08 outubro 2025

Claudio Carraly opina

Em 2012 o mundo realmente acabou
Cláudio Carraly*   

Muito se ironizou sobre a profecia maia de 2012. Filmes-catástrofe, piadas e memes transformaram o tema em caricatura de alcance mundial. No entanto, talvez a profecia não fosse sobre meteoros ou explosões, mas sobre algo mais profundo, o prenúncio do fim de um ciclo civilizatório.  O que acabou em 2012 não foi o planeta, mas um conjunto de promessas que estruturavam nossa sociedade moderna. Desde então, vivemos em um apocalipse lento, cotidiano, em que as bases que sustentavam a vida social e política se desfazem diante de nossos olhos um pouco mais a cada dia.

Até 2012, ainda havia certa atmosfera de confiança, a chamada democracia liberal era vendida como modelo universal ideal, a globalização parecia inevitável e a tecnologia era apresentada como libertadora. A internet ainda carregava o imaginário de uma “ágora” digital, capaz de dar voz aos invisíveis. O trabalho prometia cada vez mais automação e menos exploração, garantindo ao trabalhador mais conforto e tempo livre em um futuro próximo.  O planeta, embora em crise ambiental, ainda era visto como administrável. Essa narrativa não resistiu. De lá para cá, assistimos a uma sucessão de sinais de que o mundo moderno, tal como o conhecíamos, simplesmente terminou, o mundo como conhecíamos realmente acabou!

A política foi o primeiro campo a expor abertamente essa falência. A Primavera Árabe, celebrada como aurora democrática, degenerou muito rapidamente em guerras civis, tornando-se ditaduras ainda mais perversas que as que sucederam e deixam países destroçados no seu caminho.  O Brasil, com as manifestações de junho de 2013, inaugurou um ciclo de instabilidade que abriu as portas para o ódio tanto institucionalizado quanto difuso, celebrou a negação da política e trouxe de volta à luz ideais fascistas que estavam latentes nos esgotos da sociedade, inclusive com uma tentativa de golpe. Nos Estados Unidos, referência máxima da democracia liberal ocidental, viram a ascensão de Donald Trump, a invasão violenta do Capitólio e o esvaziamento de consensos mínimos.

A Europa, que se vendia como bastião de integração, fragmentou-se com o Brexit e assistiu a um crescimento crescente da extrema-direita.  O que antes parecia exceção tornou-se regra, aquele modelo de democracia esfarelou-se por dentro, transformando-se em campo de batalha permanente. O estado autocrático e de exceção deixou de ser um momento extraordinário e virou forma normal de governo.

O trabalho, por sua vez, perdeu a aura de promessa da possibilidade de ascensão social. O que se viu foi a precarização radical dos trabalhadores. Surgiu a figura do trabalhador de aplicativo, sem direitos, sem garantias, com a ilusão de autonomia, escondendo a realidade da servidão algorítmica, e pior, essa nova realidade foi celebrada por muitos. Já não é o patrão externo que explora, mas o próprio indivíduo que se autoimpõe o jugo da produtividade infinita. O custo da “liberdade” do trabalho virou apenas outro nome para a necessidade de aceitar jornadas intermináveis por alguns trocados.

Na internet, a virada foi ainda mais brutal. Até 2011, era possível acreditar que ela democratizaria o mundo, conectando as pessoas e diminuindo as distâncias do planeta. Porém o que ocorreu foi que após 2012, a rede se consolidou como espaço de manipulação, ódio e fragmentação. O Facebook tornou-se máquina de fake news e linchamentos digitais. O Twitter, hoje chamado de “X”, cristalizou a política em trincheiras, visibilizando grupos supremacistas e emulando uma guerra cultural.  O YouTube criou ecossistemas de radicalização que, em busca de engajamento e monetização, privilegiam o embate, alimentando uma crise permanente.

O sonho da ágora livre deu lugar ao pesadelo do panóptico digital, em que somos ao mesmo tempo vigiados e cúmplices de nossa própria vigilância. O filósofo Slavoj Žižek já alertava que a liberdade pós-moderna não era emancipada, mas controlada por mecanismos invisíveis.  O pós-2012 confirmou essa análise, a internet morreu como espaço de diálogo e renasceu como máquina de desintegração e opressão massiva.

