07 junho 2024

Bancos de sangue perigosos

Venda de sangue: os danos no Reino Unido e no Brasil

Novo relatório revela que transfusão de sangue comercializado infectou 33 mil britânicos com HIV e hepatite C. No passado, problema similar afetou o Brasil – mas foi vencido com Lei Henfil e Hemobrás. PEC do Plasma ameaça volta ao cenário anterior
Guilherme Arruda/OutraSaúde


 

As recentemente divulgadas conclusões de um inquérito do poder público do Reino Unido revelam detalhes de um caso grave: durante as décadas de 1970 e 1980, 33 mil cidadãos britânicos foram infectados com HIV ou Hepatite C em transfusões de sangue. Cerca de 5 mil morreram. Os hemoderivados que continham os vírus, descobriu a investigação que gerou o documento, eram importados dos Estados Unidos – e comprados de bancos de sangue comerciais, que não testavam a “mercadoria” para possíveis contaminações.

O relatório gerou um escândalo político. O impopular governo conservador do primeiro-ministro Rishi Sunak rapidamente ofereceu indenizações para milhares dessas pessoas afetadas pela “negligência” do Estado. Mas as famílias das vítimas não estão satisfeitas – e prometem processar o Estado para exigir mais reparações, que podem chegar a “bilhões de libras”, apura a BBC.

Quando os hemoderivados podiam ser comercializados no país, o Brasil registrou casos similares. É célebre a história dos irmãos Betinho, Henfil e Chico Mário, que contraíram o HIV dessa forma – Betinho, o único dos três não falecer ainda nos anos 1980, fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) em parte para exigir uma resposta a esse cenário. O atual vice-presidente da Abia, Veriano Terto Júnior, lembra que a Lei Henfil, que torna obrigatórios os exames laboratoriais com sangue coletado, e a Lei Betinho, que proíbe o comércio de sangue, foram conquistadas por essa luta. 

Hoje, interesses econômicos querem retomar a compra e a venda de derivados do sangue por meio da PEC do Plasma, que já recebeu o aval de uma Comissão do Senado Federal. Eles argumentam que sua aprovação seria positiva para impedir o suposto “desperdício” de sangue. Contudo, desde o tempo de Betinho e Henfil, o país desenvolveu um importante instrumento para não depender desse comércio: a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), uma indústria pública fundada em 2004. 

Há apenas um mês, a estatal inaugurou em Goiana (PE) uma planta que fabricará – como produto biotecnológico, não hemoderivado – o Fator VIII: a proteína que, importada desleixadamente, infectou milhares de britânicos. Outra Saúde também conversou com Ana Paula Menezes, presidente da Hemobrás, para conhecer as capacidades produtivas que a empresa possui e os planos — já anunciados pela atual gestão — de ampliá-las. O fortalecimento da estatal, sugere o vice-presidente da Abia, é um caminho muito mais adequado que o “retorno à barbárie do tempo em que o sangue era mercadoria”.

Como era no Brasil

O mais recente boletim da Abia, intitulado “A volta dos vampiros”, conta um pouco da história da campanha “Pacto de Sangue”, que conseguiu incidir até sobre a escrita da Constituição Federal de 1988. Como conta um artigo do diretor-presidente da Abia Richard Parker, sob o slogan “Sangue não é mercadoria” e com ilustrações de Ziraldo, a mobilização sensibilizou os brasileiros – e garantiu a inclusão do parágrafo 4º no artigo 199 da Carta Magna, que veda “todo tipo de comercialização” da “coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados”.

Para Veriano Terto, antes disso, “a forma como eram tratadas as transfusões de sangue e o acesso a hemoderivados era completamente negligente, sem nenhuma atenção e cuidado com a vida humana”. Além disso, a desinformação associava a transmissão da Aids à homossexualidade ou o contato com homossexuais – e não ao manejo inadequado do sangue e das transfusões.

Nesse cenário, a unidade entre o movimento da reforma sanitária – que já havia discutido a questão do sangue na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986 – e o movimento social da Aids foi decisiva para articular uma questão de soberania nacional (a proteção do sangue dos brasileiros) com a situação real da epidemia de uma doença que naquele momento já afetava milhares de pessoas, muitas delas marginalizadas da sociedade. Como diz o artigo de Parker, as entidades “articularam a noção de solidariedade como uma espécie de ‘vacina’ contra a violência simbólica do estigma e discriminação relacionada à Aids”.

No mesmo ano da promulgação da Constituição, também foi aprovada a Lei Henfil, que obrigava a análise do sangue coletado – precisamente o que também não era feito no Reino Unido, naquele mesmo período, e levou à infecção de 33 mil pessoas. No enfrentamento à Aids, os resultados da lei foram bastante perceptíveis. 

“A vigência da Lei Henfil permitiu que o Brasil derrubasse os números de transmissão do HIV por transfusão de sangue a níveis desprezíveis, de menos de 1%”, relata Veriano. Alguns anos depois, a aprovação da Lei Betinho, que regulamentou a previsão constitucional, viria para enterrar de vez a comercialização do sangue.

O cenário pós-Hemobrás

Apesar do progresso representado pela testagem do material, na década de 1990, o Brasil ainda não era autossuficiente no abastecimento de sangue e hemoderivados e seguia dependendo de trocas comerciais com outros países para garantir seus estoques.

