifestantes foram denunciados e 880, condenados ou declarados culpados. As sentenças variam de alguns dias a 22 anos.

Na semana passada, Moraes concedeu uma série de entrevistas nas quais criticou os manifestantes que são réus em casos julgados por ele, chamando-os de “covardes” e “um povo doente” por terem ameaçado sua família. Ele também disse que as ações tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, composto por 11 juízes, foram cruciais.

“Eu não tenho dúvida em afirmar que, se não houvesse uma reação forte das instituições, nós hoje não estaríamos aqui conversando. O Supremo estaria fechado e eu, como as investigações demonstraram, não estaria aqui”, disse Moraes em uma entrevista, ressaltando que alguns manifestantes tinham a intenção de matá-lo.

“Eu acho que há problemas na atuação do Supremo, que há problemas nessa concentração de poderes por parte do ministro Alexandre de Moraes”, disse Emilio Peluso, professor de direito constitucional na Universidade Federal de Minas Gerais. “Mas, eu acho que o Supremo tinha mesmo que dar uma resposta firme ao que aconteceu no 8 de janeiro”.

Moraes também presidiu o Tribunal Superior Eleitoral, que, em junho, votou para barrar Bolsonaro da próxima eleição presidencial. Cinco dos sete juízes da Corte consideraram que Bolsonaro abusou de seu poder quando, antes da eleição de 2022, atacou o sistema eleitoral do Brasil em um discurso transmitido pela TV estatal.

Levitsky, professor de Harvard, disse que a abordagem do Brasil se assemelha à doutrina da “democracia militante” estabelecida na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial para combater o fascismo, na qual o governo pode impedir de concorrer a eleições os políticos considerados uma ameaça.

Os Estados Unidos preferiram deixar para os eleitores decidirem, embora os tribunais em todo o país estejam analisando a elegibilidade de Trump. Agora, a expectativa é que a Suprema Corte julgue a questão.

Enquanto isso, com o apoio de colegas republicanos, Trump intensifica suas mentiras. Em um comício na última sexta-feira, ele chamou os presos pelas acusações do 6 de janeiro de “reféns” e afirmou falsamente que o movimento de extrema-esquerda antifa e o FBI “lideraram o ataque”. “Vocês viram as mesmas pessoas que eu vi”, disse a apoiadores.

Uma pesquisa divulgada no mês passado mostrou que um quarto dos americanos agora acredita que agentes do FBI “organizaram e incentivaram” o ataque de 6 de janeiro.

Para Levitsky, essa estatística ilustra o que os Estados Unidos podem aprender com o Brasil nesse caso: “O que líderes dizem e fazem importa”.

Paulo Motoryn contribuiu com a reportagem de Brasília.

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