A economia global também mudou de natureza. A crise de 2008 parecia um susto, mas, ao chegarmos em 2012, percebemos que ela não era exceção, era o novo normal do sistema capitalista. A austeridade esmagou países inteiros, como a Grécia. O sistema financeiro foi mantido por injeções bilionárias, sem que os problemas estruturais fossem resolvidos, e com enorme custo social para a população daquele país. Bilionários como Bezos, Musk e Zuckerberg passaram a acumular fortunas que rivalizam com o PIB total de países, tornando-se como deuses modernos. As criptomoedas surgiram como promessa de libertação, mas logo se revelaram mais uma bolha do sistema, especulação e fraude vieram no seu rastro. O capitalismo tornou-se necropolítico, não apenas gera desigualdade, mas decide quem pode viver e quem deve morrer.

O planeta também deu sinais inequívocos de colapso. Em 2012, o degelo da Groenlândia bateu recordes, o Ártico registrou níveis inéditos de perda de gelo marinho e eventos climáticos extremos multiplicaram-se em intensidade e frequência.  O Acordo de Paris de 2015 nasceu sob descrença e hoje agoniza diante da incapacidade dos países em cumprir metas mínimas. Já não existe natureza intocada, vivemos num planeta moldado pela destruição e ganância humana. O apocalipse climático não é futuro distante, mas algo presente, em que assistimos em tempo real a enchentes, secas, incêndios e ondas de calor tomarem todo o planeta.

O atual Zeitgeist, termo alemão que se traduz como "espírito do tempo" e se refere ao conjunto de valores, costumes, ideias, tendências de uma determinada época. Até os anos 2000, mesmo as piores distopias apresentadas nas obras cinematográficas, televisivas ou literárias, mantinham espaço para redenção. Após 2012, um misto de niilismo e cinismo se instalou. Séries como Black Mirror traduziram o mal-estar com a tecnologia, mostrando que o futuro não é libertador, mas uma prisão.

Assim, observamos que filmes e produções culturais deixaram de apostar em utopias para investir em cenários de colapso sem ponto de retorno. A juventude, que em 2012 ainda podia se enxergar como protagonista de transformações, passou a carregar a sensação de que não há futuro, apenas sobrevivência em meio ao inevitável desastre. Zygmunt Bauman falava em modernidade líquida, mas, após 2012, parece mais justo falar em modernidade evaporada, o futuro, antes fluido, agora simplesmente se dissolve no ar.

Os sinais desse fim de ciclo não param de se multiplicar. O Brexit corroeu a promessa de integração europeia. A pandemia de Covid-19 expôs a falência das instituições globais, vimos a normalização do desprezo pela vida, partindo inclusive e principalmente de lideranças políticas. Movimentos antivacina e negacionistas climáticos mostraram que até a ciência perdeu autoridade simbólica. Fascismos renasceram legitimados pelas urnas. A ascensão da inteligência artificial trouxe esperança, mas também medo da obsolescência humana, com a possibilidade de virar um repositório infinito de mentiras, alimentando ainda mais o ecossistema neofascista. Tudo indica que a normalidade do pós-guerra, com suas narrativas de progresso e estabilidade, acabou, morreu, e o corpo ficou insepulto.

Dizer que 2012 foi o ano em que o mundo realmente acabou não é exagero, mas síntese poética de uma transformação histórica, uma transformação que não desejávamos. O que terminou foi a confiança no progresso inevitável, na democracia liberal como destino universal, na globalização como meio idílico de integração dos povos e na tecnologia como inexoravelmente benéfica. Desde então, vivemos um apocalipse cotidiano, difuso, sem espetáculo hollywoodiano, mas com a erosão lenta da democracia, do trabalho digno, da esperança e do próprio planeta.

Os maias estavam certos: 2012 foi o fim de um ciclo. Mas, como todo apocalipse, esse fim também pode ser lido como revelação. Se reconhecermos que o velho mundo realmente acabou, talvez possamos criar outro, fundado não em promessas, mas em solidariedade, justiça e novas formas de relação da humanidade entre si e com o planeta. O futuro não está garantido, mas o presente já é o pós-mundo, e nesse momento essa película vem se mostrando uma distopia, mas, para o nosso bem, esse filme ainda não acabou.

*advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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