“O Brasil era totalmente dependente das compras realizadas no exterior. Além de não termos acesso aos processos produtivos, também ficávamos à mercê dos valores impostos pelo mercado, sem nenhum referencial de preço para regular os preços praticados nas compras do SUS”, conta Ana Paula Menezes, que é presidente da Hemobrás desde março.

Para enfrentar esse quadro, “foi fundada em 2004, no primeiro governo Lula, a Hemobrás, com o intuito de garantir que o Brasil pudesse, através de uma empresa pública, produzir medicamentos hemoderivados e biotecnológicos para usuários do SUS com a garantia da qualidade e testagens efetivas, para não mais depender somente do que é fabricado no exterior”, aponta a pernambucana.

Hoje, a estatal é “um importante fornecedor de hemoderivados para o SUS, garantindo a entrega de albumina, imunoglobulina e dos Fatores Coagulantes VIII e IX plasmáticos, além do Fator VIII recombinante, que é produzido através da biotecnologia e, portanto, não depende do plasma humano”, relata a médica.

A deficiência do Fator VIII causa a hemofilia clássica – doença que portavam Betinho, Henfil e milhares dos britânicos que, em transfusões com sangue não-testado, acabaram sendo infectados pelo HIV ou pela Hepatite C. Em abril, o Brasil passou a contar com uma fábrica desse produto em Pernambuco, reforçando sua soberania sanitária. “Na inauguração dessa planta, o presidente Lula ressaltou a importância da Hemobrás no atendimento aos pacientes hemofílicos, lembrando de Henfil e Betinho e dizendo que, se fosse hoje, possivelmente eles não teriam passado pelas dificuldades que os pacientes hemofílicos viviam nas décadas de 1970 e 80”, diz a presidente da empresa pública.

As entregas da estatal já são robustas, mas devem se tornar ainda mais sólidas com a inauguração de uma fábrica de hemoderivados prevista para o próximo ano com a capacidade de armazenar 500 mil litros de plasma. “Atualmente, a Hemorrede fornece cerca de 200 mil litros por ano, quantidade que deve crescer nos próximos anos a partir do investimento que o Governo Federal fará através do PAC Saúde. Serão R$100 milhões que vão garantir equipamentos para que os hemocentros forneçam mais plasma com qualidade industrial para a Hemobrás”, revela Ana Paula.

Até o final de 2026, a empresa pretende alcançar o processo de produção 100% nacional de hemoderivados e recombinantes, “um passo importante para que o Brasil atinja a autossuficiência desses medicamentos”. Para isso, a Hemobrás recebeu o selo de Empresa Estratégica de Defesa (EED), “justamente pelo valor estratégico para a independência do país em relação ao mercado externo”. Ana Paula lembra que não só as pessoas com hemofilia, mas também “pacientes de UTIs, queimados graves, portadores de doenças renais e doenças autoimunes” também serão beneficiados.

Novos desafios

A despeito de todo o avanço das últimas décadas na capacidade pública, o fato de que “ainda há insuficiências” em seu trabalho – afinal, apesar de estar nos planos, a autossuficiência ainda não foi alcançada –, opina Veriano, abriu margem para que o empresariado da saúde rearticulasse a proposta de vender o sangue dos brasileiros. 

Sua ofensiva se materializou na Proposta de Emenda à Constituição 10/2022, a “PEC do Plasma”. Em outubro passado, ela foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, um primeiro passo para que seja votada pelo Congresso Nacional. 

A PEC busca desvirtuar o artigo 199 da Constituição Federal, aquele conquistado pela mobilização de Betinho e seus aliados. Seu texto prevê que “bancos de sangue privados ganhem o direito de vender o plasma” para “empresas farmacêuticas, que o processariam e venderiam os medicamentos ao mercado privado”, como explica a Agência Senado.

As entidades que acompanharam nas últimas décadas todos os ganhos de saúde pública, dignidade humana e soberania nacional do modelo de gestão do sangue conduzido pelo Estado são críticas à mudança e veem perigos em suas possíveis consequências. 

“Vemos mais uma vez a pressão de empresas farmacêuticas privadas, tanto nacionais, quanto internacionais, para que haja essa flexibilização da lei, ou seja, para voltar a comercializar o sangue. Nós temos uma preocupação do ponto de vista ético, porque o sangue não é uma mercadoria, é um órgão humano. Além disso, o que diz que não haverá uma pressão para que outros órgãos que podem ser transplantados, como os rins, também sejam comercializados?”, questiona Veriano.

No âmbito da Aids, como se vê pelo caso do Reino Unido, a volta ao modelo anterior, onde é preciso confiar em empresas para testar o sangue coletado e vendido, pode custar vidas. “Um dos únicos instrumentos efetivos que tivemos para realmente deter a transmissão do HIV via transfusão foi a Lei Henfil, com as medidas que ela trouxe. Num país onde os casos de Aids voltaram a crescer nos últimos anos, especialmente entre a população mais vulnerável, a gente vê nisso tudo uma ameaça de retrocesso”, ele continua.

“O Brasil só conseguiu ter o controle do sangue a partir do momento em que isso passou para o domínio do SUS e a responsabilidade do Estado, com o fim da comercialização. Nós somos contra qualquer perspectiva de comercialização do sangue ou de hemoderivados até que nos provem o contrário”, conclui o vice-presidente da Abia.

Ilustração: Ziraldo